Débora Zampier
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Os corregedores de Justiça têm a difícil tarefa de apurar denúncias contra juízes e desembargadores. Também são responsáveis por apontar as falhas no atendimento à sociedade, propondo soluções e cobrando respostas dos colegas. A atual corregedora-geral de Justiça, Eliana Calmon, no cargo desde setembro de 2010, admite que muitos erros cometidos por juízes ficam impunes e trabalha para reverter esse quadro.
Em entrevista à Agência Brasil, Eliana Calmon fala sobre os principais problemas que tem encontrado nos judiciários locais, analisa os gargalos que levam à demora na prestação da Justiça e critica o sistema carcerário brasileiro. Há 32 anos na magistratura, 12 deles no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a baiana, ao compor o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), leva à instituição uma autocrítica em relação trabalho do Judiciário.
Há oito meses à frente da Corregedoria Nacional de Justiça, ela sabe que a demora na resposta do Judiciário não pode ser resumida a uma única causa. Por isso, separa o Poder em suas três principais vertentes – Estadual, Federal e do Trabalho –, os divide novamente em primeira e segunda instâncias e só depois explica em que momento as justiças enfrentam maior dificuldade.
Com os diagnósticos da lentidão em mãos, a corregedora articula estratégias para combater a morosidade, como mutirões e reformas na gestão de varas e tribunais. Nos mutirões carcerários, confirmou a ideia de que o sistema carcerário é falido em termos de recuperação do detento. Eliana Calmon defende a aplicação das penas alternativas para modificar essa situação.
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Agência Brasil.
Agência Brasil - O Judiciário ensaia várias formas de reduzir a grande demora na solução dos processos. O que realmente funciona?
Eliana Calmon - As realidades da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho são bem distintas. Na Justiça Federal, o gargalo está nos tribunais. Existe muito atraso e isso nos assusta. A primeira instância cresceu e os tribunais ficaram do mesmo tamanho. Estou preocupada a ponto de estar com mutirões para julgamento de processos antigos em dois tribunais [Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região e TRF da 3ª Região]. Também estamos ensinando a organizar a tramitação nos gabinetes dos desembargadores. Na Justiça Estadual, a primeira instância tem serviço de apoio e de secretaria totalmente defasado, está sucateado. Há falta de servidores. Encontrei armários com muitas sentenças dadas sem ter funcionário para fazer o registro e a publicação delas. Já nos tribunais, tenho encontrado poucos processos e muitos funcionários. Já anunciei inclusive para que precisamos remanejar [funcionários] de tal forma que tenhamos instâncias equilibradas. Em relação à Justiça do Trabalho, o gargalo está na execução das sentenças e estudamos o que fazer. Existe um projeto piloto que por enquanto está só no Pará para utilizarmos a sistemática de pagamento das condenações por meio de cartões de crédito.
ABr - A senhora já disse que os mutirões são como enxugar gelo. Por que fazê-los?
Eliana Calmon - O mutirão não objetiva exclusivamente cumprir as metas, mas dar satisfação para o cidadão que está há anos esperando para resolver seu problema. Tivemos uma situação em que uma pessoa foi atropelada por um veículo da ECT [Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos] e ficou 40 anos esperando a indenização. Em outro caso, encontramos mais de 400 processos trabalhistas dentro de um tribunal regional federal quando essa Justiça já perdeu a competência trabalhista há 22 anos. O mutirão também faz com que o magistrado que assumiu gabinete com avalanche de processos sinta-se menos onerado com isso para que, com esse auxilio, ele comece a trabalhar com mais desenvoltura. Ao mesmo tempo começamos a ensinar uma forma mais moderna e racional de gerir os gabinetes.
ABr - A senhora defendeu recentemente que crimes menores não devem ser punidos com prisão, enquanto a sociedade cobra, cada vez mais, que os criminosos fiquem atrás das grades. É um choque entre o senso comum e a realidade?
Eliana Calmon - O que eu prego é que haja aplicação da legislação que já estabelece as penas alternativas. Já temos a ideia de que o sistema prisional é um sistema falido quando se fala em recuperação. Mas não temos a cultura necessária para aplicar pena alternativa, e ela termina sobrecarregando a atividade do juiz. Quando se faz a aplicação de uma pena privativa de liberdade, é simples, é só expedir carta de guia e mandar o preso para o presídio. E aquele preso desaparece da sociedade, da vista do juiz, e ele só tem que se preocupar lá adiante, quando a pena terminar. Mas quando ele aplica a pena alternativa ele tem que monitorar, tem que fiscalizar, tem um cadastro dentro da Justiça, tem que ver se está sendo cumprido, e às vezes não há estrutura nas varas de execuções penais.
ABr - A senhora não acha que há um preconceito da própria sociedade com as penas alternativas?
Eliana Calmon - A sociedade brasileira se acostumou a entender que a única pena é a pena privativa de liberdade. Sempre se fala em colocar na cadeia. É isso que a sociedade espera. Quando em verdade todas as sociedades modernas tiram os presos desses depósitos para fazer com que ele tenha pena mais moderna, para não ter pena que seja praticamente uma vingança. No Brasil, temos impunidade de pessoas mais favorecidas porque elas não têm pena privativa de liberdade. Teríamos que ter penas de classe econômica que sensibilizassem mais a classe elitizada. Ela retornaria aos cofres públicos o que o Estado investe para punir os criminosos.
ABr - Como fazer a lei ser aplicada se não há estrutura?
Eliana Calmon - Estamos fazendo mutirões justamente por isso. No Pará encontramos uma vara que é um absurdo. Um numero enorme de processos, tudo desorganizado, e isso levava à venda de facilidades, que levava à não prisão, não aplicação das penas alternativas, à venda de comutação de pena, uma série de negociatas feitas dentro do cartório. Nos mutirões estamos organizando, levando pessoas técnicas em resolver esses problemas.
ABr - O que mais chamou a sua atenção nesses meses à frente da corregedoria? Pode citar exemplos?
Eliana Calmon - O pior problema que eu encontro é a falta de gestão na administração e a falta de cobrança daqueles que são responsáveis. Não somente na primeira instância, mas os próprios desembargadores [fazem isso]. Tenho encontrado processos arquivados de forma equivocada. Os desembargadores entendem que o juiz é culpado, aplicam pena de advertência, entendem que já está prescrita a punibilidade e arquivam o processo. Isso não existe. Depois encontrei grande quantidade de processos paralisados e aguardando prescrição por falta de quórum para instalar o processo ou para aplicar a sanção. Há muitas situações em que praticamente não se desenvolve a atividade disciplinar das corregedorias locais. Por isso, solicitei aos tribunais e corregedorias que remetessem à corregedoria nacional todos os processos nessa situação.
ABr - O que a senhora acha das críticas sobre a atuação do CNJ nas questões disciplinares?
Eliana Calmon - Na realidade, essas pessoas não conhecem bem o que se passa nas corregedorias estaduais. Existe uma dificuldade muito grande, principalmente na hora de punir desembargadores. A punição feita pelo tribunal é muito complicada, muito vexatória, tenho ouvido muitos depoimentos de desembargadores que se sentem constrangidos de estar questionando culpabilidade de seus colegas. Isso me deixa mais convencida de que o principio da subsidiariedade [que determina que o CNJ só age quando a corregedoria local não atua] praticamente deixa impune o que se passa nos tribunais.
ABr – Correições são atividades relacionadas à apuração de possíveis irregularidades cometidas por servidores públicos e à aplicação de penalidades. Como tem sido a experiência das correições nos estados?
Eliana Calmon – Quando cheguei à corregedoria, encontrei correições em 14 estados. Ele [o ex-corregedor Gilson Dipp] fez a correição, as determinações, e eu fiz uma opção, retornar para ver o que estava certo, o que estava errado, o que foi corrigido. Eu só fiz correição, minha mesmo, em dois estados, em Mato Grosso do Sul e em Mato Grosso. E fiz porque a sociedade exigiu minha presença devido a muitos problemas existentes no Judiciário daqueles estados. Isso me levou a fazer correição em caráter emergencial. Foram correições difíceis, porque eu fui com Receita Federal, com a Controladoria-Geral da União, com tribunais de Contas, e esses órgãos ainda estão me fornecendo relatórios parciais para fechar meus relatórios. Temos muitas coisas para fazer, encontramos muitas coisas desorganizadas.
ABr - Recentemente a senhora evitou um golpe bilionário no Banco do Brasil bloqueando uma liminar judicial suspeita. O ministro Gilson Dipp disse que esse tipo de prática foi a pior coisa que encontrou à frente da corregedoria. Ela é recorrente?
Eliana Calmon - Não tenho encontrado muito a incidência desse tipo de atividade. Tenho encontrado outros tipos de infração por parte do juiz, como distribuição facciosa, irregularidades em obras. Tenho encontrado muita liberação de precatório equivocada, isso eu tenho encontrado muito.
Edição: Talita Cavalcante