Interdição em hospital particular leva Santos à condição de pioneira na luta antimanicomial

28/06/2010 - 17h54

Alex Rodrigues
Repórter da Agência Brasil

 

Santos (SP) - No fim da década de 80, a cidade de Santos foi palco de um importante episódio da luta antimanicomial no Brasil. Durante cerca de 30 anos, a cidade abrigou a Casa de Saúde Anchieta, um hospital psiquiátrico particular situado em um complexo de 5 mil metros quadrados. Os proprietários eram pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para manter mais de 500 pacientes em dependências capazes de abrigar, no máximo, 250 internos.

Em maio de 1989, queixas da vizinhança com relação a gritos e relatos de maus-tratos contra os internos levaram a prefeitura a intervir no local, que foi fechado anos depois. A imprensa designou o episódio como o “fim da Casa dos Horrores”.

Além da superlotação, faltavam médicos e enfermeiros. Os pacientes eram tratados com doses de remédios hoje consideradas excessivas e com terapias violentas, como o eletrochoque. Na época foi investigada a morte de três pacientes do manicômio: dois enforcados e um espancado.

De acordo com um ex-interno ouvido pela Agência Brasil, os doentes que, mesmo dopados, não se portavam bem eram punidos com o isolamento nos “chiqueirinhos”, celas de pouco mais de 1,5 metro por 1 metro com uma pequena janela. Os demais passavam a noite em dormitórios úmidos, muitas vezes em colchões espalhados sobre o piso já que, segundo o interventor municipal, o psiquiatra Roberto Tykanori, o número de camas era insuficiente.

A intervenção é considerada o marco prático inicial da reforma psiquiátrica brasileira, substituindo a internação e o tratamento, em muitos casos desumano, por terapias que procuravam diminuir a prescrição de medicamentos. A principal proposta era que, com o devido acompanhamento médico, os internos pudessem voltar ao convívio social. Para humanizar ainda mais o atendimento, alguns passaram a frequentar oficinas de teatro, pintura, jornal e de confecção de bijuterias e de camisetas.

Um programa de rádio feito pelos próprios pacientes contribuiu para que a iniciativa santista ganhasse projeção e notoriedade internacional. Pensada para ser veiculada internamente, a programação da Rádio Tam Tam logo chegou às ondas de rádios AM, onde alcançou audiência suficiente para despertar o interesse de uma emissora FM. Além disso, o orientador das atividades culturais, o artista plástico Renato Di Renzo, e os “pacientes-locutores” foram convidados a participar de inúmeros programas de TV.

“Da perspectiva de quem trabalhava lá na época, estávamos transformando o mundo”, comenta o psicólogo Luiz Cancello. “Que eu saiba, nunca antes neste país um governo municipal esteve envolvido nesta causa. Esse pioneirismo cabe, sim, a Santos.”

Para o psiquiatra Roberto Tykanori, interventor do Anchieta, a maior ousadia santista foi encarar os doentes mentais como cidadãos dotados de direitos, provocando entre os internos e os funcionários do local a reflexão quanto ao controle absoluto que se exercia sobre os internos.

“Os funcionários foram proibidos de trancar ou agredir os pacientes, além de não poderem mais recorrer a qualquer forma de violência sob a alegação de estarem 'tratando' os internos. Isso não significa dizer que se um paciente estivesse agitado não se poderia usar a força para contê-lo, mas todos tinham que ter clareza de que isso não era tratamento, mas, sim, uma contenção”, explica Tykanori.

A iniciativa, contudo, enfrentou resistências. Após a intervenção, quem não era de Santos – a maioria dos internos – começou a ser mandado de volta para suas famílias. Já os pacientes santistas passaram por um período de reabilitação, durante o qual a prefeitura deu início à criação dos cinco núcleos de Assistência Psicossocial (Naps) que existem até hoje.

Cada núcleo passou a atender os internos de uma determinada região da cidade, também dividida em cinco polos. Na prática, o antigo prédio ainda funcionou por mais alguns anos. Com o fim da internação para os casos mais brandos, começaram as críticas em relação à presença de pessoas com problemas mentais nas ruas.

“As evidências de maus-tratos contra os pacientes eram tão notórias que logo o trabalho foi aceito, mas tivemos que convencer algumas pessoas de que não se resolvem os problemas deste tipo apenas 'limpando as ruas' e de que se aquelas pessoas causassem algum distúrbio isso teria que ser tratado da mesma forma que um playboy incomodando a vizinhança com o som alto de seu carro”, argumenta Tykanori.

Moradores antigos da Rua São Paulo lembram os conflitos causados pela intervenção. Os pacientes ficavam por ali pedindo cigarro, dinheiro e até água. Para o ex-interno que pediu para não ser identificado e que ainda hoje se trata em um Naps, as críticas à presença dos “loucos” eram fruto do preconceito contra os doentes mentais.

“Essa discriminação depende também da classe social. O rico não é taxado como louco, mas como alguém estressado. Aqui [no Naps], por exemplo, só vem quem não tem condições de pagar, então o equipamento é malvisto. Os ricos vão para clínicas particulares e, apesar de tomarem os mesmos remédios que [tomamos] aqui, têm um outro status.”

 

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo