Brasília, 29/3/2004 (Agência Brasil - ABr) - Naquele 1o de abril de 1964 em que João Goulart foi deposto do palco presidencial, o soteropolitano Gilberto Passos Gil Moreira, 61, ainda ensaiava os primeiros acordes. Apenas iniciava a carreira que o imortalizaria como o cantor, compositor e hoje ministro da Cultura Gilberto Gil. Entre audições dos conterrâneos Dorival Caymmi e João Gilberto, Gil estava envolvido nas intensas articulações culturais do ambiente universitário baiano pré-golpe, como secretário de cultura do Centro Acadêmico da Escola de Administração da Universidade da Bahia.
Em seu depoimento à Agência Brasil, Gil narra seu cotidiano da época, entre as visitas à namorada Belina e a "caipirinha ideológica" do período, que adicionava literatura marxista a uma intensa mistura entre cineastas, artistas plásticos, músicos, atores e dramaturgos. Um coquetel que daria, mais tarde, no Tropicalismo, mas foi amargado pela violência do Ato Institucional número 5, em 1968.
A partir dali, Gil e vários de seus colegas seriam levados ao exílio na Europa para fugir de uma repressão que já incluía abertamente a tortura e o assassinato de militantes de esquerda. Um tempo de "lembranças desconfortáveis", bem diferente da alegria baiana do início dos anos 60, tempo embalado pela união de estudantes, operários e camponeses, como lembra Gil. Leia a seguir os principais trechos da conversa.
Bahia
"Nós estávamos em Salvador. Eu era muito jovem ainda. Éramos curiosos. Tudo girava em torno das coisas que estavam ali em Salvador. Em 64, eu estava no quarto ano da Escola de Administração de Empresas. Era secretário de cultura do centro acadêmico. Tínhamos um trabalho muito forte com o CPC, o Centro Popular de Cultura, ligado à UNE (União Nacional dos Estudantes).
Os estudantes tinham um trabalho intenso em todo o Brasil nessa área de cultura, com política, com militância. Tinham relações com o movimento operário e toda aquela movimentação caracterizava a mobilização da parte mais jovem e mais inquieta da sociedade civil.
Salvador tinha, portanto, uma intervenção muito forte nesse sentido - em tudo, eu diria. Principalmente sob a liderança do movimento universitário. O movimento estudantil abrangia o movimento secundarista, que tinha também uma atuação muito grande. Mas a grande locomotiva era o movimento universitário. Numa universidade que, àquela época, vivia um período muito criativo e bonito. Era a universidade que Edgar Santos tinha implantado, sob o signo de inovação, de arrojo, de aventura e criatividade".
A universidade
"O golpe de 64, nesse sentido, lá na Bahia em particular, teve mesmo o sentido de interrupção de um processo. Prejudicou fortemente aquela atividade que se fazia na Bahia a partir da reitoria da universidade, com a escola de música, a escola de teatro, a escola de dança.
Havia uma efervescência muito grande. Todo o movimento das artes plásticas tinha uma presença muito forte. Muitos jovens pintores e artistas plásticos tinham uma atividade intensa. E se relacionavam com muita permeabilidade, com muitos setores da vida cultural da Bahia.
A música, por exemplo, tinha uma interação muito grande com o pessoal do teatro. Foi exatamente o pessoal do teatro da Vila Velha, João Augusto, Othon Bastos, Petrovich, todo aquele pessoal, que acolheu o grupo dos jovens músicos baianos. O nosso, por exemplo, que deflagrou toda aquela coisa, para mim, para (Maria) Bethânia, Gal (Costa), Caetano (Velloso), Tom Zé, para todo esse grupo.
Aí, sem dúvida alguma, havia todo aquele clima de quase terror, porque o terror propriamente dito só chegou depois do AI-5 (Ato Institucional número 5), em 1968, com a tortura e a eliminação de pessoas e militantes. Isso tudo veio depois. Mas, em 64, o primeiro golpe, no 1o de abril, já determinou uma dificuldade muito grande para o movimento cultural. Em Salvador, em especial, porque havia esse particular clima favorável a uma ebulição".
Golpe
"No dia do golpe, eu tenho impressão de que estava na universidade. Já na véspera, há uns dois ou três dias, a gente sabia que a coisa estava começando. Especialmente nós, estudantes, que tínhamos militância direta lá nos centros acadêmicos. Nos mantínhamos muito informados. Estava todo mundo ligado nas rádios, nas agências de notícias.
As redações de jornais estavam em contato direto com as lideranças estudantis e tal. Na noite anterior, eu tinha estado na casa da minha noiva, Belina. Nós conversamos sobre o clima de pré-golpe. As preocupações já estavam muito fortes no ar. No dia seguinte, no dia 1º, acho que logo pela manhã, a gente teve a notícia.
Estávamos todos, se não na escola, na escola de engenharia, que concentrava o movimento estudantil à época. Era ali no Forte de São Pedro. Para lá se dirigiam os líderes de todas as escolas. Era ali que a União dos Estudantes da Bahia fazia seu quartel-general. Ali era a localização das atividades centrais, dividida entre a Escola de Engenharia e a Escola de Economia".
Resistência
"A Escola de Medicina também tinha uma atividade que servia mais pra juntar muita gente para as manifestações públicas. Ficava no Largo do Terreiro, uma área bem central da cidade. Lá, por exemplo, houve a resistência dois ou três dias depois golpe, durante a guerra da legalidade, foi deflagrada a partir da resistência do Jango, do Rio Grande do Sul, do Brizola.
Esse momento todo foi concentrado na Faculdade de Medicina no Largo do Terreiro. Ali ficavam duzentos, trezentos estudantes reunidos. O Exército ocupava o Largo todo. Houve momentos de confronto mesmo entre estudantes e Exército, Exército e Polícia Militar. E eu estava ali, ali em Salvador. A gente circulava de casa para escola, da escola para outras escolas e, como eu namorava a Belina, toda noite eu estava na casa dela por ali.
Nós éramos muito jovens, a informação sobre política e sobre sociedade que a gente tinha era muito dirigida pela visão esquerdizante que predominava no movimento estudantil na época. Quem não era de esquerda propriamente, formalmente ligado ou à Ação Popular, ou à Polop (Política Operária), ou a uma daquelas associações de estudantes e de operários, era o que se chamava de linha auxiliar.
Eram alguns estudantes de direita que resistiam frontalmente a toda essa mobilização. Os militantes engajados e as chamadas linhas auxiliares, aqueles que simpatizavam com o movimento, tinham uma noção muito, ainda que não profunda, mas uma noção clara sobre o que seria injustiça social, quais eram os atores nesse quadro, o problema do capital estrangeiro, a questão do imperialismo. Eram as palavras de ordem dessa militância e dos quadros simpatizantes dessa militância".
Iniciação a Marx
"Eu era do quadro simpatizante. Eles mesmos, os meninos, os outros estudantes que militavam diretamente, me consideravam como ‘linha auxiliar’. Tinha minhas dificuldades, não era o que se denominava na época de comunista, mas também não era um rapaz de direita. Eu dirigia a parte musical do CPC, colocamos uma escola de samba no carnaval daquele ano, era o secretario de cultura da escola de Administração.
Estava começando a ler Marx, a me interessar pela literatura ligada a isso. Tinha noção de quem era Lukács, quem era Gramsci, quem era Marx. Lia pequenos trechos de livro desse pessoal todo. Esse era o clima. E a UNE era uma entidade muito vibrante nesse sentido. Ela tinha um papel muito grande, muito forte, articulava muito facilmente com a classe operária com os setores das lideranças operárias.
Havia essa coisa, o movimento operário e o movimento estudantil eram movimentos muito ligados. Estava no momento do país sob a égide desse processo esquerdizante mesmo. Esses movimentos sociais estavam em embrião ainda naquela época. Uma sociedade muito menos complexa do ponto de vista da estratificação do que hoje, a classe operária era uma classe sem grande complexidade.
Não havia a complexidade de São Paulo, não havia um ABC, toda essa elite operária que acabou criando mais tarde o PT, na década de 70. Era uma classe operária, eu diria, ainda clássica do ponto de vista internacional, ela ainda era um embrião do que tinha se tornado a classe operária na Europa e em outros lugares".
Formação ideológica
"Havia também os setores camponeses, que àquela época também eram diferentes, muito diferentes do que hoje é o MST. Todos, de uma certa forma, se subordinavam a um processo geral de lideranças que vinham dos grandes centros, lideranças urbanas, nacionais. De uma certa forma, obedeciam a uma lógica do cosmopolitismo político-ideológico internacional, com muita influência da Itália, da França, da área soviética.
Muito do comunismo e do esquerdismo era informado pelo processo que havia na União Soviética e na China, países que davam as bases das grandes teses ideológicas. Do ponto de vista mais prático, do ativismo mesmo, do ponto de vista da interpretação da análise, do lado intelectual, eram a França e a Itália que influenciavam muito. Mas eu, por exemplo, naquela época ainda estava muito naquela coisa de saber quem era quem, quem era Marx.
Eu lembro que trabalhava na alfândega e levava ‘O Capital’ (de Karl Marx), um volume imenso, de novecentas e tantas páginas. Ficava lendo ali, lutando para entender tudo aquilo. A gente não tinha o conhecimento de economia, sobre política mesmo e social. Tinha muita dificuldade de entender aquilo tudo.
Havia, portanto, uma presença estudantil muito forte, porque eram grupos urbanos ligados à universidade, ligados a setores de porte intelectual mais sólido e articulados com o movimento operário, que tinha também já uma organização muito interessante, começando, e o setor camponês também. Eram o movimento estudantil, operário e camponês juntos".
Criações populares
"Essa articulação entre movimento estudantil, operário e camponês, sob a batuta de um grupo de intelectuais de São Paulo e do Rio, de teóricos, qualificou bastante os criadores e artistas populares a trabalharem nessa perspectiva de uma intervenção mais uníssona, mais definidamente contra a questão da injustiça social, por uma tese revolucionária.
Isso acabou influenciando muito fortemente as artes, o teatro, música, o Cinema Novo que veio, que é uma coisa que surge daí, os movimentos musicais do Rio de Janeiro, São Paulo, Vianninha, Augusto Boal, Edu Lobo, Chico Buarque, Geraldo Vandré. Todos os artistas, músicos que vieram de uma certa forma contribuir para isso.
O tropicalismo é um estágio seguinte, mas é filho dessa movimentação toda. Um estágio que de certa forma trazia uma crítica a esse primeiro movimento da visão esquerdizante, mas ao mesmo tempo é descendente desse movimento. Acho que esse movimento político-ideológico qualificou, instrumentalizou.
Essa influência desse processo que se deu ali entre os 60 e os 70 permaneceu, prosseguiu, foi levada adiante com todo um trabalho que continua sendo feito por compositores durante a década de 70 toda, vai até a abertura".
São Paulo dos anos 60
"Cheguei a São Paulo em 65. Primeiro, teve o impacto de ir para uma cidade grande, onde os viadutos começavam a ser construídos, todos os espigões. Uma cidade já totalmente verticalizada, com as grandes avenidas, as grandes construções, uma densidade de ação e reflexão sobre o urbanismo. A questão o social também com a periferia.
No Rio e em São Paulo, predominava a questão da periferia, das vilas em São Paulo e das favelas no Rio de janeiro. Isso teve um papel muito forte na maneira como os movimentos sociais se desenvolviam, teve um impacto muito grande nesse sentido, o cheiro de óleo queimado (risos), o que a gente ainda não tinha em Salvador.
Eu não diria que São Paulo parecia conservador, mas o primeiro impacto foi de encontrar um certo deserto. Na Bahia, a gente tinha uma atividade enorme, articulada entre teatro, cinema e música, artes plástica e tal. Mas a gente não viu isso em São Paulo. Logo em seguida, em contato com o Teatro de Arena, retomamos o contato com esse universo dos setores culturais articulados.
Havia em São Paulo, como havia em todas as cidades do Brasil naquele momento, uma articulação muito forte entre movimento estudantil, movimento cultural, cinema, teatro, musica e o movimento operário, com extensão no caso de Pernambuco, do Nordeste, do Rio Grande do Sul, áreas mais periféricas também, mas com uma articulação com o movimento camponês".
Dimensão heróica
"Quando a gente teve a notícia do golpe, sentiu muita coisa. Medo, frustração revolta, indignação, um certo entusiasmo com relação a buscar um enfrentamento, a dimensão da luta, o viés heróico. A dimensão heróica passou a fazer parte das especulações. Todos aqueles jovens daquela época começaram a considerar a possibilidade da dimensão heróica das suas vidas. E isso acabou se comprovando, especialmente depois de 1968, com a tortura, a eliminação e a perseguição sistemática dos quadros militantes. Essa visão heróica se efetivou através da resistência".
Desgosto
"Não gosto muito de lembrar essa época, porque foi difícil, as lembranças são desconfortáveis. Mesmo em 64. Aquela semana de 64, a resistência, a greve da legalidade, aquilo tudo foi um tormento, mexeu muito com a gente, esse misto de revolta, medo e impulso heróico, tudo isso tinha. Lá em Salvador, na Faculdade de Medicina, quase entraram. Eu me lembro, eu, o Ronaldo Duarte, vários estudantes na época fazendo barreira humana na porta da faculdade de Medicina, com os soldados empunhando metralhadoras e tudo.
Aquela tensão, teve tudo, teve a hora até da possibilidade da entrega da vida. Aquilo tudo era ingrediente, ainda que fragmentariamente, residualmente, mas tudo isso entrava na formação daquela caipirinha (risos) que nos embriagava a todos. Aquela caipirinha política-ideológica, que era a nossa bebida naquele momento".