Coluna da Ouvidoria - Desconfiança e desprendimento

30/12/2013 - 14h41

Brasília - A crescente perda de confiança nas instituições torna mais delicado o trabalho dos veículos da mídia e aconselha uma sensibilidade maior em relação às expectativas do público. Nessas circunstâncias, o papel de uma ouvidoria requer um esforço que vá além da intermediação mecânica entre as demandas do público e as respostas das áreas técnicas para as quais as demandas são encaminhadas. Por um lado, a ouvidoria de uma empresa midiática, sobretudo de uma empresa pública, tem a função pedagógica de qualificar o público para saber melhor ler, ouvir e ver os conteúdos que os veículos da mídia lhe oferecem e assim adquirir mais competência para exercer uma influência na produção desses mesmos conteúdos por meio de suas demandas. Como foi assinalado na coluna de 17/12, intitulada As reclamações e suas consequências [1], os desfechos concretos das demandas dirigidas à Diretoria de Jornalismo (Dijor) sobre as matérias publicadas pela Agência Brasil dependem principalmente da especificidade e da adequação das demandas. Quanto mais as demandas se referem a matérias específicas e identificam erros reconhecidos pela Dijor, maior a probabilidade de gerar futuras matérias que levam em conta as considerações levantadas pelos leitores.

Por outro lado, é importante que a ouvidoria mantenha um diálogo construtivo com as áreas técnicas da empresa. Apesar dos atritos e mal-entendidos que ocasionalmente surgem nessa relação, não se pode perder de vista a função educativa da ouvidoria dentro da organização. Segundo o professor Luiz Carlos Assis Iasbeck, da Universidade Católica de Brasília, “a localização estratégica da ouvidoria recomenda que ela insira em suas atribuições algo que é inerente ao bom funcionamento da empresa como um todo: a preparação de todos os funcionários [dirigentes, técnicos e de execução] envolvidos com o fornecimento das informações para que eles desenvolvam competências comunicativas de modo a responderem prontamente – e com qualidade – as questões demandadas pelos consumidores. Por isso, o pessoal da Ouvidoria pode e deve educar os funcionários das áreas demandadas a compreenderem e responderem as questões segundo o ponto de vista do receptor”.

Saber ouvir é essencial. Para o professor Iasbeck, “numa ouvidoria necessitamos ouvir o 'outro' na perspectiva da subjetividade dele ... e respondermos com vistas a essa mesma subjetividade. Algo, portanto, muito diferente – e muito mais difícil – do que sugere outra expressão do conhecimento popular ao apregoar que 'devemos nos colocar no lugar do outro'. Sabemos que o lugar do outro é inalienavelmente dele e ninguém tem como ausentar-se ou descontaminar-se de sua própria subjetividade para assumir a subjetividade do outro, como se fosse ele. Melhor – mas, mais difícil – é desenvolver condições para enxergarmos o outro no lugar dele, sem sairmos de nosso próprio lugar. Sem dúvida, uma atitude de respeito para conosco mesmos e para com o outro” [2].

O “outro” neste caso é um público composto de indivíduos cada vez mais descrentes. Em relação aos meios de comunicação, que figuram entre as instituições nas quais a população brasileira mais confia – quarto lugar entre 18 instituições avaliadas –, o Índice de Confiança Social (ICS) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acusou uma queda gradual de 15 pontos (numa escala de 0 a 100) entre 2009 e 2013, de 71 para 56 pontos [3]. Quando os conteúdos se baseiam nas declarações das autoridades, a atenção precisa ser redobrada para que a credibilidade da mídia não seja contaminada pela desconfiança da população em relação aos órgãos do governo. Em relação ao governo federal, por exemplo, que ocupa o 12º lugar no ranking, o ICS ficou praticamente estável em 53 pontos no período de 2009 a 2012, caindo para 41 pontos em 2013 (o que pode ser uma flutuação pontual causada pelos protestos de junho/julho, já que a pesquisa foi realizada de 11 a 15 de julho deste ano).

A descrença se manifesta em duas demandas recebidas pela ouvidoria em dezembro. Na primeira, o senhor Wagner Moraes, da cidade de São Paulo, questiona uma matéria intitulada Emissões para ajudar bancos e custear tarifas de luz aumentaram dívida pública em R$ 31,4 bilhões [4]. O leitor pede esclarecimentos: “Gostaria de entender esta reportagem sobre o aumento da dívida pública. Principalmente o contexto sugerido, de o governo jogar dinheiro fora!” A Dijor respondeu: “Aumento da dívida pública não tem relação com jogar dinheiro fora. Por exemplo, o governo pode aumentar a dívida pública para fazer investimentos sociais e, com isso, melhorar as condições de vida de parte da sociedade. Mais tecnicamente explicando, a dívida pública significa financiar despesas do presente com recursos do futuro por meio da captação de dinheiro emprestado pelos investidores ao governo. O problema da administração da dívida pública consiste justamente em manter o endividamento sob controle. Caso a dívida bruta dispare, os investidores ficam mais relutantes em emprestar ao governo, que, no limite, pode dar o calote na dívida. Isso não tem a ver com desperdício de recursos, mas com a confiança em que os investidores têm na economia”.

O que se observa aqui é uma resposta tecnicamente correta. Não há nada na matéria que sugira o desperdício de dinheiro. Como entender, portanto, o que o leitor quis dizer por “jogar dinheiro fora” no “contexto sugerido”? A falta de clareza em muitas das demandas recebidas pela ouvidoria admite várias interpretações e neste caso o leitor pode ter simplesmente externado sua opinião sobre os gastos apontados na matéria ou os gastos do governo em geral, como a Dijor entendeu.

No entanto, o “contexto sugerido” pela matéria pode também ser uma alusão ao mecanismo de emissões diretas de títulos do governo, que foi o enfoque da reportagem. O contexto da chamada contabilidade criativa estava claramente na pauta do repórter que produziu a matéria. Dentre outros indícios, no texto há um hiperlink para uma matéria de 2012, em que se observa que essa forma de ajuda aos bancos, embora não tenha impacto nos gastos do governo nem no superávit primário, “porque o governo não desembolsa o dinheiro diretamente para os bancos”, tem provocado questionamentos de especialistas, porque aumenta o endividamento do governo federal [5]. Na matéria consta também que a decisão do governo de emitir títulos diretos para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), para indenizar as concessionárias pela redução nas tarifas de luz, foi tomada depois de receber críticas pela proposta anterior de usar outro mecanismo financeiro – recebível da Usina Hidrelétrica de Itaipu - para o mesmo fim. Teria sido interessante se na matéria e na resposta da Dijor os fundamentos dessas críticas tivessem sido abordados, como os foram, aliás, em duas matérias publicadas pela ABr em julho e setembro deste ano [6]. E que o contexto crítico da própria reportagem tivesse sido reconhecido pela Dijor na sua resposta.

Na segunda demanda, uma leitora que preferiu que seu nome e comentário não fossem citados apresentou uma dúvida em relação à matéria intitulada Gastos de brasileiros em viagens internacionais são recorde para novembro [7]. Achando que as cifras citadas na matéria são muito elevadas e que os turistas brasileiros normais não têm tanto dinheiro para gastar no exterior, ela quis saber se os gastos com as comitivas do governo estão incluídos nos cálculos. A Dijor respondeu: “Nos gastos de brasileiros em viagem ao exterior estão incluídas as despesas de funcionários de governo. Nos dados do Banco Central, também há dados de gastos para viagens com fins educacionais, culturais ou esportivos; negócios; por motivos de saúde; turismo; e cartões de crédito. Em novembro, do total de US$ 1,874 bilhão dos gastos de brasileiros no exterior, US$ 5 milhões referem-se a gastos de funcionários de governo. A maior parte dos gastos de brasileiros no exterior está em turismo (US$ 818 milhões) e cartão de crédito (US$ 986 milhões). Esses dados, especificando o motivo da viagem, não estão no relatório do setor externo divulgado à imprensa, mas ficam disponíveis na página do Banco Central.

Essa complementação de informações é muito esclarecedora e falta em 13 das 14 matérias publicadas pela ABr nos últimos 12 meses sobre os gastos dos brasileiros no exterior – sem considerar o mesmo tanto de matérias que apenas citam as viagens internacionais como um dos componentes das contas externas do pais. Em somente uma matéria, publicada em outubro, sobre a diminuição dos gastos com os cartões de crédito, alguns dos itens que formam a rubrica geral de viagens internacionais são discriminados [8]. E há outra matéria publicada em julho sobre o turismo estrangeiro no Brasil, com comparações com o turismo brasileiro no exterior, inclusive o perfil dos gastos, mostrando que os brasileiros gastam quase quatro vezes mais, principalmente nas compras – que a Dijor poderia ter aproveitado na resposta à leitora [9].

Os pais costumam ensinar os filhos a perguntar aos seus professores, sempre que houver dúvidas, sem receio de serem considerados burros, porque seguramente outras pessoas têm as mesmas dúvidas. Quando nas respostas aos leitores a Dijor acrescenta informações que não estão disponíveis nas matérias, não seria o caso de aproveitar os resultados e publicar outra matéria para que as outras pessoas pudessem se beneficiar das mesmas informações? O mesmo princípio de valorizar a própria produção poderia ser aplicado também numa utilização maior dos arquivos da ABr no atendimento das demandas, mesmo que muitas vezes as matérias em questão tenham links para acessar esses conteúdos. Para responder à desconfiança do público, além de corrigir eventuais erros, os veículos de comunicação poderiam assumir uma atitude de desprendimento no esforço de entender o ponto de visto do receptor e lhe apontar as pistas que já existem no seu acervo para ajudá-lo a tirar suas próprias conclusões.

Boa Leitura!