Elaine Patricia Cruz
Repórter da Agência Brasil
São Paulo – O desaparecimento de dois estrangeiros e de um brasileiro no Rio de Janeiro, durante o a ditadura militar no Brasil, pode estar ligado ao sumiço de dois brasileiros na Argentina ocorrido poucos meses depois. Documentos mostrando essa ligação foram descobertos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela historiadora Janaina de Almeida Teles. O material foi apresentado na tarde de hoje (11) em uma audiência pública conjunta com a Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, na Assembleia Legislativa paulista.
Em 21 de novembro de 1973, o francês Jean Henri Raya, que morava na Argentina, o brasileiro Caiupy Alves de Castro e o argentino Antonio Luciano Pregoni desapareceram no Rio de Janeiro.
Caiupy era um bancário aposentado e militante comunista que foi preso por um órgão de segurança do Rio de Janeiro na noite do dia 21 de novembro. Jean Henri nasceu na França, mas passou grande parte de sua vida na Argentina. Ele saiu de Buenos Aires com destino ao Brasil, de ônibus, no dia 14 de novembro de 1973, e ficou hospedado em um hotel em Copacabana. Seu paradeiro é desconhecido.
Em abril de 1974, a mulher de Jean Henri, Mabel Bernis, recebeu uma informação de que Henri fora sequestrado pelos órgãos de segurança no Rio de Janeiro, em razão dos frequentes contatos com exilados brasileiros em Buenos Aires. O argentino Antonio Luciano Pregoni fazia parte do Tupamaros, uma organização de guerrilha urbana do Uruguai. Ele teria chegado ao Brasil no mesmo ônibus em que veio Jean Henri.
As apurações da CNV, conduzidas pelo grupo de trabalho Operação Condor, coordenado por Rosa Cardoso, apontaram que os três desaparecimentos ocorridos, acredita-se, no mesmo dia, no Rio de Janeiro, podem estar ligados ao sumiço de Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita, sequestrados em Buenos Aires em dezembro do mesmo ano e vistos pela última vez em janeiro de 1974 no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca.
O principal documento data de 14 de março de 1974 e foi encontrado pela comissão no Arquivo Nacional. No documento, consta que um agente do Centro de Informações do Exterior (Ciex), do Ministério das Relações Exteriores, chamado Alberto Conrado Avegno (que usava o codinome Altair) relata novidades recebidas de um outro informante.
“Esse documento, ou melhor, esse conjunto de documentos encontrados no Arquivo Nacional, confirma o que já tinha chegado ao conhecimento de grupos de direitos humanos do Brasil sobre uma ligação entre o desaparecimento de dois brasileiros sequestrados em Buenos Aires, em dezembro de 1973, e o desaparecimento de três argentinos ocorrido no Rio de Janeiro, ocorrido cerca de dez dias antes”, disse André Saboia Martins, secretário executivo da CNV.
O documento aponta que a argentina Alicia Eguren, poeta, escritora e militante da esquerda peronista, era o elo de ligação entre Joaquim Pires Cerveira, um militar brasileiro cassado em 1964, banido do Brasil em 1970 e exilado na Argentina desde agosto de 1973, e um grupo de jovens militantes de esquerda, entre eles Jean Raya e Antonio Luciano Pregoni. O documento informa ainda que Raya (cujo nome está erroneamente grafado como Juan Rays) viajou ao Brasil em novembro de 1973 para uma ação em conjunto com o grupo de Cerveira. “O major Cerveira era um militante antigo no Brasil e que estava banido porque tinha sido libertado em troca do embaixador alemão em 1970. O Brasil baniu essas 40 pessoas, que foram libertadas [em troca do embaixador], e ele [Cerveira] ficou no exterior, articulando novos grupos políticos, para tentar voltar ao Brasil e derrubar a ditadura”, disse a historiadora Janaina Teles.
Janaina explicou que o grupo de militantes, que saiu da Argentina, veio ao Brasil para tentar organizar um novo agrupamento político, inspirado na guerrilha cubana. “Eles vieram aqui para tentar fazer alguma ação, para sequestrar algum empresário ou figura importante, para conseguir um resgate em dinheiro e, com isso, voltar à Argentina e auxiliar na organização de um novo grupo político”, declarou.
“Aparece muito claro nesses documentos que eles tinham contato já há alguns anos e, pelo menos alguns meses antes desse desaparecimento, os documentos demonstram que esses brasileiros e esses argentinos vinham sendo vigiados pelos órgãos de segurança do Brasil e da Argentina”, completou o secretário executivo da CNV.
Segundo Saboia, esses documentos abrem “caminhos para o esclarecimento de um conjunto grande de casos”. Além disso, destacou, é possível estabelecer de forma mais precisa como ocorreu a aliança entre os órgãos de repressão dos países da América do Sul, tal como a Operação Condor, e o que foi “essa coordenação repressiva internacional”.
De acordo com Carlos Lafforgue, secretário executivo do Arquivo Nacional da Memória da Argentina e ex-militante, a ditadura militar nos países da América do Sul foi responsável pelo desaparecimento de 700 pessoas, ou seja, 700 casos “cruzados” de militantes políticos que desapareceram fora de seus países de origem. “Estamos investigando [cada um desses desaparecimentos cruzados]. E é assim que, a cada vez, conseguimos aprofundar um pouco mais. Mas existem alguns casos que nunca poderão ser investigados porque ‘sumiram’, quer dizer, os assassinos da Argentina, quando viram que era muito trabalhoso cavar e fazer valas, começaram a jogar gente no mar. E para nós foi algo terrível porque aí se perde toda a possibilidade [de se encontrar o corpo]”, disse.
Saboia informou que o grupo de trabalho Operação Condor, da CNV, tem trabalhado atualmente em 17 casos de desaparecidos políticos brasileiros ocorridos na Bolívia, no Chile e na Argentina e oito casos de estrangeiros desaparecidos no Brasil (sendo sete de argentinos e de um francês). “Mas é possível que existam mais casos”, ressaltou.
Para Janaina Teles, os documentos demonstram que a atuação do Brasil foi efetiva nessa relação de cooperação repressiva entre os países. “Nesse caso, por exemplo, a cooperação incluiu o Brasil, Uruguai, Chile e a Argentina. Essa cooperação era mais estreita e complexa do que a historiografia tem dito ultimamente”, disse.
Segundo Rosa Cardoso, a Operação Condor tem muita coisa a ser desvendada. “Isso é realmente um quebra-cabeça. Esse caso, por exemplo, expõe isso claramente. É um caso anterior ao golpe militar na Argentina, quando a Operação Condor não estava ainda legitimada ou criada legalmente. Mas a operação repressiva já existia. A reconstituição [desse caso] é uma tarefa muito complexa porque não se trata só de contar uma história, mas de fazer um inquérito, que ainda não é criminal, mas esperamos que isso se suceda depois da reinterpretação da Lei de Anistia”, declarou. Segundo ela, esse caso pode vir a ser investigado criminalmente pelo Ministério Público.
Para Mabel Raya, viúva de Jean Henri, que vive atualmente em Buenos Aires, a investigação brasileira sobre o caso, em conjunto com a Argentina, é um caminho para punir os responsáveis pelos crimes. “Não há desaparecidos, mas gente que foi assassinada. E é necessário se fazer justiça. Isso é que é importante para nós. Temos que aceitar que eles não vão aparecer, que foram assassinados e que há um culpado. Este é o começo na busca pela verdade e dos culpados”, disse.
Edição: Aécio Amado
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