Coluna da Ouvidoria - A consciência dos quilombolas

03/12/2013 - 12h46

Brasília - Todos os anos, desde pelo menos 2002 – quando inicia a coleção dos conteúdos da Agência Brasil disponíveis nos seus arquivos online - a ABr comemora a data de 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, com a publicação de matérias sobre a população negra brasileira e sua história. Em consonância com a ocasião, a ênfase é sempre na luta do povo afrodescendente contra o preconceito racial, pela preservação da sua cultura e pela igualdade de direitos.

Em alguns anos, a cobertura adotou um enfoque mais específico ou tomou a forma de uma reportagem especial. Em 2011, a reportagem especial Dia da Consciência Negra, publicada em 20/11/2010, ganhou o primeiro lugar na primeira edição do Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento na categoria internet. A reportagem reuniu quatro matérias sobre várias frentes de atuação dos movimentos negros em prol de melhores condições de vida, tais como o atendimento nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e a trajetória das verbas orçamentárias destinadas às políticas públicas administradas pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Todas as matérias foram acompanhadas por um infográfico com recursos interativos, permitindo ao leitor acessar vários dados demográficos, educacionais e ocupacionais referentes às categorias de raça ou cor que compõem a população brasileira, além de perfis de 11 personagens negros que deixaram sua marca na história do Brasil.

Este ano, o enfoque foi nos quilombos, uma escolha particularmente apropriada em vista da origem da comemoração ser diretamente ligada a essas comunidades remanescentes de escravos foragidos. O dia 20 de novembro corresponde à data em que, segundo os historiadores, teria sido capturado e morto o Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, em 1695. Zumbi e o Quilombo dos Palmares, que ocupava um território com mais de 200 quilômetros de extensão, abrangendo quase todo o atual estado de Alagoas e parte do estado de Pernambuco, tornaram-se símbolos da resistência negra e da viabilidade de um projeto de vida coletiva independente.

Das 12 matérias publicadas em novembro sobre o Dia da Consciência Negra, nove foram dedicadas aos quilombos e aos seus habitantes, os quilombolas. Uma dessas matérias, Lavradora admite que os kalungas ainda sofrem preconceito, foi motivo de elogio enviado por um leitor de Campinas, em São Paulo, parabenizando a equipe de reportagem e os autores da ideia [1].

Das 34 fontes citadas nas 12 matérias, 15 (44%) são quilombolas que vivem nas quatro comunidades visitadas pela equipe de reportagem: Muquém, em Alagoas,  Cachoeira, na BA (Comunidade Kaonge), Santiago do Iguape, na Bahia, e Cavalcante, em Goiás (Comunidade Kalunga). Ao mesmo tempo, convém observar que somente três dos quilombolas consultadas são homens, o que pode constituir um viés em termos dos pontos de vista manifestados ou indicar que a força que une as comunidades é predominantemente feminina.

Os depoimentos colhidos dessas fontes passam aos leitores informações pessoais sobre o que significa ser quilombola atualmente no Brasil. Diferentemente das questões levantadas pelos negros das cidades, a situação dos quilombolas retratada na cobertura reflete principalmente as preocupações dos pequenos produtores rurais. Observa-se que na consciência das pessoas entrevistadas – pelo menos no que transpareceu nas suas conversas com os repórteres –, o preconceito racial é, quando muito, um dos fatores que dificultavam a vida no passado.

Desde então, a vida melhorou em muitos aspectos – estradas, escolas e postos de saúde são mencionados pelos entrevistados – na medida em que as comunidades ficaram menos isoladas, mas ao mesmo tempo as mudanças colocam desafios à manutenção das tradições que eram essenciais à sobrevivência das comunidades no passado. Questiona-se, por exemplo, se o abandono da medicina tradicional e as devoções associadas a ela não significam uma perda para os doentes que voltam “desenganados” dos hospitais.

Apesar do Zumbi não ser mencionado pelos quilombolas, eles fazem várias referências ao orgulho de ser negro, um sentimento reforçado pelas lições transmitidas pelas gerações. Para a lavradora kalunga Leotéria Santos Rosa, 62 anos: “Antigamente kalunga era discriminado mesmo. Ninguém queria ser ‘kalungueiro' … Hoje, a maioria quer ser kalungueiro, até gente branca do cabelo bom … Hoje já tem kalunga que está engravatado. Tem mulher também que trabalha em vários lugares que é kalunga. Isso é importante pra nós” [2]. Para a jovem quilombola Edmeia Batista Costa, da Comunidade Kaonge: “A gente sabe que os antepassados lutaram muito. Muitos apanharam no chicote. Agora a gente não tem mais isso. Graças a Deus, a escravidão já acabou e eles passaram para gente o trabalho e a luta deles para a gente continuar” [3].

As questões que se apresentam como mais urgentes envolvem a continuidade das comunidades e suas tradições. Nem mesmo a posse da terra, que, segundo o diretor do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro da Fundação Cultural Palmares, Alexandro Reis, é “a maior dificuldade enfrentada atualmente pelas comunidades quilombolas” [4], foi abordada por eles, embora nesse ponto sua situação se assemelhe à de muitos pequenos produtores rurais no país.

Para os quilombolas, as prioridades se concentram na valorização dos antigos costumes do cultivo da terra, das atividades extrativas, da pesca e da cata de mariscos, do artesanato, e da socialização e transmissão de saberes entre as gerações. A cobertura mostra que buscam-se novas formas de interessar os mais jovens na permanência nas comunidades e na manutenção das tradições. Se faltou alguma coisa, talvez tenha sido uma cobertura mais completa sobre a educação dos jovens e as possibilidades de trabalho. Segundo a líder espiritual kaonge Juvani Jovelino,”o abandono da comunidade, pelos mais jovens, sempre foi uma preocupação” [5]. Uma das matérias sugere que, no Quilombo de Muquém, o abandono da comunidade – e o abandono das tradições por uma parte da população que resta – pode estar chegando a um ponto crítico. Algumas informações objetivas teriam servido para indicar se e onde essa tendência está sendo revertida. Informações sobre as relações entre os quilombolas e seus parentes que residem em outros lugares e sobre os impactos das relações comerciais externas e dos subsídios monetários e dos outros projetos governamentais na economia de subsistência também teriam ampliado a dimensão da cobertura.

Na perspectiva dos mais velhos, porém, o modo de vida nos quilombos continua a oferecer muitos atrativos. Para a lavradora kalunga Aurea Paulino: “Você quer uma banana você tem, quer uma mandioca, você tem. O arroz e o feijão, que é o principal, a gente planta. Então eu acho bom, porque não é todo lugar que a pessoa tem esse privilégio. Aqui a gente sabe viver sem dinheiro. Aqui não tem violência. Pode sair e deixar a porta aberta. É um lugar tranquilo. Acho bom criar meus filhos do jeito que eu fui criada, estudando e trabalhando na roça” [6].

Boa leitura!

[1]http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-11-19/lavradora-admite-que-os-kalungas-ainda-sofrem-preconceito
[2]http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-11-19/lavradora-admite-que-os-kalungas-ainda-sofrem-preconceito
[3]http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-11-18/negros-escravizados-no-periodo-colonial-resistiram-como-puderam-diz-especialista
[4]http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-11-22/reconhecimento-de-terras-quilombolas-esbarra-na-especulacao-e-grilagem
[5]http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-11-22/quilombolas-temem-que-novas-tecnologias-comprometam-tradicoes
[6]http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-11-19/agricultura-ainda-e-maior-fonte-de-renda-dos-quilombolas