Carolina Sarres
Repórter da Agência Brasil
Brasília - A compensação às famílias de vítimas de atos do Estado em regimes autoritários tem de ser feita pela promoção da Justiça. Essa foi a principal conclusão do debate sobre Justiça de transição no Brasil, hoje (11), no Fórum Mundial de Direitos Humanos (FMDH), em Brasília.
A Justiça de transição é o sistema de passagem de regimes autoritários e centralizados para a democracia. Nesses casos, em que há violação de direitos humanos - como tortura, desaparecimento forçado e sequestro -, a consolidação do regime democrático pressupõe a recuperação da verdade, o respeito à memória, a compensação das vítimas e a promoção da justiça.
Para a representante da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Rosa Cardoso, o Brasil deu ênfase à compensação das vítimas, mas não promoveu a responsabilização dos culpados, especialmente devido à Lei da Anistia, que concedeu perdão aos autores de violações de forma irrestrita. Ela coordena grupos de trabalho sobre o período militar brasileiro analisando os aspectos da perseguição política e da repressão.
"O Estado quis comprar o silêncio das vítimas. Houve inércia por parte da sociedade em relação a examinar, recordar, julgar e punir o passado de brutalidade. Só depois de muitas lutas foram formadas comissões de reparação e a CNV, com destaque para o papel das famílias e dos parentes. Os resultados são individuais, que se constroem por meio de um trabalho artesanal. Isso demanda muita persistência e luta das vítimas e dos familiares", explicou Rosa.
Exemplo disso foi o caso do ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Arnaldo Cardoso Rocha, assassinado por agentes da ditadura em 1973, segundo comprovou laudo pericial apresentado no fórum, na manhã desta quarta-feira. A versão oficial da morte era que o ex-militante foi atingido depois de trocar tiros com militares. Com a exumação dos restos mortais de Arnaldo, comprovou-se que ele foi torturado e morto com mais de 15 tiros.
Para a esposa da vítima, Iara Pereira, ainda falta a punição dos responsáveis pelo crime e descobrir as circunstâncias da morte.
"O direito à verdade, à reparação e à não repetição, é um princípio que tem de ser respeitado. A proteção desse direito segue sendo muito questionado. Há países que não assumem a realidade e a atualidade desse princípio", disse o juiz espanhol Baltasar Garzón.
O magistrado é conhecido por atuar em casos de proteção de vítimas de regimes autoritários e emitiu uma ordem de prisão contra o ex-ditador chileno, Augusto Pinochet.
Para Garzón, no caso da América Latina, o melhor instrumento de proteção dos direitos humanos é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou recentemente o Brasil pelos atos ocorridos na ditadura militar e determinou que o governo adotasse uma série de medidas para o esclarecimento dos fatos e a apuração do paradeiro dos desaparecidos. A Comissão da Verdade foi criada nesse contexto.
"Comissões da verdade estão funcionando ou vão funcionar, mas tem de haver justiça. As comissões e a Justiça têm de atuar de forma complementar. O sistema judicial tem de dar uma resposta a essas questões e cumprir o papel que lhe corresponde, caso contrário, tem de ser questionado", informou o juiz.
No caso da comissão brasileira, para a representante Rosa Cardoso, o paradigma de não judicialização dos casos de violação de direitos humanos tem de ser superados e a interdependência entre a verdade e a Justiça - dois dos quatro pressupostos da Justiça de transição - ainda precisa de ajustes.
Para ela, a Lei da Anistia tem de ser reinterpretada para que haja a responsabilização pelos crimes de lesa humanidade cometidos no Brasil entre os anos de 1964 e 1985. Estima-se que, no período, mais de 50 mil pessoas foram presas por motivação política.
Outra participante do debate Direito à Memória, à Verdade e à Justiça foi a presidenta da organização não governamental argentina (ONG) Abuelas de Mayo (Avós de Maio, em espanhol), Estela Carlotto, aplaudida de pé pelos participantes do fórum e pela mesa de debatedores.
A ONG reivindica informações sobre netos e filhos desaparecidos durante o período militar no país, especialmente o que ocorreu entre 1976 e 1983. A estimativa da organização é que cerca de 30 mil pessoas tenham sido assassinadas e 500 bebês roubados.
"Perante a dor do desaparecimento forçado de um familiar querido, em vez de ficarmos quietas, chorando, com medo, saímos para buscar. E buscamos duas gerações: nós [avós], somos mães duas vezes", disse Estela.
Ela é avó de uma criança nascida em uma prisão clandestina. Seu neto está desaparecido até hoje, ano em que completou 35 anos de idade.
"Essa luta, que faz que não tenhamos vida, que abandonemos nosso trabalho e nossa família, é um compromisso que queremos deixar ao mundo, modestamente, para que essas histórias não se repitam. A Justiça em relação aos culpados não é vingança, não é ódio, é um direito. E isso, não podemos deixar de exigir".
Edição: Marcos Chagas
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