A Agência pública e a democratização da comunicação

27/03/2009 - 10h10

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Na semana passada umapolêmica envolveu esta Ouvidoria e a AgênciaBrasil a partir da demanda do leitor Adilson Nascimento dos Santos, engenheiro agrônomo, que escreveu para: “manifestardescontentamento e desaprovação pela utilização do termo ‘invasão’ paradesignar os processos de ocupação de terras realizados sob a organização demovimentos sociais. ... Ora essa polêmica semântica é bem conhecida no Brasil.Os grandes proprietários de terras no Brasil são os beneficiários de uma dasdistribuições de terra mais injustas no mundo. Segundo o Estatuto da Terra, de1964, segundo a Constituição de 1988, regulamentada pela Lei 8629/93, grandes propriedades improdutivasdevem ser desapropriadas para fins de reforma agrária. Diante da morosidade doestado em fazer cumprir a lei, os movimentos pressionam por meio das ocupações. E são ocupações porque a terra estádesocupada, ou seja, não está cumprindo sua função social. Ao ocupar aterra  o movimento lhe dá algum sentidosocial (a possibilidade de atender aos pobres que desejam cultivar a terra).Entretanto, os beneficiários da iníqua distribuição de terra, influentes sobreos meios de comunicação alcunharam a situação de ‘invasão’.  Ora, invasão ocorre quando a posse pelaforça impede o exercício da função do bem. Mas, neste caso, o bem nãoestá cumprindo sua função. Portanto, a terminologia é indevida. Que meios decomunicação como Rede Globo de Televisão - que é uma concessão pública -, revista Veja, jornal Folha de S.Paulo, jornal Estado de S.Paulo, jornal O Globo  etc.historicamente vinculados à classedos proprietários de terras utilizem o termo invasão é compreensível (apesar deinaceitável).”A primeira resposta da ABr para o leitor dizia que: “Tratamos estas ações como invasão, por seremfeitas sem amparo legal e com o objetivo de tomar para si uma área rural ouurbana quando, diante da lei, pertencem a outrem. O Brasil vive Estado de Direito, com amplaliberdade de defesa e de expressão, não cabendo a nós outra interpretação.” Ao que esta Ouvidoriaponderou: “Segundo a Constituição Federal, o pertencimento de uma terra a outremestá sujeita às condicionalidadesdestacadas pelo leitor, como por exemplo, que ela esteja cumprindo sua funçãosocial. Vide o Estatuto da Terra que disciplina a matéria. Quando o MST ocupauma terra que não cumpre sua função social ele está justamente mostrando aoEstado que ele não está cumprindo a lei, pois deveria desapropriá-la embenefício da reforma agrária. Portanto,antes de julgarmos se as ‘invasões’ são feitas sem o amparo legal, precisamosnos certificar de que lei estamos falando. Isso não é uma simples questãosemântica ou ideológica e tampouco uma questão de interpretação. É antes demais nada um compromisso com a legislação em vigor no estado de direito.Em sua réplica a ABr disse que: “Cabe, neste caso, a quem de direito dizer se a referida terra cumpre ounão a sua função social, no caso o Incra. Como uma empresa pública decomunicação não entendo que caberia à Agência Brasil fazer este tipo dejuízo ou valor. O movimento social tem defendido esta visão de ocupação, é umdireito. O termo, na realidade, não reflete adequadamente o ato praticado (verdicionário). ‘Quando o MST ocupa uma terra que não cumpre sua função social eleestá justamente mostrando ao Estado que ele não está cumprindo a lei, poisdeveria desapropriá-la em benefício da reforma agrária’, é verdadeiro, mas esteato, do ponto de vista legal,  é visto pelo Poder Judiciário como uma invasão, o que temmotivado   decisões de reintegração deposse dos seus proprietários.Em resposta à ABr, esta Ouvidoria sugeriu que: “Entãotemos uma questão de ponto de vista, ou seja, de abordagem do problema. Doponto de vista dos movimentos sociais,eles estão fazendo uma ocupação de uma propriedade que está desocupada, sob a ótica da função social daterra. Do ponto de vista do latifundiário isso é interpretado como sendo umainvasão. Se a Justiça  determinar a reintegração de posse elaestará julgando que o direito à propriedade está acima da função social daterra. Caso ela não determine a reintegração ela terá julgado ao contrário. Nãoseria interessante que a ABr, comouma agência plural, que tem a missão de fornecer informações para que seestabeleça o debate, mostre que a questão é polêmica,  e que há pelo menos dois lados quehistoricamente se confrontam, inclusive explicando ao leitor a questão doarcabouço legal?Em sua tréplica a Agência Brasil considerou que: “Seguimos a interpretação de que é uma invasãopor ser um entendimento do Poder Judiciário- e todo o rito processualseguido pelo Incra -  não é uma decisãoda Agência Brasil, ao contrário doque seu texto diz,  de dar curso a umainterpretação do latifúndio. Concordo que a questão é polêmica por envolveraspectos legais e de direto dos movimentos sociais e proprietários rurais.Vamos ver como podemos contribuir para esclarecer a questão.No entanto, na ultimasegunda-feira, a Agência Brasil informou a estaOuvidoria que: “Compreendemos os argumentosdo leitor, mas continuaremos usando o termo ‘invasão’ por ser o mais preciso eadequado. “No sentido de colaborar paraesclarecer a questão vale lembrar que nas matérias sobre a Raposa Serra do Sol a ABrtratou os fazendeiros como “não-índios” ou “arrozeiros” [sic] “que ocupam”, enunca como “invasores”, apesar deagirem ao arrepio da lei, uma vezque o governo havia decidido há anos que a função social das terras era a deservir de reserva indígena.  Da mesmaforma, quando estudantes ocuparam oprédio da reitoria da UnB em 2008, aABr nunca tratou os manifestantescomo invasores nem a ação como invasão. Mas, quando os sem-terra fizerem umaocupação, a ABr dirá que é uma invasão. Dois pesos e duas medidas? O queé ser mais “preciso e adequado” neste caso? Como se justificaeditorialmente tal decisão?No campo, pelo fato de nãoexistirem ruas, avenidas ou prédios públicos com aglomeração de pessoas, olocal preferido para as manifestações é a própria terra, objeto da disputa.Assim como estudantes de uma universidade ocupam o prédio da reitoria paramanifestar seu descontentamento com a política educacional, os sem-terra ocupamas terras para manifestar seu descontentamento com a execução da política dereforma agrária. A Agência Brasil tem toda a razão quando diz que não cabe a ela fazerjuízo de valor. No entanto, se abordar o problema pelo argumento da prevalênciada propriedade privada sobre a função social, ao contrario do que diz a Constituição Federal, classificando a manifestação dos sem-terra comoinvasão, ela não estará tomando partido de um dos lados da questão? Quais seriam as outras possíveis maneiras de abordar o problema para não ficar diante de um juízo de valor, refémde uma armadilha ideológica e semântica, vítima de uma contradição que nossasociedade ainda não foi capaz de resolver e que não cabe a uma agência públicade notícias arbitrar?     Mas, entre tratar deaspectos policiais da demanda individual de alguém que se diz proprietário deuma terra “invadida” e a ação coletiva de um movimento social que “ocupa” umaterra por julgar não cumprir sua função social, não caberia a Agência cobrir o processo histórico dareforma agrária do ponto de vista de política pública do estado brasileiro? Política definida constitucionalmente,com objetivos e metas estabelecidos nos Planos Plurianuais, com orçamento anualdo governo federal que precisa ter a eficácia e a eficiência de seus programasverificados e fiscalizados. A abordagem a partir do interesse públicocontextualizaria eventuais demandas judiciais facilitando sua compreensão peloleitor. A Abr poderia informar que, segundo a lei, antes de ser objeto deacumulação de capital, mercadoria para especulação imobiliária e patrimônioprivado de alguém, a terra deve cumprir certos objetivos tais como   ser produtiva, preservar o meio ambiente,assegurar boas relações de trabalho e explorar os recursos de um modo quefavoreça tanto os proprietários como os que nela trabalham. A propriedade ruralque não cumprir qualquer um desses objetivos é passível de desapropriação parafins da reforma agrária e, para explicar por que a lei estabelece essascondicionalidades, a Agênciapoderia, por exemplo, recuperar o processo de discussão do Estatuto da Terra esua incorporação pela Constituição de 1988. Será que a situação fundiária dopaís mudou muito desde então?

A discussão sobre os índicesque determinam qual a quantidade mínima que uma propriedade rural deve produzirpara ser considerada produtiva, por exemplo, foi objeto de uma série especialde onze matérias produzidas pela ABrem 2006. Nela, o então ministro do Desenvolvimento e Reforma Agrária, MiguelRossetto declarava, em matéria publicada em 26 de janeiro daquele ano, que osíndices usados na definição de áreas para reforma agrária “seriam revistos até fevereiro”. Três anos se passaram desde então eos índices não foram revistos. Atualizar esse debate e saber por que osíndices, baseados na produtividade média das propriedades rurais em 1975,depois de 34 anos, não foram atualizados, apesar de a produtividade ter maisque dobrado nesse período, seria uma informação importante para leitor. Assim como esse, há muitosoutros aspectos a serem debatidos pela sociedade se ela quiser definitivamenteresolver o problema. Trazer o assunto que está na agenda da cidadania para oespaço público de discussão e argumentação, propiciar o acesso do leitor ainformações isentas e contextualizadas e, desta forma, invocar a necessidade de deliberação dos poderesconstituídos, pode ser justamente a contribuição que o engenheiro agrônomoAdilson Nascimento dos Santos espera da ABrao lembrar que “a Agência Brasil, nasceu como um instrumento público de comunicação, como objetivo de democratizar a comunicação”. Até a próxima semana.