Clima de operação policial influencia cobertura jornalística

07/12/2007 - 0h14

Paulo Machado
Ouvidor da Radiobrás
Brasília - “As ruasde Arame, cidadede 27 mil habitantesno extremo lesteda Terra IndígenaAraribóia, oeste do Maranhão,trazem ao visitante lembranças de filmesde faroeste misturadascom cenasde periferias de grandescidades.” Assimcomeça a matériaComForça Nacional, operação intensificará ações na Terra Indígena Araribóia,publicada em 15 de novembro de 2007 na AgênciaBrasil.  A respeitodessa matéria escreveu um leitor que não quis seidentificar. Suamensagem provém de umendereço eletrônicoque começacom “bocadopovo”. Normalmente,a Ouvidoria não tratade mensagens anônimas, mas, nesse caso,problemas no texto, evidentes logo no primeiro parágrafo, nos desfiaram a umaanálise mais detalhada da cobertura. Assimvamos tratar o leitorpelo codinomede que dispomos: “bocadopovo”.Sua definição do local é: “Arameé uma cidade comapenas 19 anosde emancipação, cidadede homens e mulherestrabalhadores, agropecuáriaforte, comérciobastante ativo,jovens quese destacam, vários deles nas faculdades de nossoestado...” Continuando, “bocadopovo”lembra: “Não há quenegar a existênciade pessoas desocupadas em nossa cidade como em todas do mundo”.O leitor considera umpreconceito como povo do Nordestebrasileiro classificar a cidade como um filme de faroeste. “A lembrançaque temos de umfilme de faroesteé de um pequenovilarejo comcasas de madeira,pessoas trajadas comocowboys,pistolas na cintura,montadas em cavalose um salooncheio de prostitutas.”Entre a imagemusada opinativamente na matéria e a descrita pelo leitor, com base no senso comum, parece nãohaver muita diferença. Arameé um dos menoresmunicípios do Maranhão. Em matéria de violência, o Estadoconta com apenas 2 entreos 556 municípios quefiguram na lista dos 10% maisviolentos no Brasil, de acordo com OMapa da Violência no Brasil. Um deles,  Açailândia, é vizinho das Terras IndígenasAraribóia e o outro, Imperatriz, fica na região, ambos na divisa com o Pará. A cidadetem um dos pioresÍndices de DesenvolvimentoHumano (IDH) do país:está incluída entre os 2% de municípios maispobres. Elaserviu de base paraa operação Araribóia, que reuniu servidoresda Fundação Nacionaldo Índio (Funai), InstitutoBrasileiro de MeioAmbiente e dos RecursosNaturais Renováveis (Ibama), Polícia Federale Polícia RodoviáriaFederal (PRF), todossob escoltada Força Nacionalde Segurança. Talvez os problemas com a matériatenham começado quando o repórter se colocou na posiçãode visitante. Apesarde sê-lo, devido a suafunção tinhaa obrigação de buscar um olhar mais crítico e menos preconceituoso.Talvez tenham começado quando a viagemfoi marcada a convite da Funai, quepagou as passagens da equipe,sem queisso tenha sido citado nas matérias. Pela descrição do ambiente em que se procedeu a referida operação,seus objetivoseram de intervenção na realidadelocal embusca de uma “pazduradoura”, conformeexplicou o coordenador da equipe de campo da Funai, José Pedro dos Santos:“Nesta região estão o maior número dealdeias da TerraIndígena Araribóia e os maiores problemas.Aqui nóstemos assaltantes, madeireiros,traficantes e foragidos da Justiça, sendo o maiorpólo devastador[do meioambiente]. Játivemos assassinatos, invasões, índiosoprimidos dentrode sua própriaterra. O acampamentovisa garantiraos indígenas das proximidadesuma paz duradoura”.Arame é um dos seis municípiosque integram a reservaindígena Araribóia. Os outros são:Amarante do Maranhão, Grajaú, SantaLuzia, Bom Jesus da Selvae Buriticupu. Entre elese seus vizinhos:Açailândia, Barra do Corda e Bom Jardim, localizados na regiãocentro-oeste maranhense, encontram-se cincodos oito municípiosdo estado quefiguram entre os 100 municípios brasileiroscom as maisaltas taxasde desmatamento. A práticade atividades de extraçãoilegal de madeiraem terrasindígenas é uma das principaiscausas históricas de conflitos entremembros da populaçãoindígena e não-indigena.Para o jornalismo,saber separar os argumentos dos representantes das instituiçõesdo Estado, ao justificaro uso legítimode sua forçade coerção, dos fatosobjetivos da realidadepode fazer todaa diferença emtermos de isençãode olhar e de opinião.Se em Arameexistem todos os infratorescitados na matéria, praticando todos os crimesmencionados, de quem seria a responsabilidade pelaa situação terchegado a esseponto? Qual opapel constitucionaldas instituições queagora reprimem? Nãoseriam elas mesmas as principais responsáveispela prevençãoe fiscalização de tais crimes? Sobre a história recentedos índios Guajajara, principaletnia da TerraIndígena Araribóia, a enciclopédia Povos Indígenasdo Brasil (http://www.socioambiental.org/pib/epi/guajajar/hist.shtm)relata o seguinte:“Novosconflitos sangrentossurgiram a partir dos anos1960 e 70, com a expansãodescontrolada de latifúndios no centro do Maranhão, empurrando muitosposseiros paradentro das terrasindígenas. O maiorpalco destes conflitosfoi de novo Cana-Brava [que fica entre Grajaú e Barra do Corda],com o povoadoilegal de SãoPedro dos Cacetes, queexistiu de 1952 a1995 e contra o qualos Guajajara tiveram que resistir quatrodécadas, comapoio apenas esporádico do governofederal. Outras ameaçassurgiram a partir dos anos1980, com o ProgramaGrande Carajáse com a cobiçade pequenas madeireirasregionais.” Ou seja, a história indicaque o Estado brasileiro não só foi omisso, como também colaborou ativamentepara que posseiros da região, expulsos de suas terras por grandes projetosgovernamentais, fossem parar dentro da terra dos Guajajara. As matérias da Agência não trazem o processo históricoque deu origem aos atuais conflitos. Para apurar responsabilidades, o jornalismoprecisa estarnecessariamente eqüidistante dos lados que sedefrontam em uma operação.Caso contrário,a visão do Estadoou a visãodo visitante quenão tem compromissocom os direitose deveres do cidadãoresidente tende a prevalecer comoverdade incontestável.Juntar madeireirosa assaltantes, traficantes, foragidos daJustiça e aindaa população inteirada cidade, comose fossem a mesma coisa,mostra a formapreconceituosa comouma autoridade se referiu àquelesque, na suaopinião, violaram a lei.Para quem não sabe, madeireiroé uma profissão legal,uma ocupação tão digna como a de jornalista. O jornalismona sua missãode informar comisenção e objetividadedeve saber separar os fatos das versões,sejam elas oficiaisou policiais,que muitas vezes,inclusive, se destinam a justificaro próprio usoostensivo da força.Ao se deixar contaminar pelo clima de uma operação repressiva,o jornalismo corre o risco de transformar cidadãos em assassinos,assaltantes e traficantes antes que a Justiça tenha oportunidadede fazê-lo. Da mesma maneira, espetáculo e operação policial nuncadeveriam andar juntos sob a pena de um contaminar a objetividadee a isenção necessáriada outra.  A matéria,ao invocar a figurade “cenas de periferiasde grandes cidades”,mostra o desconhecimentoe o preconceito, conformeassinalados peloleitor. Nas periferiashá cenas de horrorcomo há de paixão,de amor e de solidariedade.Essas cenas podem tambémser encontradas tantono centro comem qualqueroutro lugar,seja em pequenasou grandescidades. “Lembrançasde filmes de faroeste”é uma figura tãosubjetiva quenem valeria a penacomentar, casoela nãoestivesse como de panode fundo da reportagem. Em sua descrição opinativa,a matéria classifica os jovens como “curiosos” e os adultos como “desconfiados”.Apresentados dessa forma, cidadãos são vistos como simples figurantes de umfilme que está para ser rodado no cenário que conta com adereços de “casas precárias”e de um “comércio amontoado nas calçadas”. Nas novematérias sobreo assunto foram ouvidas 20 fontes, algumas citadas maisde uma vez: funcionáriosda Funai e de outros órgãos públicos(Polícia Federal,Polícia RodoviáriaFederal, Ibama e PolíciaMilitar) integrantesda Operação Araribóia: 13 (65%), índios e a diretora da escolada aldeia indígena: 4 (20%) e fazendeiro,filho de fazendeiroe caminhoneiro acusados de violar a lei: 3 (15%).Observa-se que nenhuma autoridade local foi entrevistada, tampoucocomerciantes oumoradores. O que será que pensam o poder público local eo governo do estadodo Maranhão sobre essesconflitos? Quala responsabilidade históricadeles? Quais as providênciasque tomaram paraevitá-los? E as famílias que vivem nesse município,estudantes, donasde casa, trabalhadores?Como lidam comos conflitos e comoavaliam a operação Araribóia? Em tese é em defesa dos direitos desses cidadãosque estavam láas autoridades e a reportagem. Asmatérias publicadas na Agência até 4 de dezembro, 20 dias depois que a equipeesteve no local, não traziam essas informações. Apenas no dia 5, forampublicadas duas matérias ouvindo fontes que não estão diretamente ligadas àoperação.  A resposta da Agência Brasil sobre a cobertura está reproduzida ao final deste texto.Há novemeses escrevi a primeira Coluna do Ouvidoraqui na Agência. Naquela oportunidade,colocava-me o desafio de contribuirpara mudar a qualidade da relaçãoque o(a) leitor(a)tinha comaquilo quelia, com a maneira como seinformava, com a qualidadeda informação. Durante esse tempo, aOuvidoria comparou o que foi feito em matéria de jornalismo com o que deveriaou poderia ter sido feito, sempre sob a demanda dos leitores e à luz do queconsta no Manual de Jornalismo daRadiobrás. O manualserviu como umpacto entreos profissionais e a direçãoda empresa e entreesta última e o públicode nossos veículosde comunicação. Nele encontramos o que podia ou não ser feito, o que fazer e como fazer, com princípios éticose técnicos, comnormas de linguageme de redação, tudono sentido de evitarconflitos de interessee direcionar o trabalhodas redações parao jornalismo comfoco no cidadãoe não no governoou nas instituiçõesdo Estado.   Nesse sentidoprocuramos orientar nossacrítica para provocar mudanças no sentidode produzir novosmodos de pensare de fazer o jornalismo.Foi uma crítica quenão visou destruirnem desmerecero trabalho dos profissionais,e sim proporcionaruma oportunidade paraque essetrabalho fosse permanentementerepensado à luz da capacidadede compreensão do leitor.Esta Coluna é a última deuma série de 37 deste ouvidor que estará de férias compulsórias a partir deagora até o final do mandato, em 31 de dezembro, pela Radiobrás. A empresa está sendo, neste momento, incorporada pelaEmpresa Brasil de Comunicação (EBC). Uma nova Ouvidoria já está prevista edeverá ser implantada nos próximos meses.Deixo a Agência a cargo de leitores atentos como“bocadopovo”, que repudiaram a forma preconceituosa como foi tratadasua cidade.Deixo a AgênciaBrasil nas mãosda própria Agência, queprecisa repensaro patrocínio de viagensa convite de órgãospúblicos e atéque ponto isso compromete suacredibilidade. O Serviço de Ouvidoriacontinuará funcionando normalmente sob orientação do ouvidor substituto, Helder Nozima.Agradeço a todos que colaboraram direta ou indiretamente com o trabalhorealizado, especialmente à minha assessoria e aos leitores que nos escreveram.Sonhos e realidade às vezesandam juntos.Leia a resposta da Agência Brasil sobre a cobertura da Operação Araribóia:"A Agênciaconcorda que a cobertura de uma operação como essa, aolado da possibilidade positiva de constatar o fato 'na ponta',traz o risco de um tom policialesco ou de uma concentraçãode pontos de vista dos órgãos responsáveis pelaação. Avalia, entretanto, que o problema pode ser, nomínimo, reduzido com uma complementação a partirda redação. Isso se faz ouvindo autoridades, sociedadecivil e pesquisadores e levantando dados socioeconômicos, comoos do IBGE, e contexto histórico. Como fizemos, com atraso, apartir das observações do leitor em duas matérias(citadas abaixo). Numa série de reportagens desse tipoé freqüente a dificuldade de ouvir outras fontes nolocal, por motivos logísticos (quando a equipe se deslocajunto com participantes da operação) e de segurança(quando há confronto entre agentes da e aqueles que a açãobusca retirar da área). O repórter conta que foiadvertido pela Polícia Federal de que, naquele contexto, seriaperigoso para um jornalista circular separado do grupo. Cabe lembrarque dois índios foram mortos na região duas semanasantes da operação. Menos de duas semana depois dela, umcacique foi assassinado. Entrevistado após a mensagemdo leitor, na última quinta-feira (5), o presidente daAssociação Comercial do município apontapreocupação com a criminalidade. Opiniãosemelhante têm juiz e promotor ouvidos pela AgênciaBrasil, que destacama necessidade de investimentos e presença maior do Estadopara conter o problema. Veicular opiniões como essas nãosignifica dizer que na cidade não há gente honesta –e a imensa maioria dos habitantes certamente é.Aodescrever ao leitor o local onde se desenrolam os fatos em questão,o repórter procura elementos para situar o leitor. Issofunciona melhor se combinado a dados precisos, o que faltou namatéria sobre a cidade de Arame. Não há,entretanto, motivo para se falar em preconceito contra os nordestinosno texto destacado. Quanto à comparação com ofaroeste, avaliamos que era desnecessária e, por isso,retiramos a a imagem do texto. Por fim, vale ressalvar que, embora aprofissão de madeireiro seja legítima como qualqueroutra, a autoridade citada se referia àqueles que explorammadeira dentro de uma terra indígena – atividade ilegal efreqüentemente associada a outros crimes, como a grilagem.AAgência sempre registra quando a equipe viaja a convitede um órgão governamental ou de uma entidade. Nestecaso, houve erro de não indicar que os custos foramparcialmente pagos pela Funai (a fundação arcou com aspassagens). A informação foi acrescentada depois.Issonão impediu nosso enviado de veicular críticas deentrevistados à instituição – como no textoAcuados,índios Guajajara pedem alternativas de renda e apoio paraescola – ou à operação. O repórtercita exemplos: 'Tinha índios dizendo não receberemassistência adequada, um cacique preocupado com consequênciastrágicas no futuro e um policial admitindo que o trabalhopoderia ser inócuo no combate aos maiores criminosos'."