Guaranis ganham apoio político na luta pela autopreservação cultural

17/05/2009 - 0h06

Luiz Augusto Gollo
Repórter da Agência Brasil
Rio de Janeiro - São57 índios guarani ao todo, a maioria mulheres e crianças ouadolescentes, todos da mesma família e ocupando áreaaproximada de 2 mil metros quadrados (m²) na extremidade dos quase 3quilômetros (km) da praia de Camboinhas, bairro exclusivo na costaoceânica de Niterói. Pontilhada por luxuosos condomíniose amplas casas de veraneio, Camboinhas exibe índice de mais de95% de residências com água encanada e esgotamentosanitário - entre os mais altos do país - e uma populaçãofixa e flutuante, que é a clientela única do artesanatoindígena, principal fonte de renda da pequena aldeia guarani,cujo faturamento oscila entre R$ 300 e R$ 500 por semana.Hácerca de ano e meio instalados no final da praia, os índiossempre sofreram discriminação e ameaças, masconvivem com as adversidades sem medo, apoiados nos espíritosevocados no início de cada noite, em rituais por proteçãodivina. Sabem que não são benvindos, mas confiam naliderança da pajé Lídia, mãe do caciqueDarci e de dois outros expoentes da etnia: Amarildo, professor naescolinha para as crianças, e Tonico Benites, mestre edoutorando em antropologia social pela Universidade Federal do Rio deJaneiro.A pajéLídia é a responsável pela migraçãodo grupo para Niterói, pois entre os guaranis cabe aos líderesespirituais escolher o lugar onde devem habitar. E ela optou porCamboinhas, por ser local de um grande sambaqui, ou cemitérioindígena, ancestral na região. Os opositores àpresença deles não gostam sequer de ouvir falar dessahistória e nos dois primeiros meses do ano estiveram váriasvezes no final da praia, ameaçando-os de dia e de noite, comoLídia se lembra bem.“Um dia,aí pelas dez e meia da manhã, chegaram gritando parasair, expulsando mesmo a gente. Às onze, tacaram fogo em tudo,queimaram as oito ocas, com documentos, roupas, coisas da gente, dahistória guarani, tudo foi embora”, diz a pajé. Seufilho Tonico Benites acrescenta que o crime, por afetar indígenas,caiu nas mãos da Polícia Federal, o que possivelmenteassustou seus autores, mas provocou uma reaçãoinesperada.“Logodepois apareceram funcionários do instituto que cuida dasflorestas no governo estadual dizendo que a gente não podiamais continuar aqui, que tínhamos que sair. Nós batemospé que não, e eles foram embora falando que aresponsabilidade era toda nossa."Desdeentão, e por mais de um ano, os guaranis de Camboinhas têmconvivido com narizes torcidos, caretas, eventuais ofensas exingamentos e também a indiferença de boa parte dagente que frequenta a praia e compra seu artesanato simples depalha colorida trançada, sementes, penas e plumas. As oitoocas, reerguidas com palha de sapê colhida ali mesmo,permanecem até hoje de pé, como afirmaçãomaior da confiança na proteção espiritual.Nenhumguarani acredita no sucesso da investigação da PolíciaFederal sobre o incêndio das ocas, até porque nãoforam capazes de identificar os autores, nem os que apareceramdurante a reconstrução mandando interromper o trabalho.Para os guaranis, há pouca diferença entre um branco eoutro, por isso, até para fazer essa reportagem foi necessárioo acompanhamento de gente de Maricá para apresentar a equipeda Agência Brasil.Nestemomento, Lídia e seu grupo familiar depositam suasexpectativas na ação da prefeitura de Maricá,cidade vizinha a Niterói, cujo prefeito, Washington Quaquá,está decidido a transferi-los para uma Área de ProteçãoAmbiental (APA) da União na Barra da Maricá, onde a pajéescolheu um sítio entre as praias de Itaipuaçu e SãoJosé. “Terra boa pra plantar, não é areia,como aqui”, Lídia adianta, confiante de que em breve voltaráao cultivo de milho, mandioca, feijão e outros produtosancestrais da agricultura guarani.Se oterreno em Camboinhas é impróprio ao plantio, por quefoi escolhido pela pajé quando saiu de Parati? Primeiro,porque era urgente a mudança, segundo ela. “Não tinhamais espaço para todo mundo em Parati, não dava praplantar muito, eu não aguentava ver criança chorandocom fome, tinha que sair. Depois, aqui era terra de sambaqui, daproteção dos espíritos." Lídianão fala mal dos que estão em Parati, até porquepelo menos um filho seu ficou, mas a identidade comum parece perdida.Os guaranis de lá vivem outra realidade, em casas dealvenaria, preferem o mercado ao cultivo próprio, incorporam acultura branca, até imitam seu comportamento consumista. Estadicotomia aflora com clareza no discurso de Tonico Benites no projetode criação do Centro de Exposições deCulturas Materiais e Imateriais do Guarani M'byá - ramo da etniaguarani ao qual sua família pertence.Segundo Benites, oslíderes praticantes do xamanismo ou pajés Guarani M'byámantêm relação estreita com osespíritos guardiões responsáveis pelos animais,plantas, terra e ser humano. Deles recebem o conhecimento paradiagnosticar e tratar os enfermos, bem como sobre fórmulas demedicamentos, além de purificar o espaço. "Osespíritos protetores vivem em certospatamares mais elevados do cosmo extraterreno, segundo a religiãodo Guarani M'byá, os guardiões como os donos do mar e dafloresta vivem e realizam monitoramentos de formas invisíveis - a água, o ar, a mata e a terra-, os quais são temidos,portanto extremamente respeitados pelo Guarani",explicou.Adeterminação de Lídia e seu grupo na preservaçãoda cultura guarani legítima e genuína sensibilizou atal ponto a prefeitura da cidade de Maricá que foramdesignados vários secretários e subsecretáriosda área social para atuar junto aos índios. Marcos deDios, Maria Cristina Lima, Leonardo Nóbrega e RosângelaZeidan tratam desde a burocracia junto à União, para adesapropriação da área a ser ocupada na APA, atéo cadastramento da família de Lídia no Bolsa Famíliae outros programas sociais. No último Dia do Trabalho, emsolenidade comandada pelo prefeito, foi instalada uma oca na praçacentral da cidade, em homenagem (e desagravo) aos guaranis. Diasdepois, vândalos a incendiaram, no que parecia ser a repetiçãodo crime de Camboinhas. Tonico Benites, no entanto, aponta outrarazão.“Como emtoda parte, há uma disputa política em Maricá. Oprefeito tem a sua oposição, os que são contraesta ação em favor da gente. Isso existe em qualquerlugar, não tem nada a ver diretamente com os guaranis, éuma ação contra o prefeito."Acomprovar as palavras do antropólogo guarani, um artigoassinado por Rodovaldo Coutinho no jornal A Voz de Maricáenumera uma série de carências urbanas da cidade, quereclamam ação e dinheiro da prefeitura, e termina com apergunta: “Não seria melhor deixar os guaranis onde estão?”.A prefeitura, por sua vez, acredita que a ação emdefesa da pequena comunidade ameaçada representa o passoessencial para a solução de um caso inédito noséculo XXI, com as características desse dos guaranisem Camboinhas.