O arroz dourado

24/01/2003 - 16h52

Solange Rocha Monteiro de Andrade (*)

A deficiência de vitamina A é um grave problema nutricional mundial. Os dados demonstram que cerca de 3,1 milhões de crianças na idade pré-escolar sofrem de doenças nos olhos, e cerca de 2 milhões de crianças abaixo de 5 anos morrem anualmente devido a doenças relacionadas a persistente falta de vitamina A, tais como diarréias e rubéola. A gravidade desta situação impulsionou o desenvolvimento de programas para aumentar o teor de vitamina A em alimentos, principalmente em arroz.

O arroz foi escolhido pois é consumido por aproximadamente metade da população mundial, sendo que na Ásia esta proporção alcança 94% da população. Neste continente cerca de 180 milhões de crianças e mulheres grávidas sofrem de deficiência de vitamina A e cerca de 5 milhões de crianças ficam cegas ou parcialmente cegas devido a esta deficiência. O arroz é uma excelente fonte de calorias, no entanto é pobre em alguns componentes nutricionais, entre eles a vitamina A ou o b-caroteno, um precursor da vitamina A. Os primeiros programas visavam fortificar o arroz com adição de vitamina A, todavia, os altos custos e a falta de infra-estrutura de distribuição dificultaram o sucesso do programa.

Também foi lançado um programa de distribuição de comprimidos de vitamina A, que fracassou pelo mesmo motivo anterior. Um programa que pode dar certo, pois já é um sucesso com 600 mil famílias na Tailândia é a introdução de outras opções alimentares, como verduras e frutas na dieta destas populações. A idéia é que núcleos familiares plantem estas frutas e verduras para seu próprio consumo. O único problema desta solução é que ela atinge só a população rural.

Uma outra proposta estudada, e possível de ser adotada, é a indução de formação de b-caroteno em endosperma de arroz, por meio de técnicas de transformação genética. Esta tecnologia já foi empregada e o resultado foi um arroz transgênico que é chamado "golden rice" (arroz dourado), devido à sua coloração amarela em função da produção de b-caroteno no grão.

Esta tecnologia surgiu devido aos esforços de dois pesquisadores suiços, Dr. Ingo Potrykus e Dr. Peter Burkhardt, e um alemão, Dr. Peter Beyer. Pesquisadores do Swiss Federal Institute of Technology em colaboração com cientistas da University of Freiburg, e com patrocínio da Fundação Rockfeller, descobriram que o endosperma de arroz produzia um molécula de 20 carbonos chamada geranyl geranyl diphosphato (GGPP). Esta molécula é uma das precursoras do b-caroteno que devido à ausência de expressão de algumas enzimas não é convertida em b-caroteno em endosperma de arroz. Com base nisto, os cientistas passaram a estudar a possibilidade de utilizar este precursor como molde para a conversão em b-caroteno, que uma vez ingerido é convertido em vitamina A no organismo humano.

O objetivo dos pesquisadores era alterar a rota de metabolismo de formação do b-caroteno e, por meio de técnicas de transformação, introduzir algumas enzimas relacionadas a este metabolismo. Eles trabalharam principalmente com quatro enzimas phytoene synthase, phytoene desaturase, z-carotene desaturase e lycopene cyclase, provenientes de narciso e Erwinia. Após 8 anos de várias tentativas, durante os quais foram aprimorando o processo, o Dr. Xudong Ye foi incorporado ao grupo, e propôs algumas alterações ao processo estudado. Assim, por meio de transformação mediada por Agrobacterium, e introdução dos três genes de uma única vez, estes cientistas finalmente obtiveram o tão sonhado arroz dourado.

No entanto, nem tudo são flores neste processo, o material obtido ainda produz b-caroteno em pouca quantidade (10% das necessidades diárias de um adulto), outro problema é que o processo de transformação foi realizado com cultivares apropriados ao clima temperado (O. japonica), pois era o material possível de ser trabalhado naquele momento. Estes dois problemas estão sendo solucionados por meio do aprimoramento da técnica, que desta vez está sendo realizada com cultivares tropicais (O. indica), em colaboração com a Índia por meio da Indo-Swiss Collaboration in Biotechnology (ISCB).

Organizações Não Governamentais (OGNs) questionam o caráter social deste arroz devido ao acordo entre as instituições de pesquisa e a empresa multinacional Zenica. Estes grupos ponderam que este acordo foi feito para unicamente para abrir espaço para o cultivo indiscriminado de transgênicos em países em desenvolvimento. O autor do projeto, Dr. Ingo Potrykus contesta esta versão, pois este acordo foi realizado de modo a respeitar as regras de propriedade intelectual e de patentes. A multinacional Zenica concordou em distribuir gratuitamente as sementes deste arroz em países em desenvolvimento, e vendê-las aos países desenvolvidos.

Questionamentos éticos à parte, o que é necessário saber é que a tecnologia de transformação genética pode ajudar a resolver alguns problemas de desnutrição em países pobres. O Dr. Ingo Potrykus e sua equipe, dentro desta prerrogativa, trabalham com uma técnica para aumentar o teor de ferro também em arroz, uma vez que este é um outro grave problema nutricional que afeta as populações carentes em todo o mundo.

(*) Solange Rocha Monteiro de Andrade é especialista em biotecnologia e fruticultura na Embrapa Cerrados, Planaltina (DF), fone (61) 388 9898, endereço eletrônico: solange@cpac.embrapa.br