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Banda Ave Sangria pede anistia à justiça por censura na década de 70

Criado em 22/02/16 16h29 e atualizado em 22/02/16 17h37
Por Cibele Tenório Edição:Gésio Passos Fonte:Portal EBC

“Seu Waldir, o senhor magoou meu coração (...). Seu Waldir, isso não se faz, não. Eu trago dentro do peito um coração apaixonado batendo pelo senhor”. Os versos românticos da música "Seu Waldir", da banda pernambucana Ave Sangria, foram considerados indevidos pelos censores do regime militar no ano de 1974. O motivo: a canção era cantada por um homem e teria, assim, teor homossexual e foi reprovada. Com a música proibida, o primeiro LP da banda psicodélica foi retirado das prateleiras. A banda, com musicalidade à frente do seu tempo, acabou antes de musicar novos versos. Passados 42 anos, o silêncio provocado pela opressão ainda ecoa na memória dos integrantes do grupo, que nunca se conformaram com o desfecho da história. A Ave Sangria entrou com um requerimento que pede anistia e reparação pelos danos sofridos pela censura que ocasionou o fim do grupo. Como uma vingança por "Seu Waldir" e por todas as músicas que não foram feitas.

“Antes de gravar o disco, nós submetemos todas as letras aos censores e 'Seu Waldir' passou batida por eles. Acho que eles pensaram que seria uma mulher cantando”, relembra com bom humor o músico Almir de Oliveira, um dos fundadores do grupo.

“Seu Waldir, o senhor/ magoou meu coração/fazer isso comigo, Seu Waldir/ Isso não se faz, não/Eu trago dentro do peito/ um coração apaixonado/ batendo pelo senhor”

Influenciados por David Bowie, Rolling Stones e Beatles, os cabeludos pernambucanos também flertavam com a música regional e se apresentavam de forma extravagante. Roupas coloridas, batom ou mertiolate nos lábios simulando sangue e até trocas de beijos entre os integrantes no palco chocavam o público e desafiavam a homofobia e o machismo vigentes no país. “A gente não tinha atividade política, nosso jeito de dizer o que pensávamos era a através da música. E como não se podia falar diretamente, a gente transgredia na performance. Naquela época não se podia usar a palavra 'liberdade' nas canções. A gente não falava liberdade, mas tentava voar com o nosso som”, diz Almir.

Capa do primeiro e único disco da Ave Sangria
Capa do primeiro e único disco da Ave Sangria.

A música psicodélica criada no calor nordestino despertou a atenção da gravadora Continental que fez um contrato para a gravação de dois discos. O segundo não chegou a ser gravado. Com o LP apreendido e recolhido das lojas por ordem da censura federal, a banda formada por Marco Polo (vocais), Ivson Wanderley (guitarra solo e violão), Paulo Rafael (guitarra base, sintetizador, violão, vocal), Almir de Oliveira (baixo), Israel Semente (bateria) e Agrício Noya (percussão) se desfez.

“A gente não tinha mais instrumentos, não tinha mais dinheiro pra se manter e por causa da proibição do disco, passamos a enfrentar desconfiança de outras gravadoras. Com isso a banda foi acabando. Alguns músicos foram tocar na banda de Alceu Valença que estava começando e eu voltei para a engenharia, que eu tinha largado pra viver de música”, conta Almir. 

Para o jornalista José Teles, autor do livro “Do frevo ao manguebeat”, que documenta a efervescência musical em Pernambuco, a ausência de apoio de outros músicos também contribuiu para que a trajetória da Ave Sangria fosse interrompida tão cedo. “Todo mundo na Tropicália, o Gil (Gilberto Gil) o Caetano (Veloso) falava dos Novos Baianos, por exemplo, colocavam lá em cima. Nesse momento, o Recife apesar dessa cena urdenrground, era bem conservador. Tinha Capiba que não era do rock, o movimento armorial... Terminaram sem apoio”, constata.

No livro, Teles relata como a banda lotava casas de show no Nordeste e produzia uma musicalidade tão original quanto à de grupos contemporâneos como os Novos Baianos. “Não seria exagero afirmar que os dois mais originais grupos de rock nacional dos anos 70 foram os Novos Baianos e o Ave Sangria. Ambos partilhavam inúmeras semelhanças, que ainda desde o modus vivendis nada ortodoxo, passando pela salada musical que faziam, sem delimitar onde acabava o rock e começa a MPB", afirma. 

Anistia

O pedido de anistia foi feito por quatro integrantes e familiares dos seis músicos que faziam parte da banda. Pela Lei da Anistia promulgada em 2002, pessoas que foram vítimas de ato de exceção cometidas por agentes do Estado entre o período de 1948 e 1988. Após julgamento pela Comissão de Anistia, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, os requerentes podem receber desculpas oficiais do Estado e receber indenizações, em prestação única ou mensal, que varia de acordo com cada caso além da garantia da contagem do tempo em que o anistiado esteve forçado ao afastamento de suas atividades profissionais. 

Na década de 1970, a rotina dos músicos da Ave Sangria se resumia a ensaiar fazer shows e comparecer periodicamente à polícia para submeterem cartazes e letras de música aos censores. Relembrando o período da censura do LP, Almir conta que os danos foram bem maiores do que as perdas financeiras. “O que a gente passou não foi brincadeira. Muita coisa aconteceu depois e nos afetou psicologicamente também. Eu passei seis meses sem conseguir falar com ninguém. Foi dramático demais.  Esse fato acabou com a minha história na música. Imagina o quanto a gente perdeu nesses 40 anos?”.

Segundo informações da Comissão de Anistia, já foram anistiadas cerca de 40 mil pessoas nestes 14 anos. O Portal EBC buscou junto ao órgão dados que indiquem quantos dos anistiados brasileiros são músicos que tiveram suas carreiras afetadas pela ação do regime militar no Brasil, mas a Comissão informou que não tinha informações que permitiam traçar os perfis dos anistiados. O processo da banda Ave Sangria cita outros dois artistas que já solicitaram anistia por causa de censura artística: o mineiro Sirlan Antônio de Jesus, anistiado em agosto de 2015, e do ator Bayard dos Santos Tonielli, integrante do grupo Dzi Croquettes, ainda em fase de pré-análise.

Banda pernambucana Ave Sangria
 Banda pernambucana Ave Sangria.

Outro lamento vem do desejo guardado de lançar um segundo disco. Quando contratados pela Continental, os músicos foram ao Rio de Janeiro e tiveram apenas uma semana para gravar o disco homônimo. O som ficou menos cru do que o que a banda desejava. A pressa e a pressão da gravadora alteraram o resultado final do produto. “Se a censura não tivesse nos parado, a gente teria gravado o segundo disco com mais calma. A vida toda nós ensaiamos em garagem. Aquela foi a primeira vez que ouvíamos o nosso próprio som. Um segundo disco nosso teria sido muito melhor, muito superior”. 

A Comissão de Anistia informou que o processo tramita em pré-análise. Segundo o órgão, após uma pré-analise dos requistos formais, são solicitadas diligências e pedidos de informação a entidades públicas e privadas, a fim de viabilizar a análise do pedido. Assim o processo é avaliado pela equipe técnica da Comissão e encaminhado para um Conselheiro Relator, sendo julgado em duas instâncias pela Comissão, com direito a recurso do requerente. O resultado é encaminhado ao Ministro da Justiça para publicação da decisão. Hoje, existem mais de 14 mil requerimentos em andamento.

Um novo voo 

Foi só a partir da difusão de informações proporcionada pela internet que a obra daqueles cabeludos pernambucanos se transformou em ícone cult.  Quatro décadas depois do último show realizado em  29 de dezembro de 1974 numa apresentação histórica no Teatro de Santa Isabel, no centro de Recife, a Ave Sangria voltou a tocar junto também em Recife. Desde então tem feito shows em eventos como a Virada Cultural de São Paulo. “Hoje a gente faz show com muita gratidão a essa juventude da internet que redescobriu a gente”, comenta Almir.

Nas apresentações são vendidos as reedições em vinil de 180g e CD do seu mítico álbum homônimo e também de um disco nunca lançado oficialmente que traz o registro do penúltimo show e que se chama Perfumes Y Baratchos.

“A banda foi resgatada mesmo pela internet. Quase ninguém conhecia o disco e hoje ele virou artigo de colecionador. É bonito de ver por que hoje os músicos que os acompanham  também são fãs que beberam daquele som como os meninos da Orquestra Contemporânea de Olinda. E o som deles continua reverberando em outros músicos pernambucanos como Juvenal Silva e a Banda Tagore”, diz Telles.

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