Olhando muito além da genômica
Hebert França
Foto: Marcelo Júnior
Autor do livro "Gestão da Vida: Genoma e Pós-genoma", o professor da Universidade de Brasília (UnB) Marcelo Valle Sousa é uma das maiores autoridades brasileiras em proteômica, nome dado a ciência que sucede à genômica e investiga a função das proteínas que compõem os genes. O proteoma é o conjunto de proteínas de um organismo. Favorável e defensor dos produtos geneticamente modificados, os trânsgênicos, "pois eles podem ajudar a amenizar a fome de grande parte da população do planeta", Marcelo coordena o Centro Brasileiro de Serviços e Pesquisas em Proteínas (CBSP) e o Laboratório de Bioquímica e Química de Proteínas da UnB. A enterolobina, uma proteína estudada por treze anos pelo CBSP, foi levada ao espaço por um dos ônibus espaciais da agência norte-americana Nasa, em outubro de 1988, para ser cristalizada, forma que permite ser melhor estudada. Apesar do feito, o pesquisador acha que o país não investe o suficiente e o necessário para que o resultado dos nossos estudos se aproximem dos realizados em países como a Dinamarca, por exemplo. Nessa entrevista dada ao repórter Hebert França, em meio a orientações de alunos, revisão para reimpressão de seu livro e estudo pára a publicação de outros, ele diz que dentro de dois anos o Brasil poderá ter dez cientistas proteômicos, mas poderá perdê-los em função das "propostas tentadoras que virão do exterior".
C&T – Qual o panorama atual da pesquisa proteômica?
Marcelo - Há vários projetos genômicos em andamento no país e no mundo. A cada dia novos genomas são terminados. No Brasil, alguns grupos de genômica já divulgaram sequenciamentos completos e na área proteômica começam a surgir alguns avanços. Tudo depende da moda, estamos entrando na fase em que a proteômica está se tornando um modismo, assim como foi a genômica, isso ajuda no desenvolvimento da área porque atrai recursos. O número de laboratórios nos EUA que trabalham com proteômica já ultrapassa o número de laboratórios que trabalham com genômica. Nunca vi estatísticas, mas pela quantidade de trabalhos que saem em revistas especializadas e pelo número de congressos parece que por lá, há muito, já concluiram que não chegarão a lugar algum sem uma aplicação pesada de recursos na área proteômica. A Universidade de Boston tinha um laboratório de genômica que foi todo desmontado e no lugar instalaram um de proteômica.
C&T – Já é possível falar em resultados concretos da pesquisa proteômica?
Marcelo - As técnicas estão evoluindo, mas teremos que esperar dez anos, ou até mais, para que resultados marcantes possam ser produzidos pela proteômica. No entanto, alguns benefícios já surgem, as doenças neurológicas, por exemplo, são melhor compreendidas agora. Não que isso seja fruto exclusivo da proteômica, não podemos acreditar que uma única tecnologia possa resolver todos os problemas, mas há uma parcela de contribuição das pesquisas. É o conjunto das várias técnicas bioquímicas que trará avanços no entendimento dessas doenças.
C&T – Além do entendimento das doenças, que outras áreas podem ser beneficiadas pela pesquisa proteômica?
Marcelo - O uso das tecnologias genômicas e proteômicas pode ajudar no aumento da produção de alimentos, beneficiando vários países pobres, por exemplo. Enquanto nos países ricos algumas doenças são importantes economicamente, para outros o que importa é a fome. Os alimentos transgênicos, atualmente questionados, poderão trazer benefícios futuros como o aumento na produção e a resistência à pragas. Já se fala também no uso da genômica e da proteômica para avaliar os riscos dos alimentos geneticamente modificados.
C&T – Você acredita que os Organismo Geneticamente Modificados (OGM’s) não representam risco para a população e o meio ambiente?
Marcelo - Alguns podem realmente trazer riscos, mas acho que a grande maioria não. O uso das técnicas poderá mostrar se as novas proteínas são tóxicas e se estão sendo sintetizadas nos alimentos transgênicos. Isso pode ser feito facilmente. No exterior essas técnicas são utilizadas para identificar se determinado lote de alimentos tem proteínas modificadas geneticamente. As técnicas avaliam também se os genes inseridos expressam proteínas tóxicas que estariam desligadas. Isso é importante nos grãos, especialmente na soja, e na batata, alimentos que têm proteínas tóxicas, inibidas naturalmente por enzimas, e que pela inserção de um gene podem ter a produção de uma dessas toxinas alteradas. O uso da proteômica pode auxiliar muito na compreensão do potencial e dos riscos dos alimentos transgênicos.
C&T – O sequenciamento genético prévio é condição essencial para a realização do proteoma de determinado organismo?
Marcelo - Pode ser feito um trabalho de análise proteômica independentemente de você ter genoma sequenciado. Aqui na UnB pesquisamos as proteínas dos venenos de aranhas e jararacas para os quais não há genoma seqüenciado. Também o Tripanozoma cruzi em pesquisa na universidade ainda não tem seu genoma totalmente decifrado. Melhor seria ter o genoma seqüenciado, facilita as pesquisas, mas isso também gera alguns problemas. Uma proteína predita por um genoma, por exemplo, pode demorar anos para ser detectada pelo proteoma caso seja pouco abundante. Temos que esperar a evolução do método, estamos ainda na fase de desenvolvimento de tecnologias.
C&T – Há outras formas de interação entre a pesquisas genômica e proteômica?
Marcelo – Um exemplo de como um conceito de pesquisa genômica aplicado pode ser transportado para a pesquisa proteômica é o aproveitamento do modelo de sistema de sequenciamento. Feito por eletrofore múltipla, em que se utiliza capilares em múltiplos de 4, essa tecnologia multiplicou a capacidade de sequenciamento genético e permitiu o aumento simultâneo na capacidade e na rapidez dos trabalhos. Agora, o mesmo grupo de uma universidade norte-americana de Boston, que desenvolveu a técnica, está utilizando esses conceitos para sua aplicação na identificação de proteínas, só que utilizando a cromatografia capilar, com múltiplos de doze para a análise proteômica.
C&T – A formação de redes, como na pesquisa genômica, ajudaria no desenvolvimento das pesquisas?
Marcelo - No atual estágio de desenvolvimento das pesquisas, a implementação de redes de proteômica, nos moldes das genômicas, não seria tão fácil. Os proteomas são diversos, cada tecido do corpo tem um proteoma diferente, ou seja, não há um único genoma. O proteoma varia muito de tecido para tecido, de pessoa para pessoa, de condição para condição. Hoje, o fígado de uma pessoa está normal, amanhã, caso ele ingira bebida alcoólica, sofra uma infecção viral, ou utilize algum medicamente, muda tudo. O proteoma é muito dinâmico e ainda não sabemos como estudá-lo.
C&T – Então o trabalho com o proteoma é mais complexo?
Marcelo - Sempre é mais complicado trabalhar com proteínas, é uma molécula diferenciada. No DNA – ácido desoxiribonucléico que contém material genético e tráz todas as informações necessárias para a formação das cadeias polipeptídicas, a estrutura primária das proteínas - temos quatro bases (A (adenina), C (citosina), G (guanina) e T (timina)) nos aminoácidos e proteínas são pelo menos vinte bases diferentes e sujeitas à modificações químicas, daí a complexidade da análise. Como há o sequenciamento de nucleotídeos no DNA, no genoma, temos o de aminoácidos nas proteínas, na proteômica.
C&T – Já falamos no geral e no particular, como está a pesquisa proteômica no país?
Marcelo - Estamos presenciando o aumento no número de laboratórios e também no de interessados na proteômica. Há todo momento recebo email’s e telefonemas de pessoas interessadas em colaborações, mas existe um limite de capacidade de trabalho. Se tivéssemos mais recursos, mais bolsas, teríamos condições de absorver todos esses colaboradores. Está faltando visão estratégica. O Brasil está, ainda, muito centrado na genômica e estamos ficando atrasados em relação à aplicação dos genomas. Acho que deveríamos ter, pelo menos, uns vinte centros de proteômica no país para dar conta dos dados genômicos produzidos.
C&T – É possível fazer uma comparação com relação a outros países?
Marcelo – Em relação aos outros países estamos em um estágio intermediário. Os laboratórios da UnB e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) são razoavelmente equipados, temos pessoal qualificado e conseguimos fazer um trabalho de bom nível. Mas em termos de número de laboratórios, estamos muito atrasados. Um país como a Dinamarca, por exemplo, com uma população em torno de 10 milhões de habitantes e pequena extensão territorial, tem cerca de seis excelentes grupos de proteômica, todos bem equipados. Aqui, temos apenas dois espectômetros de massa, acredito que na Dinamarca, cada laboratório tenha uns vinte desses equipamentos. O Brasil tem deficiência em vária áreas, mas também tem potencial. Mostramos que conseguimos realizar trabalhos genômicos. Somos um dos poucos países que têm genômica, proteômica e bioinformática, que não são muitos. A Austrália, que eu saiba, por exemplo, não tem um trabalho de genômica tão bom quanto o brasileiro, mas em proteômica eles estão bem avançados. Aliás, a palavra, proteoma foi criada por um pesquisador australiano
C&T – Que resultados essa falta de investimentos em proteômica pode gerar?
Marcelo - Em breve, os países mais avançados utilizarão os dados genômicos brasileiros para melhoria de seus produtos, sem benefício, em termos de propriedade intelectual, para o país. A tendência no mercado internacional é que as patentes sejam dadas em função da utilidade e não pelo gene. E para você dar utilidade tem que ter a função, trabalhar com a proteína. Muitas vezes você predizer uma função gênica, mas na realidade a função pode ser outra. Proteínas são modificadas clinicamente, enzimaticamente, a idéia de que um gene é igual a uma proteína não existe. A patente tirada de um gene pode não ter valor algum quando se descreve uma utilidade para uma proteína desse gene.
C&T – Qual a realidade do laboratório que você coordena na UnB?
Marcelo - A aquisição de um espectrômetro de massa, o melhor do país hoje, para proteínas e peptídeos, permitiu ao Laboratório de Bioquímica da UnB um avanço nessa área. Ele trabalha com proteomas simples, como os de venenos de aranhas e serpentes, e com os complexos, como o humano, passando por parasitas e protozoários como o Tripanosoma cruzi. Estamos introduzindo uma nova técnica chamada ICAT que dispensa o uso de eletroforese.
C&T – Quais as vantagens na utilização dessa técnica?
Marcelo – O ICAT permitirá uma maior velocidade na análise de proteomas sem necessitar de eletroforese bidimensional etapa difícil e limitante de tempo. A técnica permitiu vários progressos na linha de pesquisa. Estamos compreendendo melhor os proteomas, já aprofundamos os estudos e com esse novo equipamento vamos entrar com alta velocidade na fase de identificação das diversas proteínas e peptídeos existentes em cada orgamismo. Agora, as amostras são colocadas em uma placa de metal e o equipamento vai dando tiros de laser que faz a análise das proteínas.
C&T – Em que estágio estão as pesquisas na UnB?
Marcelo – O projeto com veneno de aranha já revelou proteínas que são inseticidas. Estudamos agora a possibilidade de introdução dessas toxinas em vírus para aumentar a potencia desses organismos no combate biológico de pragas. Outro projeto, o de análise dos neutrófilos humanos, está em vias de identificar proteínas que são marcadoras da falência múltipla de órgãos – síndrome que pode se desenvolver a partir de um trauma cirúrgico ou acidente. Há indícios que os proteoma dos neutrófilos – um dos tipos de células brancas do sangue – desses dois grupos de pacientes são diferentes. Identificando essas proteínas poderemos criar métodos para o diagnóstico precoce e desenvolver drogas que sejam inibidoras, ligando-se às proteínas e bloqueado o desenvolvimento da síndrome. Esse é um projeto de longo prazo e envolverá a indústria farmacêutica, que espero esteja mais desenvolvida no futuro.
C&T – Além da UnB e Unicamp, onde mais temos pesquisa proteômica no país?
Marcelo - As iniciativas estão se multiplicando. Em Manaus, um doutor formado pela UnB, hoje ligado ao Instituto de Medicina Tropical de Manaus está montando um Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA). O instituto Butantã, de São Paulo, também está implementando pesquisa proteomica, assim como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
C&T – Como estão os investimentos governamentais e empresariais?
Marcelo - No geral, o país demonstra uma certa ignorância em relação à pesquisa proteômica. Um exemplo: tínhamos na UnB um pesquisador com doutorado na Dinamarca, o único especialista em espectometria de massa no Brasil, com vários trabalhos publicados, mas que foi preterido numa seleção de bolsas do CNPq. Nós sabemos usar o espectômetro, mas não dominamos a tecnologia, esse aluno foi estrategicamente enviado para o doutorado e não pudemos aproveitá-lo porque não havia como mantê-lo na universidade. Comparando seu currículo com o de outros bolsistas selecionados, verificamos que o dele era, na pior das hipóteses, igual. Foi um erro estratégico do CNPq fornecer bolsas a pesquisadores de áreas onde já existia massa crítica no país. O pesquisador foi embora, não faltaram propostas tentadoras nos EUA e Europa, onde profissionais como esse são disputados à tapa. O único estado que tem tranqüilidade para trabalhar é São Paulo, devido aos recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Nós, na UnB, estamos apoiados com recursos do PADCT, do MCT. Conseguimos manter um bom nível, mas sempre estamos lutando com a falta de verba. A descontinuidade de recursos é um dos principais problemas das pesquisas.
C&T – Como é a formação dos profissionais em proteoma no Brasil?
Marcelo – A formação de pessoal é artesanal. Enquanto em outros países, o número elevado de pessoas fazendo mestrado e doutorado nessa área permite uma seleção entre os melhores, no Brasil isso não é possível. São poucos os interessando em estudo das proteínas, talvez porque isso ainda não tenha se difundido. Por sorte temos bons alunos, mas o número de pesquisadores é pequeno. A primeira geração de cientistas proteômicos brasileiros ainda está em formação. Em dois teremos uns dez pesquisadores, muitos deles atraídos por propostas tentadoras de trabalho no exterior.