Brasília, 29/3/2004 (Agência Brasil - ABr) - Do movimento operário à resistência universitária à ditadura militar, a reflexão intelectual surge a partir da experiência de luta política na biografia do eletrotécnico e economista Paul Singer. Nascido na Áustria, em 1932, numa família de pequenos comerciantes judeus, chegou ao Brasil em 1940. Nos anos 50, formado eletrotécnico, trabalhou em indústrias paulistas e militou no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Foi um dos líderes das greves de 1953. Em 1954, filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB). Fez o curso de ciências econômicas e administrativas da Universidade de São Paulo entre 1956 e 1959.
Na década de 60, tornou-se professor da universidade, até ser aposentado compulsoriamente após o Ato Institucional número 5, em 1968. No ano seguinte, com alguns dos demais colegas expurgados, em particular aqueles com quem tinha estudado a obra máxima de Karl Marx, "O Capital", fundou o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Em 1980, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores. Na gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-92), foi secretário de Planejamento. Atualmente, dedica-se a uma nova militância, pela economia solidária, espécie de realização do socialismo no plano da economia, por meio da experiência das cooperativas. Desde o ano passado, é responsável pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), no Ministério do Trabalho.
À Agência Brasil, Singer fala sobre sua vivência no movimento operário, um dos principais alvos da repressão militar após o golpe de 1964. Também lembra a perseguição aos professores "democratas" nas universidades, durante a ditadura, e rememora a convivência com um dos principais artífices da política econômica dos militares, Delfim Netto. Leia a seguir os principais trechos do depoimento, concedido em seu gabinete em Brasília.
Apelos ao golpe
"No 31 de março, eu estava em São Paulo, trabalhando na Universidade de São Paulo. Eu era professor jovem lá, acompanhávamos com muita emoção os acontecimentos políticos. Havia uma campanha aberta de derrubada do governo do João Goulart, do governo constitucional. Havia apelos diários da imprensa e das emissoras de televisão às Forças Armadas para darem o golpe. O golpe, então, era objeto de uma campanha e, por outro lado, havia uma reação legalista, no sentido de defender o regime democrático.
Eu estava na faculdade quando alguém me encontrou e disse: ‘Minas Gerais saiu do Brasil’. Ou seja, o governador de Minas Gerais tinha proclamado independência em relação ao Brasil. Era uma coisa estranhíssima, porque Minas é um dos poucos estados brasileiros que nem dá para o mar, é mediterrâneo, é totalmente contido no território brasileiro. Era evidentemente uma coisa estapafúrdia.
Logo em seguida, acompanhando o noticiário, a gente percebeu que aquilo era, na verdade, o início do golpe militar. A partir da proclamação do governador Magalhães Pinto, as tropas de Minas Gerais começavam a marcha sobre o Rio de Janeiro e depois houve outras movimentações de tropa. Gradativamente, os comandantes dos diferentes exércitos brasileiros foram se colocando pró ou contra o movimento. Entre nossos amigos, a impressão geral era a de que o golpe teria malogrado. Pensávamos que o dispositivo de defesa do regime, do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, seria superior e que, portanto, o movimento não levaria a nada. Estávamos, infelizmente, enganados".
Resistência limitada
"Esperava-se uma guerra. Havia, dos dois lados, a idéia de que haveria resistência, militar e civil. Havia um movimento popular em ascensão. As Ligas Camponesas, que nasceram no Nordeste, estavam se espalhando pelo Brasil inteiro. Havia movimentos de ocupação de terras. Como o MST hoje, não nas dimensões do MST, mas havia esporadicamente, no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, no Nordeste, o que levou Celso Furtado a escrever um livro chamado ‘A Pré-Revolução Brasileira’.
Havia um clima de que algo teria que mudar profundamente, com uma forte intervenção de um movimento popular e operário. Então, com o golpe, se esperava isso. Na verdade, a resistência houve. Mas, ela foi bastante limitada. A principal foi a greve das ferrovias, houve greves em alguns outros setores, mais ou menos curtas, durante o próprio 1º de abril. A gente acompanhou isso com paixão. Mas, no dia 2 de abril, praticamente, o golpe já havia vencido, e a resistência civil tinha cessado".
Cotidiano
"A vida universitária e econômica não foi perturbada. Foi um golpe pacífico. Setores das Forças Armadas que ainda eram contra o golpe acabaram se reunindo ao redor do Palácio em Porto Alegre. Leonel Brizola assumiu a liderança da resistência, isso durou, enquanto eu me lembro, poucos dias. A vida cotidiana lá em São Paulo, e eu acredito que no resto do País, continuou como se nada tivesse acontecido. No Nordeste, houve mais repressão, prisão de lideranças camponesas. Em São Paulo, começou depois, mas de uma forma extremamente ordeira, ou seja, as pessoas eram chamadas e se apresentavam e ficavam presas alguns dias no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).
Permaneci alguns meses a mais na USP. Eu deveria fazer um doutoramento, e meu orientador era o professor Delfim Netto (risos). Durante algumas semanas, ele aceitou esse cargo, porque o meu professor catedrático estava na Venezuela. Mas, ele foi convidado a ser o secretário da Fazenda do governo de São Paulo, depois que o Adhemar de Barros foi derrubado pelo novo regime, aí ele me chamou e disse, ‘olha Singer, não vai dar’, e me devolveu a tese.
Fiquei ainda um ou dois meses dando aula, até que as condições se tornaram impossíveis. Voltou então ao Brasil meu professor, Mário Wagner - eu era o assistente dele. Ele me chamou, e também aos pais de uma colega minha que estava com uma bolsa de estudos na Polônia. Disse o seguinte: ‘Olha, pelas regras do jogo, vocês são de minha confiança, então eu vou me aposentar, vocês devem se demitir. Essas são as regras’. E a gente se demitiu".
Legalismo
"O golpe militar foi uma coisa longa, durou 21 anos e houve idas e vindas. Estava se esperando em 64 e em 65 a normalização da situação política. Não havia abolição nem da Constituição, continuava em vigor a Constituição de 46. Fizeram algumas emendas, e o regime se pretendia um regime legal, sucessor do Jango. Tanto assim, que o Castello Branco foi eleito pelo Congresso.
Eu pertencia na época ao Partido Socialista, e toda a bancada do partido foi cassada, exceto Aurélio Viana, que era senador pelo Rio de Janeiro. Por que razão ele não foi cassado, jamais se saberá. Mas, foi o único que sobrou. E ele teria que votar no Castello Branco ou não votar. E aí há um episódio interessante, que nos contou na época. João Mangabeira, fundador e presidente do partido. Era uma pessoa que estava velho, no leito de morte. Ele chamou o Aurélio Viana e disse o seguinte: ‘Olha, esse golpe vai durar. Nos vamos ter 20 anos de regime militar no Brasil, e eu insisto que você vote no Castello Branco. De todos os militares, ainda é o melhor. É o menos autoritário, talvez nos ajude a suportar esses 20 anos’. E contra a vontade dele, contra a unanimidade do partido, que eu não queria nem pensar nisso, ele votou no Castello Branco, atendendo ao João Mangabeira em agonia".
Carta-testamento
"Entre o golpe que derrubou Getúlio e o Golpe de 64, dez anos se passaram mais ou menos, há uma continuidade. As diretrizes ideológicas são praticamente as mesmas. São golpes de direita, anticomunistas, muitos inspirados na Guerra Fria, no sentido de que a esquerda era uma esquerda russa ou soviética, financiada etc. Isso tudo depois da revolução cubana. Talvez o regime militar já tivesse começado em 1954, se não fosse o suicídio de Getúlio.
O suicídio de Getúlio foi um acontecimento extraordinário, porque ele mobilizou a população. Milhões de brasileiros foram às ruas. Só se repetiu isso em 1984, com a campanha pelas eleições diretas, novamente vimos massas incríveis se manifestando nas cidades brasileiras. Mas, a movimentação de dor e a revolta da população pelo suicídio de Getúlio foi uma coisa muito forte e os obrigou a não instituir um regime autoritário. Eles acabaram deixando que o vice-presidente Café Filho assumisse.
Mas, as liberdades públicas não foram afetadas. Foi bem diferente do que aconteceu em 1964, com censura, com atos institucionais. Que eu me lembre, em 1954, ninguém foi cassado. Nas eleições de 55 imediatamente a seguir, o candidato apoiado pelo Partido Comunista, Juscelino Kubistchek, ganhou as eleições, mas não iria tomar posse, se não fosse o outro golpe militar, que foi o do Lott. Mas, eu penso que o golpe do Lott só foi possível pela nova situação nacional que se criou, inclusive dentro das Forças Armadas, que é o resultado da carta-testamento do Getúlio".
Crise de um homem só
"Em 1961, nós temos um episódio de esquizofrenia absolutamente individual. Não havia nenhuma razão para o Jânio Quadros renunciar, ele era uma pessoa desequilibrada, sem dúvida e, no repente, ele resolveu renunciar, certo de que voltaria sobre os braços do povo. Ele queria dar um golpe popular, pode-se assim dizer, um autogolpe, queria eliminar o Carlos Lacerda e a imprensa que o atacava. Ele não suportava ser criticado pela oposição. E aconteceu exatamente o contrário, a população não se mexeu.
Ele veio para São Paulo de Brasília, pensando que os paulistas estariam nas ruas - ele tinha sido prefeito e governador de São Paulo. Acho que estava inspirado pela carta-testamento (de Getúlio Vargas). Mas, não aconteceu nada disso. O Carvalho Pinto, que era o governador de São Paulo, foi ao avião, e ele, no desespero, teve um rompante, parece que agrediu fisicamente o Carvalho Pinto".
Vices
"Foi um momento muito rico na história brasileira. De um lado, nós termos passado pelo período Juscelino. Foi um momento feliz na história brasileira, não só a criação de Brasília. Houve um avanço industrial extraordinário, o slogan do Juscelino era ‘Cinqüenta Anos em Cinco’. Houve um avanço inédito, quer dizer, o Brasil saiu de um estágio pra outro, tornou-se um país realmente industrializado, com indústria pesada, com muita tecnologia. Enfim, mudou realmente o país, de vários pontos de vista. E o sucessor dele foi opositor, foi o Jânio.
Nesse período da história brasileira, de 1945 a 1964, o governo jamais elegeu seu sucessor. Nenhum dos governos conseguia ganhar a eleição, o marechal Henrique Lott, que era o candidato do Juscelino, foi fragorosamente derrotado pelo Jânio. Não que o governo JK fosse ruim, mas é que o Jânio era muito melhor como candidato em relação ao marechal Lott. Com a renúncia do Jânio, entrou realmente o vice-presidente da chapa do Lott, que era o Jango. Na época, os eleitores tinham liberdade de votar no candidato a presidente e no candidato a vice que eles quisessem, hoje não pode mais, você escolhe o candidato a presidente e o vice é automático. Esse descasamento foi organizado, quer dizer, houve uma campanha ‘Janjan’, Jânio e Jango, eram duas lideranças populares - populistas, se você quiser.
Só que o Jango era mais consistentemente de esquerda. E entra com uma restrição, tem que ser o regime parlamentarista. Houve um semigolpe militar na sucessão do Jânio para o Jango, as Forças Armadas se reuniram e se convenceram a permitir que o vice-presidente se tornasse em exercício, contanto que ele não exercesse o poder. Então, o Jango foi obrigado, a trabalhar como Primeiro-Ministro. Mas, ele tinha muita força, não era rainha da Inglaterra não. Ele escolheu Tancredo Neves. Começou um período inédito na história desde o Império, que era um período parlamentarista.
O que o Jango queria era recuperar os direitos presidenciais, anular o golpe que o restringia e, para isso, ele se aliou à esquerda - no fundo, foi isso. Ele realmente se aliou à esquerda. O Luiz Carlos Prestes, o famoso líder do Partido Comunista, deu uma entrevista dizendo: ‘Estamos no poder’. Foi a coisa mais inoportuna que ele podia ter feito. Mas isso assustou as classes dominantes, os Estados Unidos também: o Partido Comunista estava clandestinamente participando um pouco do governo, nada mais do que isso. A partir desse momento, começou uma campanha anticomunista, visando à derrubada do Jango. E o Jango foi radicalizando, o movimento com ele foi se radicalizando.
Nós assistimos à mesma coisa com o Salvador Allende, no Chile, poucos anos depois. Gradativamente, os dois lados vão radicalizando as suas posições. O lado apoiando o presidente exigia uma reforma agrária mais ou menos radical, a limitação na remessas de lucros, que seria hoje o rompimento com o Fundo Monetário Internacional, uma coisa dessa natureza. Se você olhar friamente, eram proposições mais ou menos moderadas. mas no contexto, não eram moderadas. E a oposição não tinha proposta positiva nenhuma a não ser retirar os comunistas do poder e garantir com isso a continuidade do regime democrático".
Social em movimento
"Tudo começa em 1950, quando o Getúlio, pela primeira vez, é eleito pelo voto popular. Ele foi presidente do Brasil quinze anos, sem jamais ter passado por uma eleição popular. Em 1950, ele é candidato de oposição e ganha a eleição, com um partido muito fraco, que era o PTB, e com o apoio do Adhemar de Barros. Ele volta nos braços do povo e com um compromisso de esquerda, que só se revela na carta-testamento depois da morte dele, ninguém desconfiava. Ele fez uma política de enormes concessões à classe dominante. Chamou o Horácio Lafer para ministro... Fez um governo de coligação, muitas concessões à direita. Isso levou tanto o Partido Comunista como o Partido Socialista, os partidos de esquerda, a rejeitá-lo.
Então, ele veio pela esquerda, mas não tinha na verdade optado por uma política clara de esquerda. Uma política ambígua era a marca do Getúlio. Mas, ele fez uma coisa, ele chamou o Jango (João Goulart, ministro de Getúlio) e deu liberdade ao movimento sindical. Eu era muito jovem, entrei no movimento sindical em 1952, num momento em que o meu sindicato ainda tinha um interventor. E, na primeira assembléia a que eu assisti, estava lá o interventor, estava o delegado Regional do Trabalho, o delegado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), dirigindo a assembléia. Havia um pavor de que os trabalhadores fizessem alguma coisa indesejável, e os trabalhadores aproveitaram a assembléia para reclamar bastante.
O Getúlio levantou a intervenção, e nós ganhamos todas as eleições a partir daí - sempre a esquerda ganhou no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Em 1953, fizemos uma grande greve de várias categorias, que foi mais ou menos coordenada pelo Partido Comunista, na ilegalidade. Foi uma greve que parou a cidade, ou seja, o movimento sindical e o movimento operário tiveram uma extraordinária ascensão a partir de 52, 53 e isso foi contínuo. Não se chegou a criar uma central sindical, porque não era permitido por lei, mas se criaram pactos sindicais em São Paulo, em Santos, no Rio.
O movimento sindical avançou enormemente também em função da grande industrialização que houve no período de Juscelino, da urbanização e do surgimento de uma nova classe trabalhadora no ABC Paulista, com a nova indústria automobilística. Era nova no sentido de que os operários eram novos, o Lula (o presidente Luiz Inácio Lula da Silva) tinha acabado de chegar de Pernambuco, mas também no sentido de que eram empresas de muito maior tamanho. Eu trabalhava numa das maiores empresas metalúrgicas de São Paulo, tinha 3.500 operários, era a Elevadores Atlas, a maior fábrica de elevadores da América Latina. A Volkswagen, se eu não me engano, tinha 20 mil trabalhadores, era outra dimensão, inclusive na luta de classes interna na empresa. Ele conseguiam formar conselhos com a adesão da empresa, era outro papo, e isso foi exatamente a passagem de um sindicalismo que já era bastante avançado por um sindicalismo ainda muito mais".
Vanguardas
"Eu já era professor universitário em 1961, quando entrou o Jango, mas, como eu era do Partido Socialista, eu mantinha uma relação muito próxima aos sindicalistas, e o movimento sindical ganhou uma dimensão muito forte. Eu me lembro da greve geral que a gente fez em apoio às reformas de base. O movimento sindical era uma das vanguardas de um processo que se supunha que poderia ser revolucionário. Também os camponeses, com as Ligas Camponesas, e as várias entidades de unidade sindical, lideradas por partidos de Esquerda. Havia divisões de esquerdas mais ou menos radicais, mas, dentro do movimento popular, havia unidade".
Metas e planos
"O que nós temos, em termos de planejamento, pré 64, realmente importante, é o Plano de Metas. O Getúlio usou ali a inteligência do governo federal. Principalmente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), muita gente de grande gabarito e que tinha informações e capacidade de planejar regionalmente o país. A Sudene (Superintendência de Desenvolvimento da Região Nordeste) surgiu na época do Juscelino, vários importantes ramos, não só a indústria automobilística, a indústria de tratores, a indústria de adubos, enfim, o país se tornou muito auto-suficiente em termos industriais. Isso foi planejado. Começou no Getúlio. O GEIA (Grupo Executivo da Indústria Automobilística) foi criado ainda na época do Getúlio. Com a morte dele e a substituição do Café Filho, por todo esse período, isso ficou parado. Juscelino retomou o GEIA com as mesmas pessoas e trouxe a indústria automobilística para o país. Não foi muito democrático, era um planejamento feito nos gabinetes de Brasília, no BNDES principalmente, no Ministério da Indústria e Comércio. O método era formar grupos executivos muitos poderosos, que chamavam a indústria privada etc. para viabilizar os saltos que o plano exigia.
O próximo passo do planejamento foi o Plano Trienal, que não passou do papel. Celso Furtado, convidado por Jango, faz um plano de recuperação sobretudo, em curto prazo, porque havia uma crise enorme no balanço do pagamento. O Brasil estava inadimplente, não conseguia rolar as dívidas de curto prazo que o Juscelino tinha deixado e havia uma enorme pressão inflacionária. Então, o Jango procura combinar uma política muito semelhante à do ministro Antonio Palocci, com corte de gastos públicos etc. Ele faz no plano trienal uma defesa apaixonada da reforma agrária, como forma de criar mercado interno, viabilizar o crescimento de longo prazo no Brasil.
Não foi o golpe militar que impediu que o plano fosse feito, foi um pouco a inconsistência do próprio Jango. Ele usou o Plano Trienal como bandeira, mas não permitiu que fosse de fato implementado. Tanto assim que, poucos meses depois, o Celso Furtado pede demissão do Ministério do Planejamento para voltar para a Sudene, onde ele realmente tinha coisas para fazer. Aparentemente, no Ministério do Planejamento, ele era uma figura meio decorativa, não lhe deram os instrumentos para implementar o Plano Trienal. Houve vários outros ministros, inclusive o Carvalho Pinto depois, o período foi de enorme instabilidade".
Delfinato
"Depois do golpe, houve um planejamento muito semelhante nos seus objetivos básicos. Houve mudanças entre os próprios presidentes, mas, a partir do Costa e Silva, entrou uma ala mais nacionalista, desenvolvimentista das Forças Armadas no poder, que se caracteriza pelo longo delfinato. Delfim Netto dirige a economia brasileira desde 1967, com o Costa e Silva, até Geisel, ou seja, até 74. São sete, oito anos em que ele faz uma política muito centralizadora, muito autoritária, com o controle de preços, e assim por diante. É o ‘Milagre Brasileiro’: a inflação cai, e o Brasil tem um crescimento que hoje corresponde ao chinês. Na época, seria brasileiro, ou seja, o Brasil estava crescendo 7%, 8%, 9% ao ano, com uma enorme expansão, sobretudo, na atividade industrial.
O custo disso foi uma maior desigualdade. Havia total repressão ao movimento sindical e também camponês. Os trabalhadores tinham uma posição muito favorável no mercado de trabalho, porque, se queriam aumento de salário, não podiam se organizar e fazer greve, mas podiam mudar de emprego. É o que acontecia. Você mudava de emprego e, provavelmente, o seu próximo emprego lhe daria um salário melhor.
Havia uma certa mobilidade entre as empresas, elas corriam atrás dos trabalhadores, oferecendo salários melhores. Foi um período de aumento da renda dos que já estavam em cima, dos trabalhadores qualificados como o Lula, por exemplo, o Jair Meneghelli. Em compensação havia milhões e milhões de brasileiros que ainda estavam no campo e que não se beneficiaram de nada disso. A franja mais pobre das favelas, das periferias, os trabalhadores pouco escolarizados ficaram para trás. O balanço disso, isso eu estudei, é que houve uma redução acentuada da pobreza absoluta no Brasil. Não houve Fome Zero. A fome que havia diminuiu bastante, menos gente passava fome, mas a distância aumentou".
Cuba
"O significado político e ideológico de Cuba... é difícil exagerar. Veja, foi uma revolução de estudantes. O partido comunista participou muito lateralmente, só no fim da guerra, um pouquinho antes da vitória. Era muito parecido com o que era o movimento popular no Brasil, na Argentina e assim por diante. Fidel Castro, Che Guevara, sobretudo, eram heróis nossos. A América Latina tinha sido finalmente capaz de fazer uma revolução de esquerda consistente que mudou tudo uma única vez.
O entusiasmo com Cuba era extraordinário e inspirou inúmeras lutas armadas, não só na Bolívia, no Peru, na Colômbia, mas no Brasil também. Antes mesmo do golpe, havia gente, sobretudo, nas ligas camponesas se armando no sonho de repetir a revolução cubana no Brasil. Foi uma coisa, no final, muito limitada, mas eu me lembro que encontrei Francisco Julião, a grande liderança das Ligas Camponesas. Ele era deputado, estava aqui em Brasília, nós estávamos conversando sobre a situação. Isso devia ser 63 para 64, ele me garantiu que levantava 20 mil camponeses armados na hora em que ele quisesse. Era uma das formas de dizer que, se havia ameaça de golpe, nós tínhamos condições de ir em frente".
Fluxo de capitais
"A questão da remessa de lucros na época (pré-64) tornou-se absolutamente vital. Nós estávamos inadimplentes, não estávamos conseguindo pagar as dívidas de curto prazo que o Juscelino fez. Vale lembrar que o Juscelino foi ao Fundo Monetário Internacional e, quando viu as condições que ele teria que cumprir para obter o apoio do fundo, mandou a delegação ir embora. Ele disse: ‘Isso eu não faço’. Mas, deixou uma situação difícil para o seu sucessor. Jânio fez uma desvalorização e conseguiu, com isso, dar uma avaliada, mas depois chegou João Goulart, e a inflação tornou tudo mais difícil, chegou a 80%, uma coisa assim.
Então, a lei das remessas de lucro era para atender uma necessidade imediata, tentar conter a hemorragia de dólares e ver se o Brasil se agüentava. Nós, na época, importávamos mais de 80% do petróleo consumido no país. Se tivéssemos ficado realmente sem conseguir comprar o petróleo, como aconteceu com Cuba em 1990, teria sido uma tragédia para o país. Feito o golpe, as portas se abriram e entrou mais capital no Brasil do que estávamos precisando. Uma parte do problema era um boicote político ao Jango, que se transformava em crise cambial. Ela sumiu inteiramente, o Brasil passou a exportar produtos industriais e a balança de pagamentos tornou-se não equilibrada, mas artificialmente equilibrada por enormes empréstimos que nós tínhamos grande facilidade em tomar.
Nessa época do regime militar, o Delfim, todo fim de ano, ia aos Estados Unidos fechar a balança de pagamentos, essa era a expressão que se usava. Ele trazia ao Brasil os bilhões de dólares necessários para equilibrar a balança de pagamento. Claro que a dívida ia crescendo, tanto assim que, em 1982, na Crise da Dívida, nós temos a maior dívida externa do mundo naquele momento. Mas, pelos menos até 1980, era muito fácil obter todo o dinheiro necessário pra equilibrar as contas, em 81, os nossos credores disseram: ‘Não, agora chega. Agora vocês vão arrumar a casa’. E aí, o Delfim cortou a despesa pública de uma forma tão selvagem, interrompeu todas as obras públicas, tudo que estava se fazendo, que ele provocou a maior crise que nós estivemos desde os anos 30. Aí foi desemprego em massa, entramos nas décadas perdidas, começou o período atual".
Socialismo de Delfim
"Delfim Netto foi meu professor de Estatística Econômica. Era excelente, uma pessoa extremamente inteligente e muita culta. O Delfim leu Marx, leu tudo que há de importante. É um leitor absolutamente maníaco, acumula livros, e mantinha sempre um grupo grande estudantes ao se redor. Eu nunca fiz parte diretamente desse círculo, mas ele me ofereceu para trabalhar com ele, quando eu me formei. Eu acabei não aceitando, depois fomos professores juntos, eu muito mais jovem do que ele, e mais ou menos rivais, ou seja, eu era o professor da esquerda da faculdade, e ele pela direita.
Houve um episódio interessante, que foi ainda antes do golpe, em 63, em que se colocou a questão da reforma universitária. Havia greve geral e a Associação dos Ex-Alunos, dominada pelo pessoal do Delfim, fez um debate com os alunos em greve. O que era a reforma universitária, que universidade queríamos. Eu fui o porta-voz dos grevistas que lutavam por uma reforma universitária, e o Delfim do outro lado, polemizamos juntos. Isso não estragou nossas relações pessoais.
Ele se denominava socialista. Quando nós nos conhecemos, ele me disse: ‘Não, eu sempre fui socialista, tentei me aproximar do Partido Socialista, mas não deu etc.". Ele já trabalhava para os grandes capitalistas em São Paulo, profissionalmente. De modo que, até hoje, nós nos damos razoavelmente bem. A gente conversa, não somos amigos, nem há chance para isso, mas não somos inimigos também.
Em 1974, eu fui preso, em função do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, entidade fundada em 1969 por professores afastados das universidades pela ditadura), no momento de rebeldia da linha dura contra o Geisel. Vários de nós fomos presos, eu fui preso, junto com Vinícius Caldeira Brant. Fiquei uma semana preso, eu soube depois que o Delfim interveio ao meu favor. Naquele momento, ele era embaixador brasileiro na França. O fato é que disse que eu deveria ser solto, algo assim. Eu sou grato por isso. Quando eu saí. Eu mandei um telegrama depois ao Delfim agradecendo, ‘eu soube o que você fez, eu queria lhe dizer que lhe sou muito grato’".
Resistência intelectual
"Houve um vasto movimento de reação ao regime militar, com um momento de abertura política, que foi o regime do Costa e Silva, até o fim de 1968, até 13 de dezembro, quando eles fizeram o Ato Institucional número 5. O ano de 1968 foi de forte movimentação estudantil, mais uma vez pela reforma universitária, mas, na verdade, era mais um protesto contra a ditadura. Isso levou depois a uma repressão absoluta. Quando houve o AI-5, nós todos sabíamos que seríamos expulsos da universidade. Não havia dúvida. A universidade era o fulcro da resistência, nós todos tínhamos participado. Ainda assim, se passaram vários meses, eu mandei fazer minha contagem de tempo, sabia que seria aposentado.
E realmente, no dia 30 de abril, saiu a primeira lista, com Florestan Fernandes, com a primeira nata da universidade, que foi expulsa. No dia seguinte, estava eu na lista com os mais jovens, José Arthur Gianotti, Fernando Henrique Cardoso... Eu estou falando da turma da Universidade de São Paulo, mas foi no Brasil inteiro, na Bahia, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul. Eles fizeram uma lista nacional de intelectuais que consideravam subversivos. Nunca se soube qual foi o critério de escolha. Eu me senti muito honrado de estar lá, mas vários amigos achavam que tinham que estar lá também e não estavam. O que nós menos queríamos é que eles se solidarizassem publicamente conosco, com medo de que eles também fossem atingidos.
Nosso esforço, dos que íamos sair da universidade, era que o máximo das pessoas de valores, democratas, ficassem na universidade. Nós pedimos, pelo amor de Deus, nenhuma manifestação publica, nenhum manifesto, nada, porque, se vocês fizerem isso, amanhã, vocês estão fora também e é pior para a universidade. E conseguimos evitar isso. Houve várias reuniões de professores com vontade de se solidarizar com a gente. Era totalmente arbitrário, o Fernando Henrique sim, me lembro que outros não, Fernando Novaes, que era nosso amigo, não foi aposentado, Juarez Brandão Lopes, que depois trabalhou conosco no Cebrap também não foi. Devia ser pelos acasos dos nossos prontuários policiais, imagino eu".
Se...
"Se não tivesse havido o golpe?... Eu acho que nós teríamos hoje uma democracia vamos dizer, mais consolidada ainda. Ela já está bastante consolidada, mas ainda é relativamente nova. Nós temos hoje 15 anos da Constituição democrática de 88. Nós teríamos provavelmente tido uma constituição que já estaria em vigor há quase 60 anos. Teria havido mais continuidade dos partidos políticos, da vida parlamentar, uma série de traumas profundos que o país sofreu teriam sido evitados... Teria sido melhor para o país. Agora, uma série de importantes avanços que houve, pela resistência ao regime militar, combinada com algumas coisas que eles conseguiram fazer no milagre econômico, não teria havido".
Elo perdido
"Em 1950, quando eu tinha 18 anos, o João Mangabeira, que eu já citei, era deputado e estava apresentando um projeto dando liberdade aos sindicatos, contra a unicidade sindical. Isso foi muito discutido na época no Partido Socialista, nós todos fomos a favor, mas o Partido Comunista e a maior parte dos sindicatos foi veementemente contra, inclusive os sindicalistas do Partido Socialista. Seria o fim do sindicato, você imagina, acabar com o imposto sindical... Isso foi um debate que nós fizemos entre 1950 e 1954. Um dos meus mestres ali foi uma figura como João da Costa Pimenta, que era o líder gráfico da greve de 1917. Tinha sido anarquista, depois fundador do Partido Comunista, e acabou na sua velhice no Partido Socialista, nos ensinando o que é um sindicalismo realmente autêntico e independente do Estado. Essa bandeira foi relevantada pela CUT (Central Única dos Trabalhadores), nos anos 80. E hoje, está na reforma que nós estamos fazendo, a chamada reforma do Fórum Nacional do Trabalho Ela garante a liberdade sindical. A liberdade sindical, voltando a sonhar com 1950, vai se realizar provavelmente a partir de 2004".
Refazendo
"Por causa da repressão no regime militar, as pessoas que entraram no movimento social nos anos 80 têm a impressão de que o passado é uma coisa muito obscura. Na verdade, há claras ligações com aquela época. A CUT é a herdeira de um pensamento de autonomia, de liberdade sindical, de presença dos trabalhadores organizados dentro das empresas, é a tradição do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Como essa tradição passa, provavelmente vai ter que ser pesquisado. Provavelmente é por meio de pessoas que viveram nesse período e ficaram no movimento operário. No caso do MST, é sabido que ele se inspira nas Ligas Camponesas. Há uma figura interessantíssima que faz o elo, que é o Clodomir de Moraes, o segundo depois do Francisco Julião. Ele foi preso na época do golpe e ficou numa cela com um advogado pernambucano chamado Paulo Freire. Os dois discutiram muito - porque estavam presos, não tinham mais o que fazer - sobre como fazer uma educação emancipatória. Isso deu o MST".