Um resumo do resumo

10/07/2009 - 10h33

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - A percepção de omissões na matéria publicada pela AgênciaBrasil no 24/06/09, sob o título Salário médio pago no comércio caiu 14% entre 2003 e2007, levou o leitor Fabio Pereira a reclamar: “ Matériamuito mal editada, especialmente, mas não apenas, o título. O próprio textomostra que não houve redução do valor real dos salários, mas sim crescimento. Ocrescimento foi menor que o crescimento do salário mínimo, que teve ganhosreais no período. É o mesmo que ocorre com as aposentadorias acima de umsalário mínimo e, provavelmente, com todos os salários pagos no país.”A Agência Brasil respondeu:“A informação de queda dosalário médio está no próprio comunicado do IBGE: '...houve redução nossalários médios pagos pelo comércio como um todo, de 2,1 salários mínimos, em2003, para 1,8 salário mínimo em 2007'.”Quando se pensa nas competências que caracterizam ojornalismo, a habilidade na escolha dos títulos e o discernimento na formulaçãodas perguntas que são dirigidas às fontes são fundamentais. A queda apontada no título se refere à constatação daPesquisa Anual do Comércio de 2007 do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE), citada no primeiro parágrafo da referida matéria. Entre areclamação do leitor e a resposta da Agência surge a dúvida: afinal houve ounão uma redução no salário pago aos trabalhadores no comércio entre 2003 e2007?  A resposta é: as duas opções são verdadeiras. O textoda matéria fornece em parte uma explicação. Segundo a gerente da pesquisa: “Osalário mínimo cresceu mais do que a inflação, então, quando você transforma osalário [normalmente reajustado de acordo com o índice de inflação] em saláriomínimo, você tem uma queda. Mas quando você pega a massa salarial em reais, nãopercebe mais essa queda”,  ou seja,tudo depende do quadro de referencias.Trata-se de duas unidades de medida diferentes: uma é osalário médio, medido em reais, e a outra é o salário médio, medido em saláriosmínimos. Se lermos a informação fornecida pela pesquisa (em salários mínimos)temos que o salário dos comerciários diminuiu uma vez que passou de 2,1 para1,8, conforme o resumo do Instituto e a matéria da Agência. Mas selermos a informação com base no salário médio medido em reais, ele aumentou enão é essa a informação passada no título da notícia. Daí decorre e sejustifica a mensagem do leitor. Uma vez alguém disse que o título da matéria é a janela parao assunto. A partir dele o leitor decide se lerá ou não o corpo da matéria.Portanto colocar a manchete é uma escolha muito importante e precisacorresponder exatamente ao conteúdo para que, eventualmente, o leitor não sesinta enganado. É por meio dessa escolha também que se pode ressaltar osaspectos positivos ou negativos de um fato, no caso, os resultados da pesquisa,sendo essa uma decisão editorial e, portanto, imbuída de valores. Os motivos que levaram à insatisfação do leitor persistem àmedida que se aprofunda a apuração do assunto. Em primeiro lugar, a “massasalarial em reais”, citada na matéria, não é a mesma coisa que o valor real dosalário médio, que teria de levar em conta a inflação que houve durante operíodo. Neste aspecto, ao contrário da afirmação do leitor, a notícia nãomostra se houve ou não  crescimento dossalários médios pagos. Para chegar a esta conclusão é preciso consultar orelatório da pesquisa e fazer alguns cálculos que permitem constatar que houveum crescimento real,  com um aumentonominal acumulado de 42,3%, passando de R$ 6,185 ao ano, em 2003, para R$ 8.803em 2007, com uma taxa acumulada de inflação, medida pelo INPC, de 33,1% nomesmo período – portanto, menor do que o reajuste nominal acumulado do saláriomínimo que foi  de 61,7%. Se o título danotícia tivesse sido: “Salário médio pago no comércio aumentou 42,3% entre 2003e 2007” ele também corresponderia à verdade dos números da pesquisa.  No entanto, o título da matéria publicada privilegia oaspecto de queda. Isto certamente é o que chama a atenção do leitor. Aexplicação e as implicações da queda resumem-se a seu significado comoresultado do tipo do procedimento estatístico adotado na pesquisa e ao fato deque houve um crescimento do salário mínimo num ritmo maior do que o da inflaçãodurante o período. Mas essas informações não contribuem para a compreensão das“características estruturais básicas do comercio no país e suas transformaçõesno tempo”, principal objetivo da pesquisa, segundo o IBGE. Aí entra o outro aspecto que devemos observar: as perguntasque são dirigidas às fontes pela reportagem. Em uma matéria sobre um relatóriobaseado em dados estatísticos deve-se considerar como fontes não apenas aspessoas responsáveis pela pesquisa mas a pesquisa em si. Para ler e entenderuma pesquisa como essa se faz necessário um certo conhecimento básico deestatística. Trata-se de uma controvérsia sobre até onde vai a responsabilidadedo jornalista. Até onde ele deve ser cobrado quanto à exatidão das informaçõesquando necessita de conhecimentos que são normalmente identificados como  próprios de outras áreas? Há muitos que defendem uma especialização cada vez maior emassuntos específicos ou em certas áreas do conhecimento – é a chamadasetorização do jornalismo. Outros apregoam que o jornalista deve ter umconhecimento universal, aprofundando-se apenas naquilo que necessitar.Se a Agência Brasil tivesse aprofundado a apuração napreparação da matéria, poderia ter informado que o salário pago aos comerciáriosjá vinha caindo em relação ao valor do salário mínimo, mesmo antes da políticaadotada pelo atual governo de conceder reajustes superiores à taxa de inflação,portanto, a queda verificada tem significados que vão além da explicaçãopontual oferecida pelo IBGE. Mas esse é um aspecto que não foi salientado pelosautores da pesquisa e tampouco pela reportagem. Em vez disso, tudo indica que a matéria foi preparada – eo título escolhido –a partir do resumo dos resultados feito pela divisão deComunicação Social do IBGE . Ou seja, a matéria é um resumo de um resumo. Uma consulta às Pesquisas Anuais de Comércio para os anosanteriores – a pesquisa começou em 1988, revela que em 1996, base de comparaçãoutilizada na Pesquisa de 2003, o salário médio pago aos comerciários equivalia2,9 salários mínimos. Portanto, a queda entre 1996 e 2003 foi de 2,9 para 2,1salários mínimos - ocorreu num ritmo anual maior do que no período de 2003 a2007, quando ele caiu de 2,1 para 1,8 salários mínimos. Ao chamar atenção paraum fenômeno que possivelmente reflita as transformações que vêm ocorrendo hámais de uma década na estrutura do emprego no comércio, a escolha do título damatéria estava certa, embora não pelas razões pontuais apresentadas no texto.Quanto aos fatores que contribuíram para a queda, a matériase limita à explicação estatística. No entanto, a leitura do relatório dapesquisa teria fornecido algumas pistas sobre essa tendência que refletevariações na qualidade do emprego. Segundo o relatório do IBGE: “Nas atividadescom remunerações mais altas – caso do comércio por atacado – a queda do saláriomédio em salários mínimos foi mais significativa. Nesse aspecto, é importante considerar que, ao passo que osalário mínimo costuma afetar diretamente os menores salários do mercado, as maiores remunerações, emgeral, não mostram esse mesmo vínculo. A partir de 2003, a política de valorização do salário mínimo federal, com reajustes anuais acima da inflação, provocou um crescimento dos rendimentos da base da população ocupada no mercado detrabalho formal. Enquantoos salários que tradicionalmente aproximavam-se do mínimo e que o tinham como referência (como os pagos na maioria das atividades do comércio varejista) seguiram próximos desse patamar, enquanto que os saláriosmais altos, quando mensurados em salários mínimos, tornaram-se relativamente menores”.Na análise das causas da queda dossalários médios pagos, a adoção de novas tecnologias pelas empresas comerciaispode estar causando transformações na estrutura do emprego no setor onde amaioria dos novos postos de trabalho corresponde a funções onde a remuneração é menor. Oaumento da concorrência entre as empresas e a regularização daquelas queoperavam na informalidade pode estar influenciando na qualidade do emprego, mas os dados estatísticos fornecidos,isoladamente, não respondem a essas questões que surgem de uma reflexão apartir da pesquisa e sugerem que perguntas poderiam ser feitas na apuração doassunto. Para chegar a este ponto, porém, a tarefa do jornalista tem que iralém do que informou o resumo do IBGE.   Até a próxima semana. Com a colaboração de DavidArthur Selberstein