Uma cápsula de projétil dourada, feita de latão militar, com 9,50 mm de diâmetro, pode ser a evidência definitiva de que a investigação sobre Curuguaty está desconsiderando muitos elementos cruciais

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Os furos da investigação sobre Curuguaty

Criado em 26/11/12 08h25 e atualizado em 26/11/12 09h30
Por Natália Viana Fonte:Agência Pública [2]

Cápsula de bala
Uma cápsula de projétil dourada, feita de latão militar, com 9,50 mm de diâmetro, pode ser a evidência definitiva de que a investigação sobre Curuguaty está desconsiderando muitos elementos cruciais (Natália Viana / Agência Pública)

Leia antes

O que aconteceu em Curuguaty? [3]

No dia 14 de junho de 2012 já estavam na região 324 oficiais da Polícia Nacional de 4 chefaturas de polícia locais, incluindo do Grupo Especial Operativo(GEO), da força de elite da polícia (FOPE), a polícia montada, antimotins e um helicóptero Robinson, para cumprir a ordem de Ninfa Aguilar.

Às sete horas da manhã todo o contingente já estava a postos. Erven Lovera sobrevoou a área com o helicóptero para fazer o primeiro reconhecimento e averiguou que os camponeses tinham armas. Então a força entrou dividida em duas, cada uma por um lado do terreno ocupado.

Roberto – o nome é fictício – outro camponês procurado pela polícia, estava no assentamento para dar apoio a seu filho de 18 anos, que almejava um lote de terra. “Cedinho pela manhã o helicóptero já estava sobrevoando a estância. Havia um grupo com escopetas e um grupo com facões. Nós estávamos com facões. Quisemos falar com eles, mas não havia conversa possível”.

Do alto, o helicóptero gritava pelo megafone que saíssem do local e acionava uma sirene altíssima. “Me surpreendeu a quantidade de policiais porque havia muitas crianças e nós pensávamos que íamos só conversar”, diz Ruben Villalba, cuja esposa e o filho, então com 3 meses, estavam no local na hora em que começou a confusão.

Roberto se lembra do momento exato em que avistou a primeira fila de policiais. “Chegaram, abriram o portão e entraram. Eu não ouvi muito bem porque estava no meio, mas vi quando entraram. Teve um senhor que foi conversar com eles, pedindo para ver o título da terra. Nisso, escutei os disparos vindo o outro lado”.

O motivo da insistência dos sem-terra para ver o título da propriedade do terreno era simples: o tal título não existe. Desde 2004, o terreno é objeto de um tremendo imbróglio jurídico que tem de um lado a empresa Campos Morumbi SA, do falecido Blas N Riquelme, e do outro o Indert, o Instituto de Terras paraguaio.

O terreno foi doado em 1967 para a Armada do Paraguai pela empresa Industrial Paraguaya. Em 2004, a terra foi transferida oficialmente ao Indert. “É quando o poder executivo, através de um decreto, declara o terreno de interesse social, e se destina para reforma agrária”, explica Ignácio Vera, ex-diretor regional do Indert. Pouco depois a empresa Campos Morumbi entrou com um pedido de usucapião – e o pedido foi acatado na justiça local. Ao mesmo tempo, Blas N Riquelme entrou com outro pedido na justiça, para transformar o terreno – totalmente desmatado e com plantações de soja – em uma reserva natural. Este pedido também foi acatado, e o terreno foi registrado como “Reserva Natural Campos Morumbi”.

“Houve um cumplicidade de vários funcionários do Indert e da Escrivania Maior do governo para adquirir a terra de maneira irregular e depois encobrir a manobra”, diz Ignácio Vera. Desde então, o Indert recorre da decisão, tendo feito reiterados pedidos para que não se expulsasse os sem-terra, pois o terreno já deveria ter sido destinado à reforma agrária – como mostra este documento dirigido pelo assessor jurídico à Fiscalia em agosto de 2011 (veja aqu [4]i).

Os pedidos do Indert seguiam sendo ignorados pela justiça local, e a pretensa propriedade de Riquelme era evocada em todas as ordens de desocupação, como mostram documentos revisados pela Pública (veja aqui [5], aqui [6] e aqui [7]).

No dia 4 de janeiro de 2012, a comissão permanente da Câmara dos Deputados, em sessão ordinária, emitiu uma decisão instando o Ministro do Interior do governo Lugo, Carlos Filizzola, a cumprir a demanda da mesma fiscal Ninfa Aguilar, que pedia a descoupação do terreno de 2 mil hectares que, segundo ela, pertencia à empresa Campos Morumbi.

A decisão – clique aqui para ler [8] – foi resultado de um pedido feito pelo deputado colorado Oscar Tuma para que o Congresso desse uma forcinha à fiscal. O motivo alegado para uma intervenção de alto nível – engatilhada pelo próprio Congresso Nacional – seria a preservação do meio ambiente. “Quero ressaltar que essa massa de bosque é valiosa para a República do Paraguai, porque na zona se geram 60% dos manaciais do Rio Acaray”, escreveu Tuma, no requerimento (clique aqui [9] e aqui [10] para ler).

Seis meses depois, o mesmo Tuma foi o principal advogado da acusação a Lugo realizada pelo Congresso. “Um juízo político geralmente se faz quando há mortes”, declarou ele na televisão na véspera do impeachment. “Nós podemos aguentar muita coisa, viemos aguentando muitas coisas que estão entre as causas da acusação, que se deram anos atrás. Mas quando existem mortes…”.

Leia a parte 1: Fernando Lugo governou com o parlamento “mais arisco” da América Latina [11]

Leia a parte 2: A destituição,vista do Palácio [12]

O Estado, Cativo

Na região de Canindeyú, o então diretor do Indert Ignácio Vera era próximo dos movimentos camponeses – próximo demais, na visão da polícia e de fazendeiros da região. Tanto que, no dia 15 de junho, em que ocorreu o confronto, teve que sair fugido do local, sob ameaça de morte. O relato oficial que Vera enviou ao seu superior no Indert – veja aqui o documento [13] – revela a fragilidade do Estado paraguaio, que pouca autoridade mantém na região fronteiriça.

“Fui fazer a verificação no lugar mencionado, chegando aproximadamente às 11 horas. Em um controle policial sobre a estrada de asfalto perguntei a direção exata para chegar ao lugar dos fatos juntamente com um veículo do Ministério da Saúde”, escreve Ignacio Vera. “Ao sair em um caminho transversal tomamos um atalho que não era correto e neste ínterim recebi uma chamada pelo telefone para que saísse da zona porque estavam os policiais estavam planejado me matar, especificamente os da GEO (operações especiais). Fomos ao acampamento deles e comentamos com uma policial mulher a gravidade do caso, que se tinha que evitar o enfrentamento entre paraguaios; ao sair da propriedade, onde havia várias pessoas e policiais, apontaram-me as escopetas e disseram-me que saísse dali porque era por minha culpa que estava acontecendo este enfrentamento”.

Vera relembra que saiu correndo do local, com o consentimento de seus superiores no governo federal. Teve que deixar a caminhonete do Indert na sua casa e contar com a ajuda do seu irmão, que o levou, junto com a família, ao município de Caaguazú. “Estava muito preocupado com a situação, porque já compreendi que era um problema de perseguição política, e que podia haver violência em qualquer parte”, disse em entrevista à Pública. Vera ficou alguns dias escondido até poder voltar à região. Um mês depois, já sob o novo governo, do liberal Federico Franco, foi afastado da direção do Indert.  

Miguel Lovera, diretor da Senave, também visitou a região naquele mesmo dia – e também teve que ir embora rapidamente. “Eu me comuniquei com os outros ministros, e consultei se devia ir pra Curuguaty, e como não tive respostas, fui para lá e me reuni com dirigentes camponeses. Eles estavam com muito medo, acreditavam que a matança ia continuar. Temiam muito pela minha integridade física. Pediam para que eu não saísse às ruas, ‘não saímos e esperamos o que vai acontecer’, me diziam”.

Pouco depois, a Ministra de Saúde Esperanza Martines, considerada a ministra forte do governo Lugo, chegou a Curuguaty para prestar assistência às vítimas. O cenário que encontrou, segundo contou em entrevista à Pública, era desolador.  “Quando cheguei, a polícia estava rodeando o hospital porque havia uma ameaça de que os camponeses iam invadir para levar os corpos dos seus parentes. Os jornalistas andavam livremente nos corredores”, lembra ela. “Os cadáveres dos camponeses estavam todos jogados, ao lado da entrada, e os dos policiais estavam em um quarto nos fundos, resguardados. Depois me inteirei que a polícia somente transportou, nos aviões que chegaram de tardezinha, os policiais feridos e mortos até Assunção, onde se faria a autópsia”.

Esperanza lembra do pânico de um funcionário do seu ministério. “Um profissional de saúde me ligou, ‘vai escurecer, ficaram para trás todos os cadáveres dos camponeses e eu tenho medo que sejam levados embora’”, lembra. “Aí eu liguei para o Fiscal Geral do Estado e lhe disse que me parecia muito suspeito que somente se levassem os cadáveres dos policiais e não dos camponeses. Como se vai investigar? Disse que eu ia fazer uma denúncia internacional”. Ao final, os cadáveres dos camponeses foram levdos nas ambulâncias do Ministério para poderem passar pela autópsia no dia seguinte. Porém, até meados de novembro, os resultados não eram conhecidos.  

Naquele mesmo dia, Esperanza teve que voltar correndo a Assunção – “já se estava falando do juízo político no Congresso”, diz – mas tentou, ainda, ajudar alguns moradores com quem teve uma rápida reunião. “Falamos com camponeses, e eles diziam que muita gente estava sendo presa simplesmente por perguntar sobre os feridos”.  Não conseguiu fazer nada nos dias seguintes, engajada nas negociações políticas para evitar a destituição de Lugo. Esperanza foi, junto com o chefe de gabinete Lopes Perito, a única ministra a ser mencionada nominalmente no libelo acusatório apresentado pelo Congresso para destituir Fernando Lugo. Os deputados afirmaram que os ministros agiram de forma “absolutamente equivocada” em Curuguaty, ao “tratar de maneira igual policiais covardemente assassinados e aqueles que foram protagonistas destes crimes” – ou seja, os camponeses.

Ainda em Curuguaty, na tarde do dia 15, o jovem Miguel Ángel Correa, de 20 anos, técnico do ministério de Agricultura, foi preso ao chegar ao hospital municipal, onde buscava saber sobre o parente de um amigo seu, ferido durante o conflito. Segundo denúncia [14] da Anistia Internacional, Miguel Ángel não foi só preso, mas torturado pela polícia: na Cadeia Coronel Oviedo, apanhou e foi ameaçado de morte.

Embora não tenha colocado os pés no local onde ocorreu o crime, seu nome consta no duvidoso relato policial como tendo sido detido por ter relação com a ocupação (clique aqui, [15] aqui [16] e aqui [17] para ver). Por conta disso, os primeiros pedidos do seu advogado para que fosse solto – por não ter absolutamente nada a ver com o fato – foram negados pelo juiz. Ele só foi solto um mês depois.

Outros camponeses presos pela polícia tiveram sorte pior, como Felipe Neri Urbina, detido quando tentou acudir um sem-terra que havia sido baleado no tórax e que tentava escapar pela estrada Rota 10. Ou Lúcia Aguero Romero, empregada doméstica que passava alguns dias com seu irmão em um casebre de madeira no terreno ocupado, cuidando do trabalho doméstico. Os dois permanecem presos. “Às 8 horas aproximadamente, vi que vinham muitos policiais ao longe e saí de casa para curiosar; encontrei um senhor com seu filhinho cujo nome não lembro que perguntou se eu podia cuidar da criança para ele ir escutar o que os policiais diziam, deixando comigo o menino”, contou ela em depoimento que consta da investigação da Fiscalía. “Logo de meia hora mais ou menos escutei vários disparos, jogando o menino no matagal (…) quando quis me aproximar me feriram na coxa esquerda e quando me atirei em cima do menino para protegê-lo a polícia chegou e me agarrou” (clique aqui [18], aqui [19] e aqui [20] para ler) .

Lúcia, junto com outros camponeses, está em greve de fome há 60 dias, em protesto contra a prisão preventiva sem provas nem julgamento, que se prolonga por  5 meses. O estado de saúde dos grevistas é débil – alguns perderam mais de 20 quilos – e, na última semana, eles foram transferidos para um hospital para receber tratamento forçado. A situação dos presos gerou protestos na capital Assunção em que dezenas de manifestantes acamparam diante da Fiscalía Geral. Mas, às quatro da madrugada do dia 21 de novembro, os manifestantes foram acordados com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, e expulsos do local. Em nota, a polícia afirmou que a ação se realizou porque “uma via pública não pode ser bloqueada”.

Os furos da investigação e uma cápsula de bala 5,56

Uma cápsula de projétil dourada, feita de latão militar, com 9,50 mm de diâmetro, pode ser a evidência definitiva de que a investigação do fiscal Jalil Rachid está desconsiderando muitos elementos cruciais.

No dia 2 de outubro, em uma conferência de imprensa [21] Rachid divulgou a conclusão da Fiscalia, de que os agentes policiais caíram em uma emboscada “previamente preparada e planejada” por sem terra armados com rifles, escopetas, foices e machados.  Rachid afirmou também que Rubén Villalba é o principal responsável pela tragédia.

Em pouco mais de dois meses de investigação, porém, a Pública teve acesso à cápsula de uma bala 5,56, utilizada em fuzis M16 e carabinas M4 – armas usadas tanto por grupos de elite das forças de segurança do Paraguai como por traficantes que agem na fronteira com o Brasil, onde se trasporta de maconha e eletrônicos até agrotóxicos. 

A cápsula foi, segundo testemunhas, encontrada no terreno de Marina Cué pouco depois do conflito. Trata-se de uma cápsula de bala fabricada em 2007 em Lake City Army Ammunition Plant (LCAAP), um complexo militar pertencente ao governo americano em Salt Lake City, no estado de Utah,  administrado pela empresa militar privada Alliant Techsystems (ATK). A ATK exporta armas e munições para o Paraguai através da empresa SAKE SACI, segundo registros do governo americano compilados pela consultoria Import Genius. A ATK enviou pelo menos 18 carregamentos até 2012, segundo a Import Genius – que, no entanto, não precisou que tipo de materiais foram exportados. Contatada pela Pública, a ATK se negou a dizer se exporta apenas para forças militares no Paraguai ou também para grupos privados. “A ATK não revela essas informações sobre cada um de seus programas”, afirmou a assessoria de imprensa.

A cápsula de bala 5,56, que permanece em um local seguro no Paraguai, pode ser o único indício de que se utilizaram, no dia do conflito, armas militares – sejam elas pelas forças especiais da polícia ou por francoatiradores contratados. Dezenas de outras cápsulas semelhantes, recolhidas no local, simplesmente desapareceram.

No informe da polícia, ao qual à Pública teve acesso – veja aqui [22] – aparecem apenas dois invólucros de balas 5,56, que não foram periciados porque não foram encontradas as armas correspondentes. No entanto, diante de uma multidão de fotógrafos, o político Julio Colman, detentor de um poderoso vozeirão que todos os dias preenche as ruas de Curuguaty no seu programa de rádio matinal, coletou, e entregou [23] à Fiscalia, diversas cápsulas semelhantes no dia do massacre.

Mesmo assim, o fiscal Rachid continua negando a existência de cápsulas de balas de fuzis automáticos no local, afirmando que “neste caso o número de falecidos teria sido maior”, ao jornal ABC Color [24]. Segundo Rachid, nenhuma arma militar foi utilizada naquela manhã. “Tomei declarações testemunhais dos agentes que intervieram e elas estão anexadas ao relatório fiscal. Todos coincidem em dizer que não utilizaram armas com projéteis reais, nem gás pimenta”, afirmou.

Desde que apresentou suas conclusões em outubro, o fiscal tem sido cada vez mais criticado. Além dos protestos pedindo a libertação dos camponeses, a verdade é que a sua hipótese– de que 70 camponeses teriam emboscado 324 policiais com escopetas de caça – não convenceu ninguém.

O vídeo que desmente o fiscal

A maior pedra no sapato do fiscal é um informe detalhado, publicado em outubro pela organização PEICC (Plataforma de Estudio e Investigación de Conflictos Campesinos) fundada pouco depois da destituição de Lugo pelo político liberal Domingos Laino – um homem calmo, mas de palavras enfáticas, quase dramáticas – com o objetivo explícito de investigar a investigação oficial.

O PEICC de Domingos Laino, que chegou a se exilar no Brasil durante a ditadura de Stroessner, também assumiu a defesa dos camponeses presos, e está pedindo a completa anulação da investigação. “Querem desvirtuar a investigação por motivos políticos”, vocifera o fiscal Rachid. Mas as falhas levantadas pelo relatório do do PEICC são eloquentes.

Primeiro, o informe – leia aqui a íntegra [25] – questiona o fato de só terem sido encontradas no local cinco escopetas de caça e um revólver, armas que dificilmente conseguiriam matar tanta gente em tão pouco tempo. Analisando um vídeo gravado pela polícia, o PEICC defende que se ouve uma rajada de fuzil automático no momento do tiroteio. Para o PEICC, isso demonstra que possivelmente havia francoatiradores profissionais no local. A evidência é descartada pelo fiscal Rachid.

O mesmo vídeo mostra a presença de mulheres e crianças no local do confronto, o que, para o PEICC, desmentiria a versão de uma emboscada. Já na investigação apresentada pela Fiscalia, todos os mais de trinta depoimentos de policiais recolhidos batem na mesma tecla: que não havia, ali, nenhuma mulher ou criança. É mentira. Também dizem que os camponeses estavam fortemente armados. Mais uma vez, o vídeo publicado pelo PEICC desmente essa versão: apenas alguns camponeses que aparecem portam escopetas de caça.

A coisa fica pior. Das cinco escopetas periciadas pela polícia, apenas uma se mostrou capaz de atirar durante os testes de balística. E uma das armas incluídas no informe pela polícia foi, na verdade, roubada no dia 22 de junho, uma semana depois do massacre, da casa do general Roosevelt Cesar Benitez Molinas, e abandonada atrás de uma igreja em Curuguaty (veja o relato aqui [26] e aqui [27]).

Assista ao vídeo comentado pelo PEICC, traduzido para o português pela Pública [28]

Nos dias que se seguiram à matança, diz o relatório, o médico forense Pablo Lemir chegou a afirmar que os policiais foram mortos com “disparos de cima para baixo” e que “a maioria dos orifícios de entrada dos corpos dos policiais coincidem com as áreas que estavam desprotegidas pelos coletes antibalas (…) com o que se presume que quem realizou os disparos conhecem os lugares que os coletes não cobriam”. Lemir declarou à imprensa que “as características dos disparos – seria apressado dizer agora – mas configuram básicamente uma emboscada”.

A hipótese de que houvesse francoatiradores na área foi, depois, descartada pela Fiscalía, e os resultados dos informes do forense não foram apresentados ao público quando Rachid anunciou suas conclusões. 

Também não consta na investigação da Fiscalía o fato de que o helicóptero usado pela polícia, que disparava uma sirene ensurdecedora, atirava durante o confronto. Todos os policiais entrevistados afirmam que o helicópeto não estava sobrevoando a área durante o tiroteiro. Mas um vídeo vazado pelo Youtube mostra, de fato, o helicóptero atirando (clique aqui [29]). O camponês Roberto  (nome fictício), entrevistado pela Pública, lembra bem deste detalhe. “Os feridos estavam correndo e eles disparavam do helicóptero, que estava muito baixo”.

O informe do PEICC mosta ainda policiais manipulando os corpos dos camponeses, atirando sobre eles invólucros de balas e escopetas, para posarem para as fotos que ilustariam os jornais nos dias seguintes. As fotos da montagem da cena, segundo Laino, foram doados ao PEICC por fotógrafos “que não concordam com o que aconteceu” – e não saíram na imprensa paraguaia.

Coincidentemente, é uma foto desfocada, sem autoria definida, que foi usada para caracterizar Ruben Villalba como o homem que atirou em Erven Lovera, dando início à chamada “emboscada” à polícia.

Segundo os depoimentos dos policiais – muitos dizem não poder identificar os camponeses porque eles estariam com o rosto coberto por panos – o homem que atirou em Lovera portava um revólver calibre 38, niquelado, que teria sido sacado após outro homem (ou o mesmo, dependendo do depoimento) tentar atingir Lovera com uma foice. A arma não aparece na foto, mas a foice, sim.  Rubem nega que o homem de vermelho seja ele.

Em meados de julho, um policial de nome Anoni Paredes prestou um segundo depoimento à polícia, no qual afirma que “conforme as diversas fotografias que pude observar nos meios de comunicação e tendo em conta conheci Rubén Villalba, posso dizer que ele não se encontra entre os invasores que morreram no lugar e que esse que veste a camiseta vermelha tem a mesma compleição física”.

Além disso, a investigação guarda contra Ruben, como peça-chave para sua condenação, um depoimento “confidencial”, anônimo, datado de 26 de junho de 2012, no qual o depoente afirma que se unira ao grupo vinte dias antes do famigerado 15 de junho.

“O senhor Villalba era o encarregado de dirigir as reuniões; em todas estas reuniões que se realizava permanentemente no sítio dava instruções de como resistir às Forças de Ordem, dizia que ‘não é que os polícias sejam culpados da pobreza dos camponeses, mas são os elementos utilizados pelo governo de turno’. Nas suas dissertações falava muito do guerrilheiro Che Guevara e do comunista russo Lenin, mas no entanto se autodeclarava analfabeto. Ele tinha consigo sempre uma boa pistola e às vezes efetuava disparos, revelando muito boa pontaria, além de mostrar certas habilidades táticas no uso da arma e na prática de combate”. O depoimento – clique aqui [30] e aqui [31] para ler – diz, ainda, que Ruben comprou balas “por um valor aproximado de 2 milhões de guaranis (mil reais) e que no lugar sempre estava uma pessoa que se dizia armeiro, encarregado da manutenção das as armas”. O depoente anônimo afirma que, assustado, resolveu sair dali antes da reintegração de posse.

Na sua cela superlotada em Tacumbú, Villaba tem pouca esperança de escapar ao papel de grande algoz do massacre de Curuguaty, caso a investigação siga no mesmo rumo. Ou de ter um julgamento justo.  Contra ele estão o fiscal, o juiz, e o breve presidente Federico Franco, cujo mandato termina em agosto de 2013, e que depende, em grande parte, da manutenção da versão de que os camponeses emboscaram os policiais porque “o presidente Lugo se mostrava sempre com portas abertas aos líderes destas invasões, dando uma mensagem clara sobre seu apoio a esses atos de violência e comissão de delitos”, como diz o documento do impeachment.  

* Colaboraram  Julio Benegas Vidallet e Susana Balbuena 

A Série #EspecialParaguai, sobre a destituição de Fernando Lugo, continuará em dezembro

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