Integra do discurso do presidente Fernando Henrique ao receber o prêmio Mahbub ul Hag

09/12/2002 - 19h10

Brasília, 9/12/2002 (Agência Brasil - ABr) - Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso ao receber do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Prêmio "Mahbub ul Haq" por Contribuição Destacada ao Desenvolvimento Humano, em Nova York, em 9 de dezembro de 2002

"Quando tomei conhecimento de que meu nome havia sido escolhido para este prêmio, naturalmente fiquei muito satisfeito, mas ao mesmo tempo fui tomado de certa hesitação.

Meu pensamento foi o seguinte: há algo de estranho em um Presidente receber um prêmio individualmente.

Porque o que os Presidentes fazem é sempre resultado de um esforço coletivo.

Em última análise, se um Presidente é capaz de realizar algo, é porque toda a nação – ou pelo menos a maior parte dela – está a seu lado e o apóia.

Para não falar do trabalho de milhares de pessoas no serviço público, no Congresso Nacional, nas ONGs e na sociedade em geral.

Sem a dedicação desprendida dessas pessoas, os objetivos do desenvolvimento humano não poderiam avançar.

Mas, a pensar mais sobre o assunto, dei-me conta de que poderia haver algum significado em meu comparecimento aqui para receber esta homenagem.

Seria uma oportunidade inestimável para divulgar e dar renovado impulso aos esforços empreendidos por toda a nação brasileira.

Porque isto é, na verdade, o que aconteceu no Brasil nos últimos anos.

Toda uma nação, fortalecida na democracia e unida na aspiração por justiça, dedicou-se a trabalhar para fazer mudanças onde mudanças eram necessárias.

Daí eu me sentir muito honrado com a companhia de um grupo de ministros e parlamentares brasileiros nesta cerimônia de hoje.

Ao mesmo tempo, não posso negar que este é para mim, também, um momento de realização pessoal. Agradeço à minha mulher, Ruth, que tem dedicado muita energia ao desenvolvimento humano e que sempre me apoiou. Meu agradecimento, também, a cada um dos membros da minha família que vieram juntar-se a mim nesta ocasião.

Senhoras e Senhores,

Em minha plataforma política de 1994, quando fui candidato pela primeira vez nas eleições presidenciais, a frase de abertura do capítulo inaugural dizia: "O Brasil não é mais um país subdesenvolvido; é um país injusto".

Permitam-me explicar o significado daquela frase no contexto social e político do Brasil.

Durante muito tempo, os brasileiros atribuíram seus problemas sociais à noção vaga do "subdesenvolvimento".

Este é um daqueles conceitos que deveriam vir acompanhados de um aviso: "cuidado, este conceito pode ser prejudicial ao seu senso de responsabilidade".

É claro que o Brasil é menos desenvolvido do que outros países. Não há dúvida sobre isso.

É claro que há problemas no plano internacional que limitam nossas oportunidades de desenvolvimento: regras injustas, protecionismo nos países mais afluentes, turbulência nos mercados financeiros. Tão pouco há dúvida sobre isso.

Mas mesmo conscientes desses fatos, tínhamos a obrigação de parar de reclamar sobre nosso destino e, em vez disso, de tomá-lo em nossas pró-prias mãos.

E nosso dever era o de não usar os problemas internacionais ou pretexto o "subdesenvolvimento" como desculpa para perpetuação das injustiças em nossos países.

Este é o sentido daquela nossa frase.

O foco devia mudar do desenvolvimento para a justiça.

Era tempo de enfrentarmos nossas próprias responsabilidades e colocar a casa em ordem, ao menos naquilo que estivesse ao nosso alcance.

E assim fizemos.

Começamos por colocar a inflação sob controle, com o Plano Real.

Não foi uma tarefa fácil, nem era ela um fim em si mesmo.

Por que isso era tão importante?

Por uma razão muito simples.

Porque nas décadas anteriores, a espiral inflacionária tinha sido o mais importante fator de perturbação do desempenho da economia brasileira.

Também, e isso é o cerne da questão, porque a inflação não era meramente um problema de macroeconomia. Era, acima de tudo, uma questão de justiça social.

Quando os cidadãos se rebelaram contra a monarquia absoluta no século XVIII, um dos principais gritos de guerra era: "não pode haver imposto sem representação".

É um princípio fundamental da ética política.

Um princípio que era pisoteado diariamente pela hiperinflação.

Porque a inflação é precisamente isso: um imposto sem representação.

Pior: é uma forma não democrática de taxação, dirigida contra os pobres, contra os desprotegidos pela indexação ou pelos diversos arranjos financeiros aos quais tinham acesso a classe média e os mais ricos.

Por isso derrubamos a inflação e a mantivemos em níveis muito baixos apesar das crises internacionais enfrentadas nos últimos anos.

Como resultado, realizamos o que foi possivelmente a maior redução sustentada da pobreza na história do Brasil.

Cerca de dez milhões de brasileiros cruzaram a linha da pobreza.

Isso nos deu uma base nova a partir da qual podíamos trabalhar.

E de fato trabalhamos, para introduzir as necessárias mudanças e avançar na educação, na saúde, na reforma agrária e na proteção social.

Os resultados estão à vista de todos.

A escolaridade aumentou significativamente, sobretudo entre as crianças mais pobres.

O Brasil hoje pode afirmar com orgulho que estamos muito próximos do objetivo de ter todas e cada uma de nossas crianças frequentando as salas de aulas.

O trabalho infantil reduziu-se em 25 por cento.

A mortalidade infantil caiu, notadamente nas áreas mais pobres do Nordeste do Brasil.

A expectativa de vida subiu em torno de 4 por cento, e essa taxa é substancialmente mais alta do que a média mundial no mesmo período.

Centenas de milhares de novas famílias foram assentadas no campo pelo Governo, mais durante os últimos oito anos do que nas três décadas anteriores.

A Arca desses assentamentos equivale a 200 mil quilômetros quadrados.

Isto é mais de seis vezes o território da Bélgica e duas vezes e meia o território da Áustria.

Implantamos uma rede de proteção social.

Uma rede que funciona efetivamente para milhões de brasileiros, através de doze diferentes programas de assistência ao menos favorecido, envolvendo mais de R$ 30 bilhões por ano (mais de U$ 8 bilhões, pela taxa de câmbio atual).

Isso equivale praticamente ao total do imposto de renda arrecadado pelo Governo de pessoas físicas e jurídicas. A comparação evidencia o fato de que esse tipo de política pública tem um impacto direto sobre a distribuição de renda.

E nossa rede de proteção social faz uso das modernas tecnologias, como o cartão magnético, de forma a assegurar que os recursos cheguem diretamente aos que deles precisam.

Isso eliminou os esquemas de intermediação e corrupção que tradicionalmente assolavam a assistência social no Brasil.

O salário mínimo, medido em termos reais – isto é, descontando a inflação – alcançou seu nível mais elevado em 40 anos.

Adotamos um programa anti-AIDS reconhecido no mundo como um modelo.

E de fato é um programa muito bom, porque coloca as necessidades dos pacientes em primeiro lugar, especialmente ao garantir o acesso a medicamentos mais baratos.

Um dos desafios em política social é fazer bom uso de recursos escassos.

O foco deve ser colocado nos mais pobres, nos mais necessitados.

E isso não é assim tão fácil quanto poderia parecer.

Há interesses conflitantes, pressões políticas e mesmo falta de informação.

Por isso, uma das tarefas básicas deve ser a definição cuidados de onde estão as necessidades mais prementes.

Ao fazer isso, o trabalho do PNUD proporcionou-nos um instrumento valioso.

Por exemplo, o nosso "Projeto Alvorada" empregou extensivamente a metodologia do Índice de Desenvolvimento Humano de forma a estabelecer as propriedades e selecionar os municípios que enfrentam os problemas mais sérios.

Isso nos ajudou a garantir que nosso trabalho fosse orientado pelas carências sociais, e não pela conveniência política.

Se lhes parece que estou contando vantagem sobre esses progressos do Brasil, é porque talvez eu de fato esteja.

Espero contar com sua compreensão e indulgência nesse ponto.

Penso que um pouco de contar vantagem sobre seu país faz parte, de alguma forma, das atribuições de um Presidente.

Nunca é difícil encontrar pessoas que lhes digam como a situação vai mal ou quão distante estamos de nossas metas.

Há algumas décadas, quando se discutiam aspectos da teoria do desenvolvimento, meu amigo Albert Hirschman – movido por sua "propensão à autosubversão" – levantou uma idéia nova.

Disse-nos: é muito bom que se discuta e se teorize sobre os obstáculos ao desenvolvimento, mas há um outro problema; devemos também prestar atenção aos obstáculos que nos impedem de perceber o desenvolvimento.

Essa afirmação chamava a atenção, pois Hirschman era uma das maiores autoridades em teoria do desenvolvimento.

E sempre me recordo dessa visão de Hirschman ao refletir sobre as tendências pessimistas que às vezes prevalecem no Brasil, assim como em outros países que enfrentam situações similares.

Por isso, penso que não seja totalmente improcedente que um Presidente ocupe às vezes a tribuna para lembrar ao povo que o copo já está cheio pela metade.

Mas é também um dever do Presidente lembrar – a si próprio e aos outros – que o copo ainda está metade vazio.

De fato, o que se alcançou no Brasil nos últimos anos deve ser visto como um começo.

Ainda temos um caminho longo a percorrer.

Restam muitas tarefas diante de nós.

E o apelo da justiça social continuará a ser ouvido no Brasil – espero – com vozes que se tornam cada vez mais fortes, mas sem perder a civilidade.

Através de sua história, o Brasil teve muitas oportunidades, mas ao mesmo tempo desperdiçou um bom número delas.

Conhecemos as distorções resultantes do domínio colonial e da sombra que ele projetou sobre as nossas perspectivas de desenvolvimento.

Na independência, em 1822, deixamos de avançar com rapidez em direção à abolição da escravatura, que durou até 1888.

Mais tarde, em diferentes momentos, o esforço de construção da democracia e do Estado de direito encontrou fortes resistências.

Como resultado, atravessamos dias escuros de ditadura, e nossa sociedade foi atingida por graves violações dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

Hoje, temos oportunidades sem precedentes.

E o Brasil está determinado a não desperdiçá-las.

As recentes eleições foram uma demonstração exemplar de virtude cívica.

Mostraram, fora de qualquer dúvida, que a democracia no Brasil não é mera instituição formal.

É uma força viva.

Uma força canalizada através de procedimentos honestos e que está enraizada nos corações e nas mentes dos cidadãos.

Uma força que tornará possível no Brasil, nos anos e nas décadas vindouros, continuarmos a fazer as mudanças e reformas através do diálogo e em paz.

Precisamos consolidar a estabilidade econômica.

No passado, dizia-se que o preço da liberdade é a eterna vigilância. Hoje, da mesma forma, podemos dizer que o controle da inflação exige vigilância permanente.

Precisamos aperfeiçoar nosso sistema tributário, atualizá-lo e eliminar problemas que inibem nossa capacidade de competir na economia internacional.

Precisamos encontrar, de uma vez por todas, uma solução sustentável e justa para a questão da seguridade social.

E precisamos reformar nossas estruturas políticas, e continuar aprimorando nossa democracia.

O que fizemos até agora nos dará força para seguir adiante.

Quando deixar o Governo no dia 1º de janeiro, sentirei a satisfação de olhar para trás e ver que nossos esforços deram frutos.

Para mim, um sociólogo por formação, a maneira certa de fazer isso seria conferir dados, cifras e estatísticas.

Nada de errado nesse procedimento, e eu certamente o seguirei.

Mas, como um futuro ex-Presidente, encontrarei maior satisfação, tanto do ponto de vista racional, quanto emocional, em refletir sobre o verdadeiro significado de todas aquelas estatísticas em termos humanos.

E o que elas significam é que uma criança recém-nascida no Brasil de hoje, de uma família pobre, em um município pobre, terá chances muito melhores na vida.

Em primeiro lugar, terá mais chance de sobreviver, porque sua mãe terá tido certamente acesso à assistência médica, por intermédio de um dos 162 mil agentes comunitários de saúde que trabalham nas áreas pobres, ou também por intermédio de uma das 15 mil equipes de saúde de família.

Mais tarde, essa criança terá melhores chances de ter uma boa educação.

Certamente irá à escola, e muito provavelmente não terá que trabalhar em uma idade precoce – porque sua família será apoiada pelo Governo para mantê-la na escola.

Sua expectativa de vida será consideravelmente maior do que a das crianças nascidas no Brasil no início da década de noventa.

E viverá em liberdade, em uma democracia dinâmica, em uma economia estável.
Então, com a passagem dos anos, terá oportunidade de ler livros e jornais, de discutir e de pensar, como um cidadão livre, sobre como fazer do Brasil um país cada vez melhor para seus filhos.

Se minha obra de Presidente ajudou essa criança a ter melhores chances na vida, então valeu a pena.

Gosto de pensar que foi assim, mas nem por isso tomarei o crédito pelo trabalho de tantos outros.

Por isso, ao agradecer a vocês todos, ao PNUD e ao meu amigo Mark Malloch Brown, faço-o em nome de todos aquele que ajudaram a dar às crianças brasileiras, e a todos os brasileiros, melhores oportunidades na vida.

Senhoras e Senhores,

Conheci o professor Mahbud ul Haq algum tempo atrás.

Conversávamos na época sobre os seus estudos, que foram importantes no projeto para a elaboração dos relatórios nacionais do PNUD com base no conceito do desenvolvimento humano.

Acompanhei seu trabalho, assim como os de Amartya Sen, cuja participação foi decisiva na elaboração do IDH.

Estou convencido de que a introdução da noção do desenvolvimento humano foi uma das contribuições mais significativas, em tempos recentes, aos esforços de promoção do desenvolvimento no âmbito da comunidade internacional.

Por isso, sinto-me orgulhoso de ser o primeiro a receber este prêmio.

Ser reconhecido, por um órgão internacional com o prestígio do PNUD, como alguém que colocou o desenvolvimento no centro da agenda política brasileira, é algo que me emociona imensamente.

Mas sem qualquer falsa modéstia, tenho que dizer que o prêmio não é meu.

Eu dedico a todos aqueles que ajudaram, em alguns casos mesmo antes do meu Governo, a alcançar as conquistas sociais que mencionei aqui.

E o dedico a todas as crianças brasileiras que agora têm novas oportunidades para o futuro.

Dedico-o aos brasileiros mais pobres, que recuperaram a esperança.

Para mim, pessoalmente, esse prêmio é um sinal de que dei o melhor de mim como Presidente de meu país.

Certamente, meu Governo deixará tarefa ainda em aberto.

Mas nada me deixa mais satisfeito do que ter colocado o Brasil no rumo certo.

Estabilização econômica, reformas estruturais, acesso aos mercados mundiais, luta contra a pobreza, a proteção ambiental, a necessidade da transformação social, o desenvolvimento humano – todas essas são questões que vieram para ficar.

Há muitos anos, Luiz Inácio Lula da Silva e eu estivemos juntos em episódios inesquecíveis de nossa luta pela defesa da democracia, pelos direitos dos trabalhadores brasileiros e pelas aspirações de todo o nosso povo.

Sob sua nova liderança, aposto, o Brasil continuará a avançar.

E novos ganhos sociais virão.

Tenho confiança que assim será.

Muito obrigado pela atenção."