Instrumento árabe ajudou a criar a batida rítmica do samba

03/12/2003 - 17h00

Paula Quental
Repórter da ANBA

São Paulo - A influência árabe na cultura brasileira começa antes mesmo da descoberta do país, a partir da ocupação pelos mouros da Península Ibérica, no século 8, que deixa marcas importantes, por exemplo, na língua, literatura e na arquitetura portuguesas. O que poucos sabem, porém, é que a presença árabe é sentida até em uma criação genuinamente nacional, associada ao Brasil por qualquer habitante do planeta: o samba.

Isso mesmo, o samba, em suas origens, nas batucadas nos morros do centro do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século 20, contou, entre os vários instrumentos de percussão de origem africana, com um, em especial, de origem árabe: o adufe. Semelhante ao pandeiro, só que em formato hexagonal e sem platinelas, o adufe teria ajudado o samba a chegar à batida rítmica que hoje o caracteriza.

Ou, pelo menos, contribuído para a marcação "diferente" do samba produzido em algumas escolas mais tradicionais, como é o caso da Portela. Quem afirma é João Baptista de Medeiros Vargens, professor de árabe do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor, ao lado de Carlos Monte, do livro "A Velha Guarda da Portela" (Manati, 2001).

Segundo Vargens, o adufe, embora nunca lembrado pelo nome correto, aparece nos relatos de alguns veteranos sambistas da Portela, e no do cantor e compositor Paulinho da Viola, que conviveu com muitos deles. "Paulinho, no livro, lembra as batucadas na antiga sede da Portela, a Portelinha. Lembra dos cavaquinhos, das palmas e de uns pandeiros quadrados, que seriam responsáveis por esse toque da Velha Guarda, pelo desenho melódico dos velhos bambas da escola", revela o professor.

Vargens conta que essa marcação rítmica desenvolvida com a participação do adufe ajudava a dar uma marca especial à bateria da Portela, reconhecida imediatamente pelo público quando a escola começava a entrar na avenida, "pelo menos até meados dos anos 1970".

'Islamismo e Negritude'

Não há estudos sobre a presença de descendentes árabes nos morros cariocas, até porque ainda são poucas as iniciativas de registro da história dessa população e do próprio samba, aliás. Mas uma outra pista sobre a convergência dos dois mundos - cultura árabe e negros sambistas - é dada também pelo professor Vargens.

Atento às manifestações da cultura árabe no Brasil, ele observa que letras do compositor Aniceto (de Meneses e Silva Júnior), morto em 1993, um dos fundadores da escola de samba Império Serrano e também compositor da Portela, se referem aos "mussurumins", termo que é uma corruptela de muçulmanos.

Segundo Vargens, que é autor, junto com Nei Lopes, do livro "Islamismo e Negritude - da África ao Brasil, da Idade Média aos nossos dias" (UFRJ,1982), o primeiro contato dos brasileiros com a cultura islâmica foi por intermédio de escravos africanos muçulmanos e não de imigrantes árabes - que por aqui começaram a chegar nas últimas décadas do século 19.

Estes, aliás, oriundos principalmente da Síria e do Líbano, tinham principalmente formação cristã. O Islamismo, escreve Vargens, teve papel muito importante na "aglutinação e resistência" dos negros feitos escravos no Brasil. "Esse Islamismo, que já na África, como vimos, não era exatamente o mesmo da Arábia, no Brasil sofreu, é claro, ainda outras influências, recebendo os nomes de 'religião dos alufás', e culto 'mussurumin', 'muçulmi' ou 'malê' - nomes estes pelos quais eram genericamente conhecidos os negros islamizados. E foi esse Islamismo que criou a mítica do negro altivo, insolente, insubmisso e revoltoso (...)", diz trecho do livro.

Os negros adeptos do Islamismo, apurou o professor em seus estudos, começaram a chegar ao país a partir do século 18 e foram deslocados principalmente para o Nordeste, em especial a Bahia (onde mais para frente, em 1835, seriam responsáveis pelo episódio conhecido como Levante dos Malês). Eram negros cultos, alfabetizados (liam o alcorão em árabe) e viviam agrupados na capital, Salvador, e no Recôncavo. Uma parte deles, muito provavelmente após a perseguição policial desencadeada pela revolta, migrou para o Rio de Janeiro. Quanto a sua ligação com o samba e com a cultura dos morros cariocas, há apenas indícios e "muito para ser estudado", diz Vargens.