Coluna da Ouvidoria - A mídia pública e os direitos dos acusados

05/08/2013 - 14h52

Brasília - O sensacionalismo na forma de notícias policiais que fazem um apelo emocional ao público com conteúdos que primam pelos detalhes sangrentos dos crimes, o sofrimento das vítimas e a monstruosidade dos acusados é visto como uma estratégia que a mídia privada adota para aumentar a circulação da informação, satisfazendo o que, na percepção desses veículos, constitui o interesse do público. A mídia pública, por sua vez, por não ter caráter comercial, pode dispensar essa arma. Se fosse só isso, existiria só um critério a recomendar a um veículo da mídia pública na publicação de tais matérias: evitar o sensacionalismo. Há, porém, outro tipo de apelo, menos sensacionalista, que suscita outras considerações. Trata-se do sentimento de justiça repressiva que exige a punição de toda transgressão da ordem social. O sociólogo Emile Durkheim examinou esse fenômeno na sua discussão sobre solidariedade mecânica na obra clássica Da Divisão do Trabalho Social: “Ela [a pena] não serve, ou serve apenas secundariamente, para corrigir o culpado ou para intimidar seus possíveis imitadores... Sua verdadeira função está em manter intacta a coesão social, ao manter a consciência comum em toda a sua vitalidade” [1]. Esse sentimento, que é associado às etapas mais primitivas da organização social, mas que não desaparece por completo com a modernização, passa a influir na pauta da mídia, por processos, mormente inconscientes.

Em relação aos participantes das manifestações que sacudiram o país em junho deste ano, por exemplo, estabeleceu-se a distinção, que a própria mídia ajudou a propagar, entre os mocinhos – os jovens idealistas que reivindicaram melhoras em nome da sociedade (“Verás que um filho teu não foge à luta” proclamava uma das faixas presentes nos protestos) – e os bandidos ou “vândalos” – os indivíduos, organizados em bandos ou não, que aproveitaram do tumulto para praticar atos de violência. Embora essa distinção não capte toda a verdade dos fatos, ela e o concomitante clamor a favor da repressão dos vândalos serviram para reforçar o sentimento de solidariedade social. Mas, ao mesmo tempo, ela escancarou a porta para a entrada de vieses na determinação das informações incluídas na cobertura jornalística.

Em artigo publicado em 2011, Juliana Silva Trindade, acadêmica do curso de direito da Fundação Educacional Nordeste Mineiro (Fenord), apontou os critérios pelos quais a mídia deveria se orientar na abordagem desses casos: “O interesse público na informação acerca dos fatos criminosos submetidos à Justiça Penal reside no indispensável controle da qualidade dos provimentos judiciais. Ademais, essas notícias aproximam a sociedade de seu sistema jurídico”. Quando o sentimento de justiça repressiva passa a prevalecer, entretanto, “a informação parcial dos fatos, submetidos à Justiça Penal, fomenta a formação da 'cultura do medo', em que os acusados são vistos como inimigos da sociedade; ela em nada favorece a formação crítica e consciente da opinião dos indivíduos, além de gerar a incompreensão dos institutos jurídico-penais. Não fosse o bastante, a informação falsa pode destruir a vida da pessoa humana que figura como protagonista da notícia”.

Em efeito, segundo a autora, esse tipo de cobertura subverte o princípio da presunção de inocência: “O problema não reside em noticiar o fato criminoso, mas insuflar o sentimento de que o suspeito é o culpado até que se prove o contrário, e, a partir desse raciocínio com sinais trocados, deixar de perceber o acusado como sujeito de direitos”.  A distorção implica que na cobertura midiática, senão na própria Justiça, são desrespeitadas as garantias do contraditório e da ampla defesa: “Normalmente, a divulgação é ampla dos fatos e das provas de que se vale a acusação – é o que garante a manchete! A disparidade no tratamento dispensado à acusação em relação à defesa salta aos olhos. A tese defensiva recebe tratamento precário nas mãos da imprensa” [2].

No dia 23 de julho, a Agência Brasil publicou a matéria MP do Rio denuncia dois homens por vandalismo em protestos [3]. Na matéria consta que um dos acusados “teria se associado a um homem identificado como AMC [substituímos o nome, que aparece na matéria, pelos iniciais] e a mais pessoas, ainda não identificadas, para praticar atos de vandalismo. O grupo também é investigado por tentativa de homicídio contra um policial militar em serviço”.

No dia 29, a senhora Aurélia Barnes, do Rio de Janeiro, enviou um e-mail à ouvidoria, reclamando da referência a AMC, que, de acordo com a demandante, “não foi denunciado, justamente por não haver provas contra ele. No inquérito que apurava o caso, ... ele foi eximido de qualquer responsabilidade na agressão ao policial ... Esta notícia não faz sentido … Não se deve publicar o nome das pessoas dessa maneira irresponsável.  Ele não foi denunciado e não existe motivo para que seu nome seja veiculado na imprensa”.

A Diretoria de Jornalismo (Dijor) mandou a seguinte resposta: "A Agência Brasil reconhece que a citação do nome… era desnecessária no âmbito da matéria em questão, visto que ele não foi denunciado. Tampouco a reportagem afirmava isso. No entanto, diante do exposto, decidiu-se por alterar o texto, de forma a retirar seu nome. Diante da demanda, apuramos o caso mais uma vez no Ministério Público e averiguamos que ele foi apenas citado na denúncia. Segundo o MP, não foi apresentada denúncia formal contra ele. Também nos foi informado agora que ele está sob investigação. Consideramos, porém, que a informação de que há pessoas ainda sob investigação pode constar do texto, sem a identificação dos investigados. Pedimos desculpas pelos transtornos causados".

A atitude da Dijor de corrigir as informações e retirar o nome do cidadão da reportagem é louvável, ao mesmo tempo em que é louvável também a própria Dijor admitir que um dano fosse infligido. Além disso, as matérias da Agência Brasil são reproduzidas por vários outros veículos da imprensa que muitas vezes nem têm conhecimento das correções.

Idealmente, a apuração das informações colhidas para produzir uma matéria policial evitaria a ocorrência desses erros. De acordo com o Manual de Jornalismo da EBC, “a apuração de uma denúncia deve manter o seu caráter jornalístico, ou seja, a intenção de buscar informação para o cidadão não se confunde com a atuação da polícia, do Ministério Público ou qualquer outro ente oficial de investigação” e “o processamento das informações deve levar em conta a supressão de preconceitos e os direitos à presunção de inocência – como determina a legislação brasileira. O jornalismo da EBC tem de ser rigoroso na apuração e consolidar as informações que vai divulgar sobre o envolvimento de alguém em crime. Deve-se evitar a divulgação de nomes e imagens que signifiquem condenação prévia” [4].

O que se observa na prática é que a apuração depende principalmente das informações fornecidas pelas autoridades policiais e judiciárias e, apesar de cumprir formalmente o preceito contra a condenação prévia, a utilização das expressões  “acusado” ou “denunciado”, em vez de “culpado” ou “condenado”, dificilmente transmite a ideia da presunção de inocência se a defesa do acusado  não receber espaço igual.

Pelo peso que as autoridades têm como fontes das informações, a mídia fica a reboque dos critérios que elas adotam nesses casos, atendendo suas próprias conveniências. Em relação à identificação dos acusados, às vezes elas preferem não divulgar os nomes para não facilitar a fuga ou a ocultação de evidências ou para salvaguardar a integridade física da pessoa ou até para não causar transtornos desnecessários. Mas são critérios determinados por elas, não pela mídia. Além disso, as autoridades policiais frequentemente cometem erros no processo de identificação, como foi constatado em uma matéria publicada pela própria ABr no dia 23 de junho [5].

Diante dessas considerações, a ouvidoria sugere que a Dijor reavalie a prática de divulgar os nomes de cidadãos comuns acusados de terem praticado atos criminosos. Quando os acusados são figuras públicas, outros critérios podem prevalecer, inclusive, por tratar de cidadãos que têm recursos e acessos que lhes possibilitam a ampla defesa, até o ponto de às vezes obterem na Justiça mandatos que proíbem que seus nomes sejam citados pela mídia em relação aos crimes denunciados. Para o cidadão comum, porém, o critério adotado poderia ser ou o uso de iniciais ou aquele proposto pelo jurista Robson Zanetti, para quem “as pessoas normalmente pensam somente naquele momento em que a mídia expõe o acusado de ter praticado algum crime. No futuro, esquecem no resultado daquela acusação, ou seja, a ideia que é ‘vendida’ para o público é que realmente o acusado cometeu o crime, embora utilize formalmente o termo ‘acusado’ o efeito prático é de uma quase condenação”.  Para evitar esse efeito, o jurista entende que “nenhum acusado, salvo autorização expressa, pode ser exposto publicamente pelos meios de comunicação, mesmo que estes utilizem o termo acusado, sem antes haver uma sentença penal transitada em julgado, pois, os efeitos desta exposição antecipada são irreparáveis” [6].

Boa leitura!
 
[1]http://sap.mcampos.br/arquivos/85-778/durkheim_-_solidariedade_mecanica_e_organica.pdf
[2]http://www.fenord.com.br/revistaaguia/revista2011/textos/Ointeressepublicopag139.pdf
[3]http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-07-23/mp-do-rio-denuncia-dois-homens-por-vandalismo-em-protestos
[4] www.ebc. com.br/sites/default/files/manual_de_jornalismo_ebc.pdf
[5]http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-23/justica-do-rio-nega-pedido-de-prisao-de-administrador-acusado-de-atos-de-vandalismo
[6]http://www.administradores.com.br/artigos/administracao-e-negocios/o-direito-do-acusado-nao-ser-condenado-moralmente-de-forma-antecipada-pela-midia/46494/