C&T - Há um comportamento estabelecido entre o psicólogo e o cliente?
Sandra - O psicólogo tem um código de ética. Para trabalhar, o profissional tem que se associar ao Conselho da categoria, como qualquer profissional autônomo. Não existe nenhum contrato, existe até uma minuta que o Conselho recomenda ao profissional, mas na verdade, não existe nada oficializado, com a maioria dos profissionais liberais. Então, a pessoa que me procura, busco conversar para verificar se tenho habilidade, capacidade para trabalhar com aquele caso e aí fica dentro da minha consciência e da minha responsabilidade profissional. Atualmente, alguns profissionais têm contrato assinado. Tenho um formulário que entrego ao cliente, que seriam, mais ou menos, as normas de funcionamento. Mas não tem nada que formalize a relação médica x paciente. Essa metodologia varia de acordo com cada profissional.
C&T - Transgredir dá prazer, psicologicamente falando?
Sandra - Dá. Nesse caso, temos que pensar em várias formas de transgressão. Você tem uma transgressão, por exemplo, que é a do adolescente. Que nós chamamos de uma transgressão saudável, pois são atos que não vão implicar em riscos, danos, alguma coisa que envolva uma lei, a lei penal, código civil e tal. Mas são atos que o adolescente faz no sentido de desafiar muito a lei familiar, para tentar estruturar seus próprios valores, suas regras, essa mudança que o adolescente faz e precisa fazer. Então, essa é uma transgressão, que muitas vezes, nem dá para ver e os adolescentes sofrem muito com ela. Um exemplo disso é quando os pais mandam os filhos chegarem em casa em uma determinada hora, vamos supor à meia-noite. Aí, o filho chega embaixo do prédio quinze para a meia-noite e só sobe em casa à meia-noite e quinze. Quando entra e, por acaso, esbarra em algo que faz bastante barulho, de propósito, fica bastante frustrado se ninguém desconfia que ele chegou àquela hora. Isso é uma forma dele medir o limite, e mesmo uma forma de medir se ele é ou não respeitado pela família, se a família está valorizando ou não. Se ninguém fala nada, ele pensa: ninguém toma conta de mim, como é que é isso? Agora, a transgressão que implica em ato infracional, em coisas mais graves, essas, muitas vezes, têm um ato de prazer. É um prazer doentio, mórbido.
C&T - No caso dos adolescentes, eles transgridem para chamar a atenção dos pais?
Sandra - O adolescente quer chamar a atenção do pai e quer que o pai dê limite, que lhe diga não. Isso dá confiança no que a família está dizendo para ele. O que a lei familiar está dizendo para ele. Se você fala que o adolescente tem que chegar em casa à meia-noite e ele entra à uma hora da manhã, e nada acontece, que moral, que respeito, ele aprenderá a ter? É a mesma coisa da criança, você diz à ela: não pega, ela vai pegar 500 vezes, na 501 se você deixar ela pegar, você perdeu a moral. É a questão do limite mesmo. Hoje, a gente vê muito essa questão do ato infracional, aí vai uma coisa mais grave, como um pedido de limite, um pedido de dizer: olha qual é essa lei que vocês dizem que existe e que todo mundo transgride e não acontece nada? É a tal coisa, você mata um operário na rua e paga uma cesta básica.
C&T - A cultura pode influenciar no comportamento das pessoas?
Sandra - Influencia muito. Cada vez que você vai tentar entender o sujeito, você tem de situá-lo na cultura. Tem atos que, numa determinam cultura, são considerados normais, em outras não. Ou ao contrário, pois se a gente pensa, por exemplo, nos rituais de passagem a que alguns meninos índios são submetidos para se tornarem adultos, como passar mel no corpo e deitar num formigueiro, são um absurdo para a gente. Isso, na nossa cultura, leva a pessoa à prisão por tortura. Assim, a questão cultural está sempre muito presente na nossa história. Tomando um exemplo drástico, você pega questões regionais, vemos no Brasil, por exemplo, a cultura sulista, totalmente diferente da nortista. Quando avaliamos uma pessoa, em termos clínicos, temos de levar em consideração questões religiosas. Por exemplo, em algumas religiões evangélicas, se fala de transe, muitos psiquiatras chamam isso de delírio, de loucura. Agora, dentro daquela igreja, daquela cultura, aquilo é normal. O profissional tem sempre de fazer um diagnóstico e nunca esquecer que há uma questão cultural envolvida. Caso contrário, corre-se o risco de pirar ainda mais a pessoa. Hoje, a psicologia leva muito em conta a questão cultural. Freud já falava isso na sua época, tanto que ele tem vários trabalhos importantes, que são culturais, como Platão, Moises Politeísmo, entre outros.
C&T - Existe um comportamento psicológico coletivo? Conceito psicológico do inconsciente coletivo?
Sandra - Existem comportamentos que acabam se tornando coletivos, que estão muito ligados a grupos. Voltando à questão da cultura, ela determina o comportamento coletivo. Se reparmos num adolescente, por exemplo, em um grupo, todos têm o mesmo corte de cabelo, usam o mesmo estilo de roupa, adotam o mesmo modelo de corpo. Mas eles não admitem, e discordam, mas, para eles, todos que estão no grupo são diferentes. Aquilo é um fenômeno de grupo, um grupo de massa, pois, às vezes, um grupo tem até 50 pessoas. É um mecanismo que chamamos mecanismo psicológico de identificação de grupo, que, na fase da adolescência, faz parte do processo de desenvolvimento. Mas, se pegarmos, por exemplo, uma manifestação na Esplanada dos Ministérios, aquí em Brasília, e tivermos uma pessoa extremamente pacata, quieta, e de repente, no meio da manifestação, ela sobe num caixote e faz discurso, verificamos que foi o movimento da massa que lhe deu coragem para fazer aquilo. Normalmente, ela jamais tomaria tal atitude. Nunca podemos negar a importância do grupo, do coletivo e da cultura.
C&T - A exposição aos exemplos de violência de filmes e desenhos animados influencia o comportamento?
Sandra - Os filmes e desenhos não influenciam totalmente as pessoas. Exercem uma influência, principalmente na criança. Eles são modelos de identificação. Vemos as crianças representando os filmes e percebemos que há um grande componente de imitação. Sempre digo: compramos a televisão, o rádio, o jornal porque queremos comprar, o que passa na minha casa é responsabilidade minha. De forma alguma, acho que isso é um fator a trazer violência. Agora, algumas crianças, em função do histórico familiar, da questão cultural, podem se sentir ajudadas pelos filmes e desenhos no que diz respeito à influência.
C&T - A senhora se lembra de algum exemplo nesse sentido?
Sandra - Lembro-me de uma história ocorrida aqui em Brasília há uns quatro anos, em que um menino assistiu o filme do boneco assassino e depois esfaqueou a amiguinha. Antes de tudo, esse é o tipo de filme que não é para crianças assistirem, de forma nenhuma. Na época, o filme passou na sessão da tarde, no SBT. Veja bem, esse menino vivia num ambiente agressivo, numa situação de vida agressiva, tinha um pai que havia abandonado a família, quer dizer, tinha todo um componente à sua volta. A mãe do garoto havia acabado de comprar uma televisão para lhe fazer companhia, já que ele ficava o dia inteiro em casa sozinho. Foi um absurdo, pois a vizinhança expulsou o menino da rua.
C&T - Mas outras crianças também não assistiram o filme?
Sandra - Isso é verdade. Por que ele teve aquele comportamento? Por que se identificou com aquele boneco? Se não me engano, o menino tinha oito ou nove anos. Por que ele não conseguiu fazer a crítica de ver que a faca mata, pois uma criança nessa idade já sabe o que mata e o que não mata. Quando se vai avaliar esse paciente, tem que se avaliar tudo isso, que meio cultural é aquele. O filme, sozinho, não consegue gerar uma agressividade. Se essa criança tivesse uma outra história de vida, possivelmente não teria feito isso, como outros não fizeram.
C&T - E quanto aos desenhos?
Sandra - Olhando os desenhos infantis, vemos que são extremamente violentos. Por um lado, é importante para as crianças poderem elaborar a agressividade delas. Ela processa que aquilo tudo ocorre no desenho, mas se fizer isso aqui, na vida real, haverá conseqüências. Esse é o problema, sem conseqüências tudo fica muito fácil. O problema, a meu ver, não é o filme, o desenho, e sim, a ausência de modelo, de limite, da lei. Isso sim, associado, pode gerar violência. A legislação brasileira é falha no sentido de deixar de classificar os filmes na televisão, ao mostrar cenas explícitas, de sexo etc. A televisão é formadora de opinião e, ao mesmo tempo, educativa. A mídia tem um papel importante de começar um trabalho melhor e maior em relação a isso.
C&T - O estresse ajuda a desequilibrar o comportamento com mais facilidade?
Sandra - Ajuda. Mas isso depende da história, da configuração e da constituição física de cada um. Uma pessoa que tenha uma boa estrutura física, uma sólida formação familiar, uma boa formação, essa dificilmente o estresse vai levá-la a um ato destemperado. Então, vemos que não é o estresse sozinho. O estresse é um acúmulo de angústia, ansiedade, que adoece a pessoa, ajudando a montar um quadro psicossomático, enfim é o estopim.
C&T - A depressão é uma doença psicológica?
Sandra - É uma doença psicológica que pode ter uma causa orgânica. Não posso falar da depressão só na parte de psicologia. Tem-se uma depressão endógena, que tem uma causa orgânica, e uma depressão exógena, cuja causa é externa. Aí, a pessoa vai juntando fatores. Diante de uma situação de estresse, como a morte, cada pessoa reage de uma maneira. É natural, no caso da morte, que a pessoa entre num estado depressivo, mas a tendência é entrar e sair. Mas tem gente que entra e fica. Enquanto estado psicológico, não se pode nunca generalizar, nem buscar uma causa única.
C&T - Os livros de auto-ajuda funcionam?
Sandra - Eles têm muito uma questão de indução. Se você estiver com dor de cabeça, e alguém lhe diz que um torrão de açúcar faz bem e você acredita, a sua dor de cabeça pode melhorar. É claro que depende da causa dessa dor. Então, é a mesma coisa do livro de auto-ajuda. Temos que diferenciar a auto-ajuda da auto-ajuda. Temos livros de auto-ajuda que são pilantragem e outros muito bons. Há algumas formas de auto-ajuda que lhe dão uma compreensão maior. Por exemplo, o livro "Homens são de marte, Mulheres são de Vênus", esse livro dá uma compreensão da dinâmica do homem e da mulher muito interessante, e é um livro de auto-ajuda. Mas não podemos nos esquecer que a indústria está por trás disso. Eu não diria que o livro de auto-ajuda é uma bobagem, mas tem-se que saber discriminar o que se está lendo. Nem todos os autores são profissionais da área de psicologia, psiquiatria e medicina.
C&T - Que tipo de pessoa recorre aos livros de auto-ajuda?
Sandra - Hoje, digo que quase todo mundo. É impressionante o alcance desse tipo de livro. Os livros que chamo de pilantras atingem, geralmente, pessoas com uma fragilidade maior; pessoas que querem respostas imediatas. Esse é o público pescado mais facilmente por esses livros menos sérios. Não tenho hábito de recomendar esses livros, mas quando tenho um paciente em que vejo uma coisa mais séria, não descarto a possibilidade de recomendar.
C&T - Desafiar a norma estabelecida pode ser uma catarse?
Sandra - Há um tempo atrás, foi publicada uma reportagem com adolescentes da periferia de Brasília sobre o uso de armas. Eles viviam da sensação de poder que a arma lhes dava. O fato de ter uma arma na mão dá um prazer, dá poder. Assim, a questão de desafiar as leis também passa muito por aí. É aquela história: alguém, por favor, me ponha limite! Alguém diga qual é o meu caminho! A gente trabalha muito com esse conceito da transgressão, por esse rumo. Tem um autor psicanalista inglês que diz: a transgressão no adolescente é um pedido de socorro. É um gesto de ajuda. Alguém me ajude a achar as noções de limite que perdi, como noção de hierarquia, segurança, limite, noção de regra, valores.
C&T - Qual é a noção de limite que os pais devem dar ao adolescente?
Sandra - A questão não é nem do adolescente. A questão é que os pais estão com muito medo de não serem aceitos. Os adolescentes adoram um pai que põe limite, eles brigam, reclamam, xingam, resmungam, mas, no fundo, eles gostam, pois o pai põe regra, norma. Na verdade, nós não estamos aqui falando de repressão, lei de privação, estamos falando de limite, que é completamente diferente. No mundo de hoje, tem algumas coisas que ficam muito difícil de você negar. Agora, menino de 12, 13 anos tem que estar na rua até 2 horas da manhã, fazendo o que? Os adolescentes que vêm aqui na clínica acabam confessando que gostam do limite imposto pelos pais. Dizem claramente: "se não me derem limite, não sei o que vou fazer". Não recomendo nenhuma repressão. Mas essa história de que meu filho sabe até onde vai, é mentira. Não sabe nada. Não é à toa que temos altos índices de morte de adolescentes.