Vinícius Lisboa
Repórter da Agência Brasil
Rio de Janeiro – O coronel reformado do Corpo de Bombeiros Valter da Costa Jacarandá admitiu hoje (14), em audiência pública na Comissão Estadual da Verdade, que, na época da ditadura militar (1964-1985), participou de interrogatórios em que foram usadas práticas de tortura, como pau de arara, espancamentos e aplicação de choques elétricos. A reunião desta quarta-feira foi marcada para ouvir quatro militares acusados pelo Ministério Público de sequestrar, torturar e matar o jornalista e secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) Mário Alves, mas apenas Jacarandá prestou depoimento.
Jacarandá disse que houve excessos. "Negar isso seria uma tentativa vã de tapar o sol com a peneira", reconheceu o bombeiro. Em outra parte do depoimento, ele explicou que os excessos a que se referia eram as torturas.
Sobre ter ele próprio cometido tais crimes, Jacarandá respondeu: "Devo ter cometido. No calor dos interrogatórios, pode ter acontecido, mas eu não saía com o espírito de fazer isso." O militar admitiu que interrogou o jornalista Cid Benjamin e que pode também ter participado do interrogatório de outras pessoas que depuseram na comissão, mas disse que não se lembra delas, nem de qualquer outro nome, inclusive o de Mário Alves. O jornalista morreu em 1970, em consequência de hemorragia causada por empalamento com um cassetete revestido de estrias metálicas, após uma madrugada de tortura no quartel da Polícia do Exército, no Rio.
"Pode até ter acontecido [de eu cometer 'excessos', ou tortura]. Como vou dizer que não fiz isso? É interessante lembrar que [na época] as pressões eram muito grandes. Quando digo que não lembro, devo ter desenvolvido um mecanismo de defesa", disse Jacarandá aos jornalistas depois da audiência.
Mesmo após insistentes perguntas do presidente da Comissão Estadual da Verdade, Wadih Damous, o coronel sustentou que não se lembrava de absolutamente nada referente a Mário Alves nem do período que o jornalista passou no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). "Não tive qualquer participação na tortura do Mário Alves."
Jacarandá disse que só tomou conhecimento do que aconteceu ao jornalista depois da abertura política e ressaltou que, nem nos corredores do DOI-Codi, nunca ouviu comentários sobre a tortura ou a prisão de Alves. Apesar de afirmar que não sabia quem era Alves e que não se lembrava de nenhum interrogado, ele se disso seguro de não ter participado da sessão de tortura ao jornalista.
O coronel, que na época era major, contou que, no Serviço de Informações, trabalhou na captura e na elaboração de perfis dos presos e que participou de poucas sessões, nas quais sua função era dar informações aos interrogadores, assessorando-os com base nas investigações que realizava.
Jacarandá lembrou que foi para o DOI-Codi após desentendimentos com seu antigo chefe no Corpo de Bombeiros e porque era especializado em desarmar bombas dos militantes contra a ditadura. Para o coronel, os militantes eram erroneamente chamados de terroristas e deviam ser classificados de revolucionários. Insatisfeito com a resposta, Damous perguntou por que ele havia escolhido especificamente o DOI-Codi para trabalhar, já que acabou exercendo ali a função de interrogador. O coronel respondeu: "O que me atraiu foi a aventura de entrar em uma guerra. Vejo todo esse movimento como uma ação contrarrevolucionária."
Damous quis saber se Jacarandá considerava sua missão patriótica e ele disse que sim. "Fidel Castro torturava e matava em Cuba. Stalin, na Rússia. Mao, na China. E essas pessoas [militantes] tinham toda uma ideologia, talvez não propriamente isso, mas ideias imersas nessas ideologias."
Dos sete depoimentos de hoje, dois foram contundentes nas acusações ao bombeiro. O jornalista Álvaro Caldas acusou o coronel de ter girado a manivela do instrumento de choques elétricos durante sua tortura. Caldas lembrou que o bombeiro usava uma bota de cano longo para chutar as vítimas. Maria Dalva Leite também disse que foi barbaramente espancada por Jacarandá em uma sessão de tortura que durou 72 horas. No fim da audiência pública, Maria Dalva ficou frente a frente com o coronel e perguntou se ele não se lembrava de tê-la torturado. Ele negou.
A entrevista foi interrompida por uma pessoa que disse ter sido levada por Jacarandá a jacarés que ficavam no quartel, ameaçando dar a mão dela para os animais comerem. Em resposta, o coronel reafrimou que não se lembrava, olhou para as mãos dela e perguntou: "Eu dei sua mão para o jacaré comer?"
O coronel reformado falou à comissão estadual na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), em sessão conjunta com a Comissão Nacional da Verdade, que ouviu sete vítimas de crimes cometidos no quartel da Polícia do Exército. Os outros militares convocados para depor, os ex-tenentes Luiz Mário Correia Lima, Roberto Duque Estrada e Dulene Garcez, foram representados por um advogado, segundo o qual os três já tinham falado à comissão, por meio de um grupo de trabalho, e respondem administrativa e judicialmente pela morte do jornalista.
No entanto, os três militares foram citados nos depoimentos. Correia Lima foi mencionado como alguém que espancou uma jovem de 19 anos e que se vangloriava das práticas de tortura ao apresentar suas vítimas para outros militares. Sylvio Medeiros disse que Dulene Garcez sugeriu, na sala de tortura, que ele colaborasse ou terminaria empalado como Mário Alves. Maria Dalva afirmou ter ouvido a mesma ameaça.
Para o presidente da Comissão Estadual da Verdade, havia uma expectativa maior em relação ao depoimento do coronel Jacarandá, que, mesmo assim, foi esclarecedor em vários aspectos investigados na tortura e morte de Mário Alves e em outros casos. Wadih Damous informou que foi enviada ao Ministério Público representação para que os outros acusados sejam coercitivamente conduzidos para depor em outra data e respondam pelo crime de desobediência.
Lúcia Vieira, filha do jornalista Mário Alves, disse que não esperava informações novas com o depoimento de Jacarandá, mas não acredita que o militar só tenha sabido do caso de seu pai após a abertura política. "Ele não tem como negar. Eles até se orgulhavam de dizer os crimes que cometeram. Todos falavam em Mário Alves. Os próprios presos também", ressaltou.
Apesar disso, Lúcia manifestou confiança nos trabalhos da comissão. "[A comissão] teve um período de fogueira das vaidades, mas agora parece que está funcionando melhor. Estou com esperança de que a coisa ande. Está havendo mais empenho e mais cobrança porque mais pessoas estão interessadas na verdade."
Edição: Nádia Franco
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