Frei Betto: "A Igreja não era una como as Forças Armadas"

29/03/2004 - 21h38

Brasília, 29/3/2004 (Agência Brasil - ABr) - O mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 59, escritor e jornalista, iniciou sua militância no movimento estudantil ligado à base católica e mais tarde integrou-se à ordem dos dominicanos. Mais de três décadas de atuação junto às Comunidades Eclesiais de Base tornaram seu nome conhecido no Brasil e no exterior. Aliada à resistência à ditadura, na colaboração com grupos como a Aliança Libertadora Nacional, essa experiência rendeu boa parte da munição para os mais de 40 livros que escreveu, hoje editados em vários países. Entre eles, "Batismo de Sangue - Os Dominicanos e a Morte de Carlos Marighella", sobre o militante comunista que se tornou guerrilheiro urbano, líder da ALN, morto em 1969, em São Paulo, pelas forças da repressão.

Em depoimento à Agência Brasil, Frei Betto revela que seus quatro anos de prisão durante a ditadura, por subversão, foram decisivos para sua vida literária. O jornalista conta que não se casou por não haver encontrado ninguém parecido com Santa Teresa de Ávila, a "mulher que arrancou Deus do céu e O colocou no centro do coração humano". Betto considera que hoje pode viver de direitos autorais, mas continua achando que o socialismo é uma questão de fé e que o mundo só tem sentido se for partilhado. Atualmente, Frei Betto trabalha no Palácio do Planalto, assessorando diretamente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de quem é amigo desde o final dos anos 70, quando Lula fundou o Partido dos Trabalhadores (PT). Leia a seguir os principais trechos do depoimento.

Medo na cara

"Em 1° de abril de 1964, eu me encontrava num congresso latino-americano de estudantes, em Belém do Pará. Eu tinha 20 anos, não era frade, estudava jornalismo na Faculdade Nacional de Filosofia no Rio, e era dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica (JEC) movimento ligado à Ação Católica, do qual também fizeram parte José Genoíno, Henrique Meirelles e José Graziano, entre tantos outros que se tornaram figuras públicas mais tarde.

Quando se soube do Golpe, o congresso se desfez, e cada um procurou retornar ao seu local de origem. Eu não consegui embarcar para o Rio de Janeiro, onde morava, e fui me esconder, primeiro no Arcebispado de Belém e, depois, na casa de um militante da ação católica. Não tive medo, mas sim preocupação, pelas poucas noticias que chegavam a Belém e que davam conta de que no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte, havia movimento de tropas, prisões, tortura e mortes.

Em Belém, não se sentia ainda o peso das botas que esmagaram a nossa Constituição e a nossa democracia. Dias depois é que eu vim a sentir o que era o medo, ao ver isso na cara das pessoas, que começaram a falar baixo, a evitar conversar sobre política. A polícia e o Exército se tornaram mais presentes nas ruas, começou a caçada aos perseguidos, e foi então que eu comecei a ver o perfil da ditadura, que era um perfil hediondo".

Conservadorismo made in USA

"Não é a minha opinião, mas do embaixador dos Estados Unidos no Brasil à época, Lincoln Gordon. Ele reconheceu em depoimentos e ao escrever suas memórias que a embaixada americana e a CIA tiveram um desempenho muito atuante na preparação e na realização do Golpe. Vivia-se a Guerra Fria, e o governo americano não queria outra Cuba no Continente. Diga-se de passagem que o governo americano apoiou a revolução cubana. Fidel chegou a desfilar na 5ª avenida, em Nova York, mas o governo achava que haveria em Havana apenas uma mudança de postura governamental, e não uma
mudança de estruturas, como efetivamente ocorreu. E isso, com sério prejuízo para os interesses dos Estados Unidos.

Temia-se que o mesmo ocorresse no Brasil, daí o empenho explicito que o governo dos Estados Unidos teve na preparação e na efetivação do golpe. Importaram inclusive um padre, Patrick Peyton, que criou o movimento do Terço em Família e a Marcha da Família com Deus para a Liberdade. Ou seja, todo um caldo de gordura que foi sendo criado com bastante tempero de água benta para favorecer o golpe, criando o fantasma de que, se houvesse essas reformas de base, prometidas pelo governo de João Goulart, o Brasil iria para o comunismo, o que é uma bobagem. Na época, isso provocou medo na classe média e favoreceu o êxito do golpe.

Além disso, militares foram treinados pelos Estados Unidos, que, durante muitas décadas, jamais respeitaram as democracias do terceiro mundo. Sempre pretenderam monitorá-las e sempre preferiram instalar um regime de forças para defender os seus interesses. Esses militares, com a cabeça feita nas escolas americana do Panamá ou de Miami, não só executaram o Golpe como praticaram crimes hediondos, como a tortura sistemática como método de interrogatório, levando varias pessoas, inclusive meu confrade Frei Tito de Alencar Lima, à morte".

Saldo

"O maior prejuízo do período militar foi se criar uma aversão à democracia. Durante 21 anos, nós tivemos a oficialização da mentira. As pessoas pensavam que aqueles que lutavam na resistência à ditadura eram terroristas. Eu mesmo fui tido como terrorista nas duas prisões que sofri, a primeira em junho de 1964, por alguns dias, e a segunda de 1969 a 1973, durante quatro anos.

O Brasil teve um grande crescimento econômico naquele período, mas à custa de grande sofrimento do povo, a ponto de o general Médici declarar que a economia ia bem, mas o povo ia mal. Apesar disso, conseguimos rearticular o movimento popular, e as greves do ABC, no fim dos anos 70 e anos 80, desmascararam a maquiagem dada ao indicadores econômicos do regime militar. Aos poucos, fomos minando as bases daquele regime e reconquistando a democracia política. Falta-nos, agora, conquistar a democracia econômica, reduzindo drasticamente a desigualdade que impera em nosso país".

Nossa Senhora

"O golpe não tinha respaldo popular, na medida em que houve uma ação maciça de condicionamento psicossocial. Citei o caso do padre Peyton, mas havia também uma campanha intensa de que o Brasil iria cair num regime comunista e que, portanto, precisariam salvá-lo e só os militares poderiam fazê-lo. Até Nossa Senhora Aparecida foi invocada para salvar o Brasil do comunismo.

Tentou-se uma resistência armada, que acabou não dando certo, e a ditadura reagiu com muita força e crueldade, mas não diria que houve uma guerra civil. Tanto que nós, que participamos da resistência à ditadura, não tivemos muito apoio, na medida que a população era induzida pela publicidade da ditadura, era motivada pelo medo até de contato com os terroristas. Por isso, nos faltou o apoio popular que gostaríamos de ter tido. O que se fez, de fato, foi evitar que o país tivesse justiça social. Estamos 40 anos atrasados em relação àquele programa iniciado nos anos 60 e interrompido com o regime militar em 64. Esse é hoje o compromisso do governo Lula, de levar a efetividade a essas reformas de estrutura de que o nosso país tanto precisa."

A Igreja e a repressão

"Num primeiro momento, a CNBB - que é a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil - incensou o golpe, mas logo os setores católicos mais progressistas começaram a ser perseguidos, e a Igreja se dividiu. Como, aos olhos dos militares, a Igreja era una, da mesma forma que as Forças Armadas, isso fez com que eles achassem que a Igreja acendia uma vela a Deus e outra ao diabo. Na verdade, havia setores da Igreja que apoiavam o golpe e outros que fizeram resistência ao regime, como foi o meu caso e o de um grupo de dominicanos de São Paulo, de Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Hélder Câmara, Dom Mauro Morelli, Dom Adriano Hipólito e de tantos outros bispos.

Acontece que, quanto mais a repressão policial-militar fazia cair a sua pesada mão sobre a Igreja, tanto mais a Igreja se unia e se afastava do apoio ao golpe, tornando-se uma instância crítica e uma caixa da ressonância da insatisfação com o Regime. Com a vantagem de que era a única instância, a única instituição do país para a qual os militares não teriam como nomear um general da reserva para comandá-la. Eles podiam fazer isso com universidades, com associações, com sindicatos, mas não com uma instituição duplamente milenar, como a Igreja Católica. Isso fez dela um grande espaço da conquista, da democracia, de defesa dos direitos humanos, de sementeira de movimentos sociais que renasceram nos anos 70/80 e, por fim, fator de derrubada da ditadura".

Sem ressentimentos

"Eu não tenho nenhum ressentimento, até porque entendo que aqueles torturadores, aqueles esbirros da ditadura, eram pessoas produzidas por um sistema que os embotava do ponto de vista mental, psicológico e ideológico. Então, não tenho nada pessoal contra ninguém. A minha questão é política, ou seja, eu não admito ditaduras, não admito regimes autoritários, a não ser em situações muito excepcionais em que o inimigo não permite que se produza uma democracia mais ampla. Como exemplo, eu não considero Fidel Castro um ditador, mas considero o regime cubano autoritário e entendo isso como conseqüência da pressão e da agressão do governo dos Estados Unidos a Cuba e a maneira como isola o país das relações com as demais nações do mundo, inclusive com o bloqueio, que é criminoso e que não tem nenhum respaldo na jurisdição internacional.

No caso brasileiro, portanto, eu não tenho nenhuma mágoa; ao contrário, sinto-me muito feliz com a minha consciência diante de Deus por ter participado da resistência à ditadura, tanto quando eu estava no cárcere como depois, quando deixei o cárcere e evitei exilar-me. Eu tinha todas as condições para isso, mas preferi viver cinco anos em uma favela em Vitória, no Espírito Santo, para continuar a resistência ao regime militar. Isso me tranqüiliza muito e, ao meu ver, aquelas pessoas que torturaram e mataram deveriam ser punidas por terem feito isso em nome do Estado, que tem a obrigação de defender a lei. Essa atitude não tem nenhum caráter vingativo, e sim de mostrar às futuras gerações que isso não deve se repetir".

Escrever e orar

"Eu fui preso duas vezes: a primeira, porque participava da Ação Católica, que, na opinião dos militares, era um grupo político disfarçado de religioso. A segunda, porque participei da Aliança Libertadora Nacional, um movimento liderado por Carlos Marighela. O meu papel era passar os perseguidos políticos pela fronteira do Brasil. Tirei várias pessoas pela fronteira do Rio Grande do Sul com Uruguai e Argentina.

Os quatro anos de prisão que cumpri foram anos de muito aprendizado, de muito sofrimento, por um lado, e de muita purificação por outro. Foram anos em que me foi dada a oportunidade de realizar as duas coisas que mais gosto na vida, escrever e orar, permitindo-me aprofundar mais ainda a minha experiência de meditação. Foram anos que, evidentemente, não gostaria de repetir, mas agradeço a Deus ter saído daquele período não só inteiro, como melhor. Consegui fazer da prisão um momento especial, e isso me fortaleceu como ser humano.

Reformas

"As propostas de Jango eram um tanto quanto demagógicas. Não tinham suficiente respaldo popular, embora fossem avançadas. Grande parte da nação era a favor da reforma agrária, da reforma urbana, a Lei de Remessa de Lucros, mas o governo era tão inconsistente que foi facilmente derrubado. Isso explica também uma sucessão de fatos políticos que teve inicio com a renúncia de Jânio Quadros.

Jânio pretendia varrer o Brasil e acabou varrido do Brasil. O triunvirato que o sucedeu já foi um balão de ensaio do que viria ser mais tarde o regime militar. As condições não estavam maduras para o Brasil fazer e manter as reformas estruturais. Poderia até fazê-las por decreto, mas não realizá-las efetivamente, porque não havia suficiente respaldo político para isso."

Educação obscurantista

"A ditadura deixou de herança toda uma geração que foi educada no obscurantismo, representada por uma reforma educacional que ainda hoje produz seus efeitos sobre as pessoas que estudaram, mas não aprenderem a refletir. A eliminação da sociologia e da filosofia, do currículo escolar, por exemplo, contribuiu para isso. A criação da disciplina Organização Social e Política Brasileira, enquanto era acrítica, foi válida, mas, no momento em que se tornou critica, como foi o caso do livro que escrevi sobre introdução à política brasileira, acabaram cassando a disciplina.

Eu creio que tivemos um período de grande obscurantismo, que levou muitos jovens, hoje adultos, a terem horror, nojo da política, o que é muito bom para os maus políticos, pois é isso que eles querem: que as pessoas se interessem cada vez menos pela política para eles ficarem donos dela."

Crianças cubanas

"Em Cuba foi feita uma revolução que favorece a grande maioria do povo. Em Cuba não há miséria; há pobreza, mas não miséria. Quando você chega a Havana, há um grande outdoor na saída do aeroporto, com uma criança sorrindo e a seguinte inscrição: "Esta noite milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana". Que país da América Latina pode colocar esse cartaz na saída do aeroporto?

Cuba tem limitações políticas, por força do bloqueio americano. Suspenda-se o bloqueio, integre-se Cuba à Organização dos Estados Americanos, permita-se que tenha relações normais com os demais países do mundo, aí sim, o povo cubano vai fazer avançar sua autodeterminação. Não vamos cobrar de Cuba aquilo que o Ocidente, sobretudo o governo dos Estados Unidos, não permite que ela seja, uma pátria onde a justiça que lá existe consiga viver adequadamente com a verdade."

Da infância a velhice

"Na infância, a gente tem muitas dúvidas, por isso faz muitas perguntas. Na juventude, a gente tem só certezas. Depois, na idade adulta, volta a ter dúvidas. Quando idoso, passa a ter fé. Aos 20 anos, eu tinha muitas certezas, que não tenho hoje, e estava disposto, inclusive, a morrer na resistência à ditadura. Não me arrependo de nada que eu fiz, foi uma experiência extremamente construtiva, mas estava imbuído da certeza de que aquela luta iria conduzir o Brasil ao socialismo e que nós sairíamos dali vitoriosos. Infelizmente, isso não ocorreu e tivemos de aprender amargamente com a derrota."

Profissão de fé

"Sou socialista por questão de fé. O mundo que Jesus pregou no evangelho, o mundo que Jesus praticou com seus apóstolos, é um mundo da partilha. O dom maior de Deus é a vida, e eu acredito que a vida só é possível neste planeta se nós partilharmos, como diz o sacerdote na oração eucarística, os bens da terra e os frutos do trabalho humano. Por ser religioso, sempre vivi em um convento, que é uma microssociedade socialista. Por isso, não entra na minha cabeça como um monge ou uma religiosa podem não ser socialistas. Eu creio que, fora do socialismo, o mundo caminha para a barbárie: ou partilhamos o pão para obtermos a paz ou enfrentaremos a catástrofe."

Democracia econômica

"Os eleitores brasileiros apostaram no projeto democrático popular apresentado pelo presidente Lula, e no compromisso que ele tem de realizar uma reforma significativa na estrutura brasileira, a previdenciária, a tributária, a política, a agrária e a trabalhista. Então, creio que nós somos um governo que passou pelos cárceres da ditadura, que tem uma obrigação moral e política de assegurar o regime democrático, de aprimorá-lo de um modo que ele seja cada vez não só representativo, mas participativo, e, sobretudo, de instalar e implementar nesse Brasil a democracia econômica. Essa é a nossa responsabilidade histórica. Eu costumo dizer que metade do governo esteve no cárcere e a outra metade não está no governo porque morreu na tortura. Nós não podemos jamais esquecer essas nossas raízes, de que representamos um Brasil de mudança, um Brasil com menos desigualdade, com mais justiça social, com mais liberdade, com menos opulência, com menos violência."