Coluna da Ouvidoria - Contatos diplomáticos

16/10/2013 - 21h27

Brasília - Ao declarar três funcionários da Embaixada dos Estados Unidos em Caracas personae non gratae e expulsá-los no dia 01/09, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, fez várias acusações sobre sua participação em planos para desestabilizar o país que foram tema desta coluna na semana passada [1]. As acusações tiveram o respaldo de supostas provas exibidas pelo presidente num discurso transmitido em rede nacional. Dentre elas, um vídeo que mostrou os três saindo de um prédio não identificado numa cidade identificada no vídeo como Porto Ordaz no estado de Bolívar, ao Leste do país, onde eles teriam se reunido com integrantes de “uma organização da extrema direita”.

As três matérias que a Agência Brasil publicou sobre o assunto não forneceram mais informações sobre essa organização, que se chama Súmate (em português, Agrega-te) e se autodescreve como uma “organização civil … proposta a construir a democracia, que conta com a capacidade técnica para facilitar processos de participação cidadão” [2].  Na coluna da próxima semana, a discussão da história das relações entre o governo norte-americano e a Súmate e outros movimentos e figuras da oposição venezuelana será aprofundada. Aqui basta observar que, na véspera da expulsão, o ministro venezuelano de Relações Exteriores, Elias Jaua, tinha denunciado os funcionários da embaixada por se reunirem com integrantes da Súmate com a proposta de “desconhecer” os resultados das eleições municipais marcadas para 8 de dezembro [3]. No dia seguinte, a Súmate publicou uma nota à imprensa negando a acusação e alegando que a reunião à qual o ministro e o presidente se referiram provavelmente tenha sido um encontro no dia 27 de setembro entre os funcionários da embaixada e representantes de várias igrejas cristãs e de organizações filantrópicas e de direitos humanos, para quem a Súmate tinha emprestado a sede da entidade na cidade de San Félix, também no estado de Bolívar [4].

A respeito da reação norte-americana, a reportagem se limitou basicamente a relatar a decisão do governo de retaliar por meio da expulsão de três diplomatas venezuelanos dos Estados Unidos e a reproduzir as afirmações da chargé d'affaires (encarregada de negócios) da embaixada e da porta-voz do Departamento de Estado norte-americano que qualificaram as acusações de falsas. Além disso, constatou-se apenas que na coletiva de imprensa realizada em Caracas no dia da expulsão, a chargé também disse aos jornalistas: “Meu trabalho era o que comumente fazem os diplomatas para entender bem o país”.

A cobertura da ABr poderia ter dado mais atenção aos seus comentários [5], que contêm mais detalhes sobre seus contatos e levantam questões mais amplas sobre a natureza e o escopo das funções diplomáticas. À pergunta se havia procedência na acusação de que os funcionários tinham se reunido com altos representantes da oposição, ela respondeu: “Se a acusação é por nos reunirmos com venezuelanos, é verdade, nos reunimos com venezuelanos. O diplomata não deve se limitar ao intercâmbio com o governo. Por isso viajamos pelo país, conhecemos os líderes do mundo político, econômico e cultural”. No mesmo espírito, ela observou: “Esses encontros com a sociedade civil pode ser com Súmate, pode ser com um grupo de mães ou com um grupo ambiental. Se não estivermos conversando com essa gente, não estamos fazendo nosso trabalho”.  Ela admitiu que, na viagem ao estado de Bolívar, houve encontros com representantes sindicais, mas que também tinha pedido uma reunião com o governador [chavista], que, segundo ela, não estava disponível, porque estava fazendo lobby para a Ciudad Bolívar ser escolhida sede dos Jogos Pan-americanos em 2019 [na sexta-feira, 11, a Organização Desportiva Pan-Americana anunciou que Lima, no Peru, sediará o evento].

Para o governo venezuelano as declarações da chargé serviram para confirmar as acusações feitas pelo presidente: “Essas declarações são uma confissão aberta da ingerência dos Estados Unidos nos assuntos internos da Venezuela, por isso a funcionária foi considerada persona non grata” [6].

As funções principais dos diplomatas envolvem a representação e a proteção dos interesses nacionais dos países que os enviam, além do intercâmbio de informações e a promoção de relações amistosas. Eles não são meros mensageiros entre governos. Uma das suas tarefas nos países onde servem é manter contatos com representantes da sociedade civil. Para os diplomatas, esses contatos visam não só a difundir a cultura do seu país de origem e contribuir ao entendimento mútuo entre os povos, mas a também colher informações isentas dos vieses das fontes oficiais para repassar aos seus governos.

A rigor, os diplomatas não são representantes de governos; são representantes de Estados em outros Estados. Segundo o Artigo 3 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961), “as funções de uma missão diplomática consistem, entre outras, em representar o Estado acreditante perante o Estado acreditado” [7]. No conceito clássico, o Estado é “o conjunto das instituições (governo, Forças Armadas, funcionalismo público etc.) que controlam e administram uma nação” [8]. Em outros conceitos - dos teóricos neomarxistas Antonio Gramschi e Louis Althusser, por exemplo - a abrangência é maior, reconhecendo a interpenetração entre o Estado e a sociedade civil, mas o conceito clássico já é suficiente para assinalar que o universo de interlocutores se estende além do governo propriamente dito.

Num incidente coberto pela ABr, o embaixador venezuelano no Brasil foi criticado por partidos da oposição brasileira por ter comparecido a um protesto em fevereiro deste ano contra o Supremo Tribunal Federal (STF) pela condenação dos acusados na Ação Penal 470, o processo do mensalão.  O embaixador justificou sua presença no evento porque “'faz parte das atribuições' do representante estrangeiro em um país 'conhecer os acontecimentos políticos' do local”. Ele acrescentou: “É absolutamente despropositado atribuir caráter de interferência em assuntos internos à minha presença entre os convidados de um evento público sobre realizações do governo federal no Brasil”. Na sua avaliação, a reação dos partidos da oposição foi “uma tentativa imprópria de usar um país-irmão para disputas políticas internas” [9]. Apesar disso, seu gesto público de solidariedade com os correligionários do partido do governo, que segundo ele foi apenas um contato, poderia ser interpretado como um ato hostil à máxima instância judiciária do Estado brasileiro.

Da mesma forma, a atuação da embaixada venezuelana nos Estados Unidos demonstra a importância de contatos que não se restringem aos círculos oficiais, mesmo que para algumas pessoas esses contatos possam constituir interferência em assuntos internos. Segundo uma matéria publicada no dia 4 de outubro pelo jornal venezuelano El Universal, na resposta a um questionário no qual todos agentes estrangeiros são obrigados a informar suas atividades políticas à Divisão Nacional de Segurança do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a embaixada registrou 82 contatos entre novembro de 2012 e abril de 2013. Além dos contatos com vários deputados federais, a lista inclui líderes religiosos, organizações sociais, uma organização feminina pró-Cuba e figuras do mundo intelectual e artístico conhecidas por suas críticas em relação ao governo do presidente Obama [10].

É  evidente que não são os contatos em si que incomodam. Mais que incomodar, os contatos servem como armas nas disputas com adversários políticos. Para compreender como os contatos podem constituir interferência indevida em assuntos internos, é necessário colocá-los no contexto dos diferenciais de poder entre Estados. Como esses diferenciais impactam o papel da diplomacia nas relações entre os Estados Unidos e Venezuela será o tema da próxima coluna.

Até a próxima semana!

[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-10-08/coluna-da-ouvidoria-conspiracoes-na-venezuela-primeira-parte
[2] http://www.sumate.org/nosotros.html
[3] http://www.telesurtv.net/articulos/2013/09/30/canciller-jaua-revelo-que-funcionarios-estadounidenses-buscaban-desestabilizar-el-pais-3299.html
[4] http://www.sumate.org/noticias/2013/2013101_N486_Siempre_apegados_a_la_Constitu.htm
[5] http://www.noticias24.com/venezuela/page/3/?s=keiderling
[6] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-10-02/venezuela-critica-decisao-dos-estados-unidos-de-retribuir-expulsao-de-diplomatas
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D56435.htm
[8] http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado
[9] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-02-07/embaixador-da-venezuela-considera-despropositado-pedido-de-explicacao-sobre-presenca-em-protesto
[10] http://www.eluniversal.com/nacional-y-politica/131004/embajada-venezolana-tambien-se-reunio-con-politicos-de-eeuu