Maria da Conceição Tavares: "O planejamento democrático foi substituído por um Estado autoritário"

29/03/2004 - 20h09

Brasília, 29/3/2004 (Agência Brasil - ABr) - A portuguesa Maria da Conceição Tavares, 73, chegou ao Brasil em 1954 e se diz "espectadora atônita" dos acontecimentos que culminaram no Golpe Militar de 1o de Abril de 1964. Então funcionária do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (à época, apenas BNDE), a economista se considera integrante da chamada "esquerda positiva", frente de pensadores do "planejamento democrático". O movimento culminou na criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e na elaboração do Plano Trienal, no governo João Goulart. Sempre à frente dessas iniciativas, estava o economista paraibano Celso Furtado, ministro do Planejamento.

Após a redemocratização, Conceição milita no PMDB. Em 1989, transfere-se para o PT, partido pelo qual já cumpriu um mandato de deputada federal pelo Rio (1995-8). Com o golpe de 64, a tentativa de pensar o país em parceria com os mais diversos setores da sociedade foi substituída por um planejamento "autoritário". A passagem, no dizer de Conceição, deixa um ranço que permanece até hoje. À Agência Brasil, a economista relaciona a instabilidade macroeconômica do período João Goulart aos desafios atuais do país. Leia a seguir os principais trechos do depoimento.

Convulsão social

"O comício da Central (na estação Central do Brasil, no Rio, em 13 de março de 1964) foi, a meu ver, excessivo, porque a situação já estava muito incerta - a coisa das velhinhas, da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Depois do comício, o caldo engrossou. Entre 13 e 31 de março, o coro pelo golpe foi aumentando.

Eu não participei do comício da Central, só vi pela televisão e pelos jornais. Tampouco participei da coisa da UNE. Eu era simplesmente uma economista, uma técnica do desenvolvimento, uma espectadora, eu vi atônita a rapidez com que você pega um movimento num crescimento em um ano. É claro que já tinha precedente, já vinha instável desde a saída do Jânio, mas o que eu estou dizendo é como pegou fogo em pouco tempo com a instabilidade econômica e a coisa das reformas mal trabalhadas. Isso foi se embaralhando, com uma coisa conspiratória de um lado, intervenção do outro, e terminou da maneira trágica que terminou".

Balaio de reformas

"As Reformas de Base eram a proposta, e havia um amplo apoio a elas. O problema é que foi tudo junto. A reforma agrária foi a que deu mais confusão, outra foi a lei do capital estrangeiro. Essa chegou a passar, acho que o ministro da Fazenda era o Carvalho Pinto, e ele conseguiu, com apoio amplo do Congresso, passar o decreto de capital estrangeiro, que durou até o governo Fernando Henrique Cardoso, aí foi tirado, não havia mais distinção entre nacional e estrangeiro, nenhum controle. A outra reforma foi a educacional, comandada por Darcy Ribeiro, mas o problema era que, como a universidade estava paralisada, contida e muito vigiada por causa dos estudantes, a coisa universitária levou muita pancada por razão disso".

Incêndio da UNE

"A imagem mais viva que tenho do golpe é como um pesadelo. Eu trabalhava na Cepal/ BNDES (Comissão Econômica para a América Latina/ Banco de Desenvolvimento Econômico e Social, grupo misto das duas instituições, formado por Celso Furtado). Um dia, voltando do trabalho pela Praia do Flamengo, avistei a União Nacional dos Estudantes (UNE) em chamas. Mais tarde eu soube que o conservador diretório acadêmico da minha escola de Economia havia ajudado a atear fogo ao lugar.

Quem é mais visado, como sempre, nas situações de agitação? Os estudantes reagem muito, a favor e contra. No caso do Rio de Janeiro, eles se dividiram. Os de Direito e de Economia saíram em defesa do golpe. Eles usavam lenços diferentes dos demais. A pressão do lado dos estudantes podia ser personificada pela arrogância do jovem presidente da UNE, José Serra, que depois virou meu amigo, mas eu tenho de reconhecer que ele era daqueles que botam o dedo na cara de todo mundo".

Conversão de classes

"Em 1964, o movimento estudantil desabava, porque tinha a esquerda e a direita, uns brigando com os outros. Não é como depois de 68, em que o movimento estudantil já era todo de esquerda. Em 64 não era, tinha a esquerda e a direita. Vamos nos entender, o pau cantava na universidade. Ademais, tinha o movimento camponês e o movimento sindical aberto, isso era uma perturbação, a tolerância com a democracia de massas e com o movimento social era nula. Os sem-terra de então eram as Ligas Camponesas. O movimento sindical tinha pelo menos três bandas, como sempre. Uma mais ligada ao trabalhismo histórico, outra mais ligada ao antigo Partido Comunista e a outra, paulista, era o que chamamos hoje de sindicalismo de resultado".

Esquerda Positiva

"Além do Serra, outra figura exponencial era o Leonel Brizola, que fazia pressão sobre a política econômica. Eu, contudo, me alinhava a mais com a linha de Santiago Dantas e de Celso Furtado, a que chamamos ‘esquerda positiva’. Éramos favoráveis às reformas, ao planejamento democrático, a deixar que movimentos sociais não fossem reprimidos e caminhassem por mão própria, a não misturar estação e a separar a política econômica corrente - isso está no Plano Trienal que o Furtado elaborou - da política de reformas, de desenvolvimento.

A gente tinha idéia dos níveis das políticas e de quais eram os tratos políticos que correspondiam a elas, enquanto que, evidentemente, quem é mais voluntarista mistura tudo e acha que é ‘na lei ou na marra’. Essa não era a minha. Eu sou da idade de alguns ministros que sobraram vivos. Almino Affonso, do Trabalho, que era um sujeito moderado, o Waldir Pires...

Eu era da geração desenvolvimentista, de planejamento democrático - a idéia de ‘participativo’ não existia ainda, àquela altura chamávamos isso de planejamento democrático. Na minha geração, os movimentos sociais se organizavam e lutavam pelos seus interesses, que deviam ser representados".

Imprensa amordaçada

"A imprensa, como todo mundo sabe, ficou censurada, embora a maioria dos jornalistas não tenha sofrido perseguição no princípio. A perseguição imediata de 1964 foi sobre os políticos. Só depois, com o AI-5, o movimento estudantil voltou às ruas, já em 1968, e a coisa foi mais pesada".

A direita

"Parte da direita que apoiou o golpe depois voltou atrás, porque percebeu, como o próprio Carlos Lacerda, que não ia ganhar nada com o regime. Ou seja, não ia haver eleições, e isso não agradava a direita convencional. Quando apoiaram o golpe, eles achavam que, afastando Jango e Juscelino Kubitschek, o próximo presidente seria o Lacerda. Percebendo a falta de espaço, começou a chamada Frente Ampla pela luta democrática, que se arrastou durante toda a ditadura nos tempos de chumbo. Mas esse não era ainda o clima do golpe.

No golpe, uma parte da direita era golpista por razões interesseiras, por temor de que JK ganhasse novamente. A outra parte era contrária à agitação social e, ademais, havia uma proposta de reformas que feria muitos interesses. Como diria o velho Miguel Arraes, não dá certo enfrentar, ao mesmo tempo, o latifúndio e o imperialismo".

Política reformista

"Já no exílio, percebemos, de uma maneira irônica e amarga, que a proposta era apenas reformista, não tinha nada de revolucionária. O Plano Trienal era normal, com a parte monetária igual a qualquer outro, e a parte desenvolvimentista tradicional e mais as reformas. No que diz respeito à política macro, tirando o Santiago e o Furtado, não foi possível sustentar nada, derrubavam ministro da Fazenda um atrás do outro. Minha sensação é de que do ponto de vista da política econômica teve muita mudança de ministro. Pelo lado da pressão sobre a política econômica, o Brizola era a figura exponencial.

Não dá certo. Quando você tem que mudar uma política, muda, mas é por dentro, política macro não é um negócio pra ficar dando coice, mudar o ministro da Fazenda não sei quantas vezes, isso não dava certo. Houve vários ministros da Fazenda poderosos, importantes. E a política macro foi esse horror. Já a parte das reformas escapou. Não passavam no Congresso, onde havia uma maioria contra elas".

O resultado

"O golpe interrompeu a construção democrática do País. Não é que interrompeu o planejamento, mas converteu o planejamento em algo autoritário. O Estado, no que intervém, passa a ser autoritário e encaminha as novas gerações de esquerda para achar que só a sociedade civil é que entende. Dentro dessa concepção, o Estado é ruim, o planejamento é ruim, democratizar o Estado não é importante porque você tem que democratizar a sociedade, como se fosse possível fazer uma coisa sem a outra. Esse é o equívoco que decorre da construção interrompida. Celso Furtado tem razão, ali estava se construindo uma sociedade que ganhava musculatura na luta social. Tentava-se um projeto de reformas que ia modernizar e democratizar o Estado, porém isso foi abortado. No lugar, cresce um Estado desenvolvimentista autoritário, planejador e centralizado.

Evidentemente, o pessoal olhou isso e disse, "Ah! Então sou contra, aí deu esta coisa que é uma canseira, da qual nós mesmos somos vítimas - nós não, porque eu não sou vítima de nada, sou velha -, mas da qual os mais jovens são vítimas até hoje.

Para evitar erros

"Convém saber a História, primeiro para não repetir os mesmos erros, isso é bom. Segundo, para clarificar os conceitos: Estado democrático, planejamento democrático, participação social, essas coisas. A sociedade se move e pode ser interrompida por um período muito grande, por uma serie de equívocos, isso é importante. Obviamente não estamos num período maravilhoso em matéria de crescimento, política econômica. Convém, portanto, não disparatar, convém estar atento e não me aprontar outra vez uma tonteira.

Porque, realmente, aqui se repete a cada década besteira atrás de besteira, se avança lentamente. O movimento em massa descontinua, a sociedade continua avançando, você tem que democratizar o Estado, tem que avançar na reforma, isso é o óbvio. Você não pode é ficar contra o Estado e as reformas, que a gente chamava ‘de base’. Continua havendo resistência, é só olhar a questão agrária.

Também não pode ficar liberal a economia. Mas não dá para ficar politicamente ‘basista’ a vida inteira. Quem trabalha na base, trabalha na base. São dois corpos, o administrativo e o político do Estado. Não são coisas fáceis de administrar, controlar. Senão fica a idéia messiânica de que o presidente pode tudo e todos os erros que acontecerem no país é culpa do presidente, coisa que não dá certo".