Honduras: o contexto do golpe

07/08/2009 - 7h58

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Ondefica mesmo Honduras? Para muitos de nós brasileiros esse é um paísque, como tantos outros, provavelmente, passaria despercebido a vidatoda, tal é a sua distância de nossa realidade sóciopolitica,geográfica, econômica e cultural. Para muitos leitores da AgênciaBrasil ele passou a ser objeto de especial atenção a partir de28 de junho em face dos acontecimentos que marcarão sua históriapara sempre. Naquele dia, às 13:13, a ABr noticiou Presidente de Honduras é detido por militares e levado para aCosta Rica, com base em informações da Telesur e de agênciasnoticiosas internacionais como a Telam da Argentina, a Lusa dePortugal e a britânica BBC Brasil.Naquelamatéria os leitores foram informados que: “O presidente deHonduras, Manuel Zelaya, foi detido hoje (28) por um grupo demilitares, horas antes de o país iniciar uma consulta pública parareformar a Constituição, o que daria ao presidente a possibilidadede reeleição.” A fonte desta informação, não identificada nanotícia, sugeria, desde o primeiro momento, que o motivo do golpeseria a possibilidade de reeleição.Quandoocorre um golpe de Estado como esse, a primeira pergunta que osleitores fazem é: por que derrubaram um governo constitucionalmenteeleito pelo povo? Na Agência Brasil os leitores encontraram a seguinte resposta: “A origem da crise política em Honduras foiuma tentativa de Zelaya de realizar um referendo para perguntar àpopulação se apoiava mudanças na Constituição, abrindo caminhopara uma possível reeleição”. Numtotal de 74 matérias publicadas pela Agência Brasil entre osdias 28/06 e 01/08 sobre o assunto, 17 (23%) fazem referencia aomotivo do golpe como sendo a suposta intenção de Zelaya de alterara Constituição para possibilitar a própria reeleição. Essainformação é reafirmada sem identificar sua fonte, salvo rarasexceções.Note-seque a “oposição”, denominada nas notícias, transformou-se emgolpista sendo portanto, a justificativa para o golpe apresentadapela Agência Brasil, uma alegação daqueles que derrubaram ogoverno. E o outro lado? Qual é a explicação do governo deposto?Se ele tivesse sido ouvido, teríamos, necessariamente, até aí,pelo menos duas versões para explicar os acontecimentos. Mas ao nãodivulgar a versão do governo Zelaya, a ABr adotou e difundiuapenas a versão dos golpistas para seus leitores.Nasmesmas páginas eletrônicas da BBC Brasil de onde a AgênciaBrasil tirou a explicação golpista, havia uma matéria,publicada duas horas antes do golpe, que relatava a situação políticaem Honduras. Sob o título: Presidente de Honduras prometerealizar polêmico referendo, publicada dia 28 de junho às08:57, informava que: “No sábado [27], o presidente Zelayadisse em uma coletiva de imprensa que 90 por cento dos problemasforam superados e que o referendo iria acontecer. O presidente disseao jornal espanhol El País que um plano pararetirá-lo do poder foi abandonado depois que o governo americanonegou apoio. ‘Estava tudo no lugar para o golpe e, se a embaixadaamericana houvesse aprovado, teria acontecido. Mas eles nãoaprovaram (...) Eu estou no cargo ainda apenas graças aos EstadosUnidos’, disse Zelaya, que é aliado do presidente venezuelano HugoChávez. O presidente disse ainda que não tem intenção deconcorrer novamente ao cargo, mas que quer apenas que presidentesfuturos tenham essa chance.” Essas informações não constamnas matérias da ABr.Ogoverno golpista de Micheletti, que se apossou do poder após o golpe,foi designado nas matérias da Agência como “ governointerino” sendo que o atributo da interinidade só se caracterizaquando o titular tem algum impedimento legal para governar. No caso,o impedimento foi o próprio golpe de estado, que não tem nada delegalidade, e que precede e se sobrepõe a qualquer outro tipo deimpedimento que justificasse uma interinidade legalmente prevista.Portanto, tratar o governo golpista como “interino” não seriaelevá-lo a uma categoria não prevista constitucionalmente? Isso nãopode ser considerado como uma tentativa semântica de revestir delegalidade um golpe repudiado mundialmente? Aliás, esse foi oentendimento da diplomacia brasileira em suas declarações, nãomedindo palavras para classificar os golpistas. Mas parece que a ABrtem seus próprios critérios editoriais para estabelecerterminologias e seria muito proveitoso para o debate democrático dacomunicação pública que os divulgasse publicamente. Talvezseja por isso que o leitor Celso Martins da Silveira Júniorescreveu: “Vocês estão muito tímidos na cobertura do golpe emHonduras. Vocês sabem o que está acontecendo lá? Estãoacompanhando a Rádio Globo, cujos profissionais se acham sitiados noprédio da emissora? Vocês têm acompanhado a Telesur? Ou estãoindo atrás dos jornais El Heraldo e La Prensa? É o que parece... ”.Quaissão as razões geopolíticas que levaram ao golpe de Estado?Honduras não é um país isolado debatendo-se em disputas políticaslocais como dão a entender as matérias da Agência Brasil. Opaís está sobre forte influência da diplomacia norte-americana quetem, entre outros, interesses estratégicos em manter uma basemilitar na região depois que perdeu o apoio logístico do Panamápara sediar suas tropas e armamentos. As negociações para o uso doaeroporto da capital Tegucigalpa vinham se arrastando há anos.Primeiro entre Zelaya e Bush e agora com Obama, a disputa caminhavapara um impasse, daí a tentativa do governo de buscar recursos eapoio financeiro na Alba. Como essa aproximação do governohondurenho de seus parceiros latino-americanos, liderados por HugoChavez, influenciou e precipitou os acontecimentos levando ao golpede Estado? O que aconteceu com o apoio da embaixada norte-americana?Com a interdependência que vigora no mundo atual pós-globalização,é praticamente impossível tratar das questões nacionais fora deum contexto internacional. Paradesmontar a versão apresentada pelos golpistas bastava a AgênciaBrasil ter analisado o teor da Consulta Popular, não vinculante,convocada para 28 de junho e constatar que a reeleição dopresidente não constava entre os assuntos propostos, mas que incluíasim, a reforma do aeroporto de Tegucigalpa, afetando a atualdisposição física da Base Militar de Soto Cano, controlada porforças militares dos EUA, ali estacionadas. Quaseum mês após o golpe, a ABr enviou um repórter para aregião. Sua primeira matéria data de 23 de julho. Depois disso,apesar da cobertura factual trazer mais detalhes de certosacontecimentos, como a tentativa de Zelaya de voltar a seu país, aquestão da falta de contexto não mudou. As limitações de umrepórter sem um forte apoio editorial e logístico para saber paraonde, quando e como se locomover e que informação deve buscar, emum país à beira de uma guerra civil, com barreiras policiais emtodas as estradas, são evidentes. Asnotícias continuaram veiculando versões de agênciasinternacionais, como a da argentina Telam e ignorando os veículos decomunicação dos movimentos populares de Honduras como, por exemplo,o site: http://www.movimientos.org/honduras.php. Ali seria possível encontrar o outro lado das informações paracontrabalançar a cobertura oficiosa das agências internacionais,inclusive narrando a reação da sociedade civil que tem organizado aresistência desde o primeiro momento, narrando também a repressãocom a prisão e morte de diversos manifestantes, a perseguição demilitantes e lideranças populares, o fechamento de veículos decomunicação que não apoiaram o golpe, os bloqueios nas estradas,as marchas sobre a capital e as manifestações por todo o territórionacional. Uma boa leitura crítica das dezenas de matérias alipostadas permitiria uma cobertura diversificada dos fatos que, apesardas dificuldades em apurá-los, talvez pudessem trazer para o públicoleitor brasileiro uma visão mais realista e eficaz da guerra deinformações que cerca esse tipo de acontecimento. Por que então aABr se restringe a reproduzir informações das agênciasinternacionais? Seriam elas mais críveis do que as populares? Quaissão os critérios editoriais para tal escolha?Essee outros sites constituem as novas mídias que quebram abarreira do isolamento imposto pelas ditaduras. Por meio dojornalismo cidadão, do qual falamos em nossa coluna anterior, osmovimentos e organizações da sociedade civil mostram versões que amídia convencional não consegue ou não quer divulgar.Naqueleendereço os leitores encontrarão, por exemplo, a notícia sobre oprovável fechamento nas próximas horas da Rádio Globo, citada porCelso Martins, como uma das fontes alternativas de informação e umdos únicos veículos de comunicação que ainda resistem ao golpe .Forade um contexto mais global que leve em conta o processo histórico emcurso e as correlações de forças e de interesses que agem naregião torna-se quase impossível o leitor compreender quais são osfatores que influenciaram os acontecimentos e a sua dimensão para ademocracia na América Latina e no mundo. Com essas informaçõestalvez o cidadão possa entender que Honduras não está tãodistante de nós quanto parece. Atéa próxima semana