Negro precisa ser brilhante para se destacar no meio acadêmico, diz antropólogo que motivou política de cotas

28/07/2009 - 9h36

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Em 1998 Arivaldo Lima Alves, estudante do curso de doutorado do Departamento deAntropologia da Universidade de Brasília (UnB), foi reprovado em umadisciplina obrigatória. Em 20 anos daquele programa de pós-graduaçãofoi o primeiro aluno a ser reprovado. Dois anos após a reprovação, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão forçou o departamento arever a menção e Arivaldo foi aprovado.O episódio, conhecido como “CasoAri”, estimulou o orientador de Arivaldo, o professor José Jorge deCarvalho, a elaborar no ano seguinte a primeira proposta de cotas,embrião do atual sistema que está sendo questionado no SupremoTribunal Federal (STF) por ação do partido Democratas.Onzeanos após o episódio, Arivaldo, hoje professor adjunto de antropologia da Universidade Estadual da Bahia, elogia a política decotas adotada pela Universidade de Brasília (UnB) em entrevista à AgênciaBrasil.Agência Brasil: O que vocêacha da política de cotas da UnB?ArivaldoLima Alves: Éo primeiro programa entre as universidades públicas brasileiras quereserva vagas para negros e índios. Só por isso já tem uma grandeimportância. A partir do momento que a Universidade de Brasília,uma universidade pública federal, decide por adotar esse programavárias outras universidades tomam a mesma iniciativa e têm auniversidade como referência. É um programa importante e que veioatender uma demanda social histórica.ABr: A política de cotasexiste há seis anos. Por que ela causa debate até hoje?Arivaldo: Desde o final do século19 e início do século 20, a sociedade brasileira, em especial aselites, vem elaborando um projeto de identidade nacional e de povo.Nesse projeto não cabia apontar e afirmar a identidade indígena e,muito menos, a identidade negra. Sabemos que de 1880 a 1930 o Brasilaprovou uma política imigratória que permitiu a absorção de quase4 milhões de imigrantes brancos europeus. Em 300 anos de escravidãofoi mais ou menos esse contingente de africanos que foi trazidoforçadamente para o Brasil. Havia um projeto de embranquecimento.Depois disso, pouco a pouco, o país passa a se definir como naçãomestiça. Na medida em que é aprovado um programa de reserva de vagasna universidade pública, no mercado de trabalho para negros e índios,esses projetos de nação são contestados. Se é afirmado que nãoexistem apenas brancos e mestiços, mas também negros e índios épreciso levar em consideração demandas específicas. O Brasilaboliu a escravidão, mas não adotou nenhuma política pública paraos ex-escravos ou para os descendentes de africanos que nos anosseguintes construíram a nação brasileira, mas não tiveram nenhumretorno material da contribuição que deram. Quando se adota umprograma de cotas cria-se a possibilidade de que um segmento importanteda população, cerca de 80% no caso da Bahia, exija acesso aosresultados da produção da riqueza, posições de prestígio,privilégios como participação na universidade brasileira e atépostos de representação política. A Bahia nunca teve um governadornegro ou Salvador teve um prefeito negro. Isso é um escândalo muito sintomático.ABr: Como você vê oquestionamento da política de cotas da UnB feita no STF pelo Democratas?Arivaldo: Não me espanta, vejocom uma certa naturalidade. Se o Democratas, que sempre representouos interesses hegemônicos na sociedade brasileira, fosse a favor dapolíticas de cotas seria algo estranho. É natural que o partidoreaja. Já ouvi senador democrata afirmando que o problema racial nãoexiste entre nós. É um tipo de afirmação que contesta os dadosoficiais como os do Ipea [Instituto dePesquisa Econômica Aplicada] e do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], que mostram que o acesso ao emprego, à educação, condições dignas de educação sãodiferenciados em relação a brancos e negros.

ABr: Há quem conteste aspolíticas de cota racial reconhecendo que a desigualdade existe masé de classe e não de raça ou cor e, portanto, uma política decota social seria mais objetiva, eficiente e mais justa. Esseargumento é falho?Arivaldo: Aqueles que discordamdas ações afirmativas para negros partem do princípio de que quemdefende a política, como eu, acredita que exista a biologia dasraças, a natureza das raças. Esse tipo de compreensão já caiu porterra desde a 2ª Guerra Mundial que exterminou judeus, negros,ciganos, homossexuais, ou seja, todos aqueles que eram consideradosuma certa degeneração da humanidade. Para nós, a raça existe apartir de uma compreensão do negro socialmente. Defender cotas paranegros é também defender vagas para aqueles que socialmente existemcomo tal. Eu não acredito que exista o negro como biologia, comoraça. Mas a história social do negro nesse país, o modo como elevive, o espaço onde ele está alocado nas grandes cidades, arepresentação que é feita dele nos meios de comunicação, naliteratura ou no livro didático só evidencia que o negro a rigornão está em uma biologia das raças, mas é uma representação umaconstituição do mesmo. Então, defender cotas para negros édefender cotas sociais.ABr: Você acha que nauniversidade brasileira há racismo?Arivaldo: Não tenho nenhumadúvida disso. Basta ver a trajetória de alguns intelectuais negros.O Brasil tem intelectuais negros desde a primeira metade do século20, mas se formos ver os anais da história poucos tiveram destaque.Um dos poucos que teve destaque foi o geógrafo Milton Santos, masporque tinha um brilho excepcional e um tipo de trajetória dosnegros que se destacam quando têm uma inteligência muito acima damédia. Mas só se destaca um ou outro indivíduo não um gruposocial como um todo.ABr: Precisa ser brilhante?Arivaldo: Mais do que brilhante,acima da média. Entre os brancos se destacam os brilhantes e os quenão são tão brilhantes assim, mas que conseguem se adequar a umacerta expectativa ou reproduzir um certo modo de parecer serbrilhante.ABr: Passados onze anos doepisódio "Caso Ari" no Departamento de Antropologia da UnB, comoavalia aquela situação?Arivaldo: Foi uma experiênciamuito dolorosa que marcou minha trajetória pessoal, acadêmica eprofissional. A partir dali eu redefini meu projeto pessoal e deinserção acadêmica. Essa obrigação de redefinir projetos trouxecerto desconforto. De outro ponto de vista, diria que não apenas eu,mas aqueles que estiveram do meu lado fomos vitoriosos. Uma questãoque parecia ser de ordem pessoal ia ganhar a dimensão que teve e iater como resposta medidas que não beneficiariam diretamente a mim,mas um segmento que há séculos vem sendo abandonado e maltratado.Apesar da dor e dificuldade que eu particularmente tive, foi algoimportante. Eu passei a compreender o que é a trajetóriaintelectual de um negro no Brasil, passei a entender de outra maneirao establishment da universidade pública brasileira e compreendercomo a ciência, como a antropologia, podia me ajudar a compreender aminha realidade, a minha condição de pesquisador e de cidadão.