Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília – Em plena segunda década do século 21, o Brasil continua sendo um país de contradições. Apesar de abrigar um dos principais centros de pesquisa em biomedicina do mundo, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o país registra a maior endemia de esquistossomose do mundo – uma doença parasitária própria de áreas sem saneamento básico e que chegou ao Brasil no tempo do tráfico de escravos.
Depois de mais de 30 anos de pesquisa, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC, ligado à Fiocruz) anuncia a criação da vacina contra a doença. É um feito histórico: em vez de comprar tecnologia, o Brasil vai vender e em vez de tratar a doença com remédio, a saúde pública vai poder prevenir com a vacina.
A Agência Brasil entrevistou a médica Miriam Tendler, especialista em doenças infeccionsas e parasitárias e pesquisadora chefe do Laboratório Esquistossomose Experimental do IOC onde a vacina foi desenvolvida. Na entrevista, a médica falou sobre os testes realizados no Brasil e a importância do desenvolvimento de uma vacina segura. “Ela [a vacina] não deu reações. É uma vacina segura, e essa segurança é o maior atributo de uma vacina”, disse. Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida pela cientista.
ABr: Por que a esquistossomose é uma doença associada à pobreza?
Miriam: A doença infecta hoje 200 milhões de pessoas, mas existem 800 milhões expostas ao risco. É a segunda maior endemia no mundo [a primeira é a malária] é uma doença dos países pobres, associada à miséria. Ela é endêmica em países africanos. O Brasil é o maior país endêmico. Ela está também em outras regiões da América Central também, mas é mais significativa para a África e para o Brasil.
ABr: No caso do Brasil, os focos estão na área rural ou urbana?
Miriam: Hoje em dia, com a migração da população para diferentes áreas, temos até focos em regiões menos rurais. Mas não é tanto pelo fato de ser rural. A endêmica no Brasil é mais na Região Nordeste e no estado de Minas Gerais. Mas é bastante ligada à história da esquistossomose, que veio para o Brasil na época do tráfico de escravos, havendo uma concentração nessas regiões. Então, a entrada da esquistossomose no Brasil tem mais de um século, é muito longa e bem conhecida. Até no Sul tem focos, que tem menos importância pelo volume, mas tem importância epidemiológica, pois indica a possibilidade de migração para regiões que ainda não têm.
ABr: Essa vacina pode ser associada à prevenção de outras doenças?
Miriam: A vacina já está sendo desenvolvida segundo dois eixos, que chamamos de vacina bivalente. Potencialmente, ela é multivalente. Isso não tem mistério. Nada nesse projeto tem magia, não tem nada fortuito ou do acaso. É um projeto muito bem definido e estruturado, focado desde o início, usando toda a metodologia disponível. Talvez o único que a gente não esperava era exatamente por essa multivalência. Isso foi evidenciado a partir do momento em que se teve acesso à estrutura do DNA do clone [da proteína] SM14. Ela pertence a uma família de proteínas que tem a capacidade de ligar gorduras a ácidos graxos, e esses helmintos [parasitas] não têm a capacidade de sintetizar lipídeos, gorduras que são a principal forma de energia do metabolismo. Então, eles precisam pegar isso do hospedeiro. Esse transporte é feito por essas moléculas, que transporta lipídeos. Isso talvez seja o fato de estarem presentes em todos os helmintos de importância humana e veterinária. O primeiro que identificamos é o que causa a fascíola do gado. Passamos a desenvolver a vacina desde 1991 sob uma ótica bivalente: para uma doença humana, que é a esquistossomose, que era o objeto real, e uma doença veterinária do gado, que é a fascíola hepática, principal parasitose bovina no mundo.
ABr: A descoberta da vacina é muito importante para o Brasil, mas tem grande impacto mundial. A senhora pode fazer uma comparação com a descoberta da vacina contra a poliomelite?
Miriam: A poliomielite foi uma das piores mazelas, que matou milhões de crianças, e a vacina contra a pólio fez um benefício à humanidade sem precedentes, pela mortalidade, e pelo impacto que a vacina pode ter. Mas as doenças por helminto têm outra face de crueldade. São crônicas, atingem as crianças e os adultos jovens, não mata igual à pólio, então não chama muito a atenção. As pessoas têm até remédio, mas se tratam e são reinfectas. É uma doença que causa anemia nas crianças e comprometimento das capacidades cognitivas de aprendizado. É um grupo de doenças da mais alta crueldade, fazendo parte também de um grupo de doenças negligenciadas. Como elas não são altamente mortais, como a pólio, e das áreas pobres, a demanda por uma vacina é incomparável. As doenças que têm alta mortalidade chamam mais atenção e foram as primeiras para as quais fizeram vacinas.
ABr: O Brasil vai exportar a tecnologia? Vamos explorar comercialmente ou seguir a tradição de fornecer vacinas e medicamentos como ajuda humanitária? Há um plano de negócios?
Miriam: Existe um desenho. Hoje em dia a Fiocruz tem um parceiro industrial, que é a Ouro Fino [Agronegócio], uma indústria brasileira que assumiu com o licenciamento principalmente da vertente veterinária que é um produto de aplicação comercial. Na verdade, a gente chegou a um ponto que tinha uma vacina para gado de país rico e para gente de país pobre. Existe o compromisso forte de transformar em uma vacina humanitária, que vai ser administrada da melhor maneira possível, sem vistos a ganhos comerciais. Ela tem uma possibilidade de retorno financeiro através do eixo veterinário, que é muito importante porque é a principal doença parasitária do gado – representa mais de US$ 3 bilhões de prejuízo no mundo inteiro. Então ela tem interesse comercial muito forte, principalmente na relação com a qualidade e a segurança dos alimentos porque atinge o gado de consumo.
ABr: Será possível em uma década imunizar a população da África e do Brasil?
Miriam: Menos, menos.
ABr: Menos de cinco anos?
Miriam: No máximo.
ABr: Vocês podem ganhar o Prêmio Nobel?
Miriam: Não sei. Não é esse o foco, não. Mas é um esforço muito grande porque, tecnicamente, nós há dez anos já podíamos ter dado esse salto final. Nós estamos mais ou menos na mesma fase e a gente precisou esperar mudanças no país acontecerem. Por exemplo, essa oportunidade de uma chamada público-privada. É uma coisa que não era nossa cultura há dez anos. A própria parceria público-privado tem ajudado muito neste projeto.
ABr: É problema de descontinuidade que afeta outras áreas de pesquisa?
Miriam: É claro. E com isso você tem sua segurança, entendeu?! Então você imagina a Fiocruz fez um esforço e teve uma competência enorme para abrigar toda a pesquisa básica, todo o desenvolvimento experimental para fazer as patentes, que é uma das competências na Fiocruz neste segmento, e agora para licenciar. Mas para efetivamente fazer um produto de dentro de uma instituição acadêmica é uma coisa muito complexa e complicada. Então as parcerias são fundamentais.
Edição: Lílian Beraldo