Coluna da Ouvidoria - Quantos lados tem uma notícia?

22/07/2013 - 18h16

Brasília - Nos meses de junho e julho, a ouvidoria recebeu duas reclamações de leitores sobre matérias publicadas pela ABr, nas quais, segundo eles, faltou o veículo ouvir o outro lado da informação. Na primeira reclamação, o leitor, que não autorizou o uso de seu nome, criticou uma matéria que relata que as contas do governo do Distrito Federal (GDF) de 2012 foram aprovadas, com ressalvas, pelo Tribunal de Contas local (TCDF) [1]. Segundo ele, a matéria dedicou todo o texto aos pareceres negativos do procurador-geral do Ministério Público do Tribunal de Contas e do único conselheiro que votou contra o parecer favorável do TCDF. A Diretoria de Jornalismo respondeu ao demandante que, entre outras providências, “foi editada uma matéria com os esclarecimentos do secretário de Planejamento do GDF sobre o relatório do Tribunal de Contas do Distrito Federal”.

Na segunda, o leitor Takashi Tome, que também integra o Conselho Curador da EBC, escreveu: “Hoje li duas notícias na Agência Brasil que considerei incompletas e perigosamente parciais ao citar apenas um dos lados [a declaração governamental]”. Uma das matérias citada pelo leitor trata da suspeita de atos ilícitos (locautes) cometidos por empregadores nos bloqueios de rodovias por caminhoneiros nos primeiros dias de julho [2]. A Diretoria de Jornalismo (Dijor) respondeu: "A Agência Brasil fez uma ampla cobertura dos protestos de caminhoneiros que paralisaram as atividades e bloquearam rodovias em vários estados do país na semana passada. A agência noticiou as demandas da categoria e os reflexos nas estradas, assim como as medidas adotadas pelo governo e pela Justiça. A matéria citada pelo conselheiro é apenas uma das várias reportagens feitas pela Agência Brasil sobre o assunto”.

Essas duas demandas suscitaram a seguinte questão: Afinal, quantos lados têm um fato ou uma notícia? Sabe-se que a atividade primária do jornalismo consiste em observar e descrever "o quê?" (o fato ocorrido), "quem?" (o personagem envolvido), "quando?” (o momento do fato), "onde?" (o local do fato), "como?" (o modo como o fato ocorreu) e "por quê?" (a causa do fato). Antes de respondemos, cabe inicialmente fazer a distinção entre um “fato social” e um “fato jornalístico”, com base em uma análise feita pela Fabiane Barbosa Moreira, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De acordo com a autora, as características distintivas de um “fato social”, na perspectiva do sociólogo Emile Durkheim, são a sua exterioridade em relação às consciências individuais, a ação coerciva que exerce ou é suscetível de exercer sobre essas consciências e o estado de independência em que se encontra em relação às suas manifestações individuais. O “fato jornalístico”, ao contrário, não é um dado definitivo nem independente do observador e é gerado a partir do interesse que o assunto desperta no jornalista e no público. Suas marcas características são a atividade – “não a ação em si, mas a consequência de uma ação” –, a relação – “uma conexão unitária de entidades (coisas, textos, pessoas etc.) mutuamente referidas”– e a temporalidade – “uma espécie de destaque no tempo e/ou no espaço”, ou seja, aquilo que é imprevisível ou inesperado [3].

Essa comparação, que enfatiza o contraste entre os dois conceitos, implica a existência de duas posições opostas em relação à apreensão e à confirmação dos fatos: uma objetiva e determinística (fato social), a outra subjetiva e voluntariosa (fato jornalístico). Nessa formulação, a resposta à pergunta de quantos lados tem um fato ou uma notícia seria que os fatos sociais só têm dois lados (o verdadeiro e o falso), enquanto os fatos jornalísticos apresentam uma quantidade potencialmente infinita de lados, embora, na prática, quando alguém critica a falta de ouvir o outro lado, entenda-se que há apenas dois lados, um a favor e outro contra.

O exercício da atividade jornalística sofre pressões que fazem com que os critérios objetivos aplicados à validação dos fatos sociais não se apliquem na elaboração das notícias. De acordo com a professora Liriam Sponholz, doutora em comunicação pela Universidade de Leipzig (Alemanha), “se analisar-se o tipo de fatos que o jornalismo oferece (questão do tipo 'o quê'), este trabalha, sobretudo, com proposições a serem consideradas verdadeiras pelo público, ou seja, verídicas (credíveis). Isto não significa que estas proposições sejam falsas, mas sim que não foram necessariamente submetidas a testes (válidos) que possam verificar se são corretas. As estratégias utilizadas pelos jornalistas dentro das condições de produção que lhe são dadas (resposta à questão do tipo 'como') nem sempre têm o objetivo de se aproximar da realidade, mas sim de gerar credibilidade. Neste cenário, a busca da realidade acaba sendo substituída por estratégias para tornar uma proposição credível. Uma delas é o princípio de ouvir os dois lados. Embora possa servir como uma estratégia de averiguação, ao confrontar-se com diferentes versões sobre um mesmo acontecimento, ouvir os dois lados se tornou uma forma de legitimar a falta de um empenho maior na busca pela realidade, dando origem a um 'jornalismo declaratório'... Para não se comprometer com o teor de realidade de uma declaração sobre um acontecimento que não conseguiu averiguar, o jornalista deixa de referir-se ao acontecimento X e constrói a notícia a partir da declaração de uma fonte. Ou seja, a notícia não é mais X, mas sim 'A diz que X', mesmo que X seja falso”. [4].

Por envolverem questões relacionadas às leis do país, as duas demandas recebidas pela ouvidoria sobre a falta de ouvir o outro lado remetem ao domínio do fato social. O fato jornalístico também está presente, para tratar as decisões individuais de aplicar as leis ou não e de como aplicá-las, mas isso não elimina a relevância do fato social. O que foi observado no atendimento das demandas, no entanto, foi a omissão desse lado.

Em relação à demanda sobre a prestação de contas do governo do DF, ao invés de simplesmente publicar outra matéria, que, aliás, já estava sendo preparada, onde a defesa das contas do governo do DF foi apresentada, a ABr deixou de explicar para o público quais são as leis e as normas que o TCDF – e os tribunais de Contas de modo geral – segue na avaliação das prestações de contas governamentais [5]. Por quais critérios alguns itens julgados merecedores de ressalvas pela maioria dos conselheiros foram considerados “irregularidades” pelo procurador-geral do Ministério Público do TCDF e pelo conselheiro que votou contra o parecer?  Dentre outras vantagens, essas explicações poderiam ajudar a esclarecer o papel dos tribunais de Contas.

Quanto à demanda sobre as suspeitas de atos ilícitos cometidos por empregadores nos bloqueios de rodovias por caminhoneiros, a lei brasileira que proíbe locautes define a prática como “a paralisação das atividades, por iniciativa do empregador, com o objetivo de frustrar negociação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados (lockout)” [6]. Como essa lei pode ser aplicada contra o Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC), por sua atuação em uma paralisação cuja pauta de reivindicações não era dos empregados é o “lado” do fato social que merecia uma explicação que fosse além das denúncias feitas por autoridades do governo. Para a Dijor, porém, o que prevaleceu foi o paradigma do fato jornalístico com os lados “a favor” e “contra”, sendo suficiente como resposta  que as demandas da categoria também foram noticiadas.

Em 2012, a ABr publicou várias matérias sobre outra paralisação dos caminheiros, também organizada pelo MUBC, onde as mesmas acusações foram feitas. Em algumas das matérias, há declarações de proprietários de empresas transportadoras e líderes de sindicatos patronais admitindo abertamente seu apoio à paralisação [7]. Uma busca nos arquivos da ABr e no Google, porém, não constatou que nenhuma medida judicial tenha sido tomada em função dessas acusações.

O “jornalismo declaratório” procura ser imparcial apresentando as posições a favor e contra os personagens de uma notícia, seguindo o modelo do sistema contraditório adotado na Justiça Penal. Para o leitor avaliar os fatos, porém, é preciso que ele tome conhecimento das leis e esse lado, que corresponde ao fato social nos casos examinados, também deveria estar presente nas notícias.

[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-20/tribunal-aprova-prestacao-de-contas-do-governo-de-agnelo-queiroz-com-ressalvas
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-07-03/policia-federal-investigara-bloqueios-de-rodovias-por-caminhoneiros
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-07-03/policia-federal-investiga-participacao-de-patroes-em-protestos-de-caminhoneiros
[3] http://seer.ufrgs.br/EmQuestao/article/view/95/53
[4] http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/2642/0
[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8443.htm (artigos 15 e 16)
[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7783.htm (Artigo 17)
[7] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-07-30/mpt-deve-investigar-atuacao-de-empresas-na-greve-dos-caminhoneiros
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-07-31/confederacao-nacional-dos-trabalhadores-em-transportes-denuncia-empresas-por-locaute-e-coacao