Elaine Patricia Cruz
Repórter da Agência Brasil
São Paulo – Com base em documentos oficiais, alguns deles compilados da Comunidade Setorial de Informações do Ministério da Marinha, e que foram apresentados na tarde de hoje (20) durante uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo concluiu que toda a estrutura de repressão política na ditadura militar brasileira foi planejada e obedecia a uma ordem de comando. “Não existem porões da ditadura”, concluiu Ivan Seixas, um dos coordenadores da Comissão Estadual da Verdade.
“A cadeia de comando mostra que não existia vontade própria. Se o torturador resolvesse matar, não obedecendo à cadeia de comando, ele seria punido. Pela cadeia de comando, vê-se que, do ditador, que era supostamente o presidente [da República], até o torturador, que estava lá na ponta, todos tinham uma sequência de comando. Obedeciam a ordens e obedeciam a orientações. E quem estava embaixo prestava contas do que fez”, disse Seixas.
Segundo o coordenador da comissão, não houve situações durante a ditadura militar brasileira em que alguém pudesse ter sido preso, torturado ou morto sem conhecimento da cúpula. “Todos sabiam. Isso é um fato. Essa estrutura não foi algo que nós concluímos. É um documento da repressão no qual está escrito que todos [os órgãos] vão se reportar ao SNI [Sistema Nacional de Informações], que se reporta ao presidente da República. Então, não existe uma coisa em que, em um determinado local, fizeram algo e não comunicaram porque senão estariam subvertendo a hierarquia”, explicou Seixas.
Durante a audiência pública de hoje, que teve a presença de Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade, e do vereador Gilberto Natalini, presidente da Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, Seixas apresentou um organograma da ditadura militar, estrutura que observou em um documento da Marinha, e que definiu o SNI como o órgão central da rede repressiva, ao qual todos os demais órgãos respondiam.
“A expressão porões [da ditadura] queria significar que acontecia alguma coisa em níveis subalternos e níveis inferiores ao comando, os governantes e os presidentes [da República] não tinham conhecimento e não desejavam. O que se comprova é que essa política foi planejada desde cima, desde uma cúpula, desde o SNI, com o presidente da República. É claro que houve um mínimo de autonomia na execução, como existe em relação a qualquer trabalho. As pessoas que são as executoras interpretam de uma forma ou de outra, mas havia o planejamento centralizado e hierárquico, vindo da cúpula”, disse Rosa Cardoso.
O SNI era o órgão de cúpula do Sistema Nacional de Informações (Sisni), composto por vários centros de informações que funcionavam dentro da Aeronáutica, da Marinha e do Exército e tinha um braço também no exterior, controlando a atuação dos exilados e banidos do país. Dentro de sua estrutura, o Sisni era composto também pelos centros de operações de Defesa Interna (os Codis), órgãos de planejamento e de comando da estrutura militar de repressão no país, e das divisões de Segurança e Informação (DSI), serviço secreto específico para cada área de atuação. Os DSIs, por exemplo, eram responsáveis por vigiar os funcionários públicos e cidadãos brasileiros, detectando os “possíveis inimigos do regime” e funcionavam dentro de cada ministério do regime, seja ele militar ou civil.
Dentro dos DSIs, por exemplo, estavam as assessorias de Segurança e Informação (ASIs) ou assessorias especiais de Segurança e Informação (Aesis), que eram seus braços operacionais. Essas assessorias funcionavam dentro de empresas estatais, autarquias e até mesmo universidades.
“As Aesis eram parte da estrutura de repressão. Nos ministérios existiam as DSIs, que eram a divisão de segurança e informação. Todos os ministérios tinham [as DSIs]. Nas suas instâncias inferiores - tais como empresas, autarquias e universidades - haviam as ASIs”, explicou Seixas. “A Aesi da Universidade de São Paulo [USP] era parte da cadeia do Ministério da Educação. Então, tudo se reportava ao Ministério da Educação. Os caras que faziam a vigilância, por exemplo, de estudantes que eles achavam que eram agitadores e de professores que eram cúmplices, reportavam tudo isso para o aparelho de repressão”, falou.
Para Rosa Cardoso, a Comissão Nacional da Verdade precisa promover um encontro entre as diversas comissões da verdade que foram montadas pelas universidades de todo o país. “Acho que a Comissão Nacional tem que fazer um encontro com essas comissões das universidades assim como fará, na próxima semana, um encontro com as comissões oficiais estaduais e municipais. Temos também que conversar com as comissões das universidades para que elas nos mandem documentos e informações para que possamos inclui-los no nosso relatório”, disse.
Dentro da estrutura do Sistema Nacional de Informações existia também as comunidades complementares de informações. Algumas destas comunidades complementares pertenciam a entidades privadas que foram selecionadas para colaborar com o regime no que fosse solicitado. “Havia comunidades complementares nos governos estaduais, como o Dops e a Polícia Militar, e nos municipais. Mas nas comunidades privadas tinha uma estrutura que não está determinada porque não tinham documentos oficiais”, disse Seixas.
Segundo Seixas, existia uma “ligação umbilical” entre empresas privadas e o aparato de repressão e a Comissão Estadual da Verdade, da qual ele faz parte, está tentando obter documentos que comprovem e expliquem melhor essa ligação entre o regime e as empresas.
Durante a audiência, o vereador Gilberto Natalini pediu que a Comissão Nacional da Verdade possa ouvir o delegado da Polícia Civil Laertes Aparecido Calandra, um dos agentes repressores do regime. Em resposta, Rosa Cardoso disse que a comissão vai ouvir Calandra e deve voltar também a ouvir o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra. ”O Calandra será ouvido pela Comissão Nacional e pela Comissão Municipal. Vamos emprestar e usar nosso poder de convocação, que permitem a condução coercitiva, caso o convite não seja atendido”, disse. Rosa Cardoso disse que o depoimento de Calandra à Comissão Nacional da Verdade deve ocorrer até o final deste ano.
Natalini também disse que, na próxima segunda-feira, a Comissão Municipal de São Paulo vai pedir o reexame do crânio do motorista que dirigia o veículo em que estava o ex-presidente da República Juscelino Kubitschek. Juscelino morreu em um acidente de carro ocorrido em 1976.
O presidente da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, o deputado estadual Adriano Diogo, disse que os trabalhos da comissão que preside, que já ouviu 159 vítimas do regime militar, irá agora se concentrar na cadeia de comando. A ideia, segundo o deputado, é reunir documentos que comprovem e expliquem o comando do regime.
Edição: Fábio Massalli
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