Na trilha de Lampião, uma gastronomia tirada da seca

24/08/2003 - 10h29

Sergipe, 24/8/2003 (Agência Brasil - ABr) - No terreiro de casa, passa o rio São Francisco, meio acabrunhado depois da construção da vizinha hidrelétrica de Xingó. No quintal, tem a grota de Angicos, onde Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram chacinados no ano-calibre de 38 _ 1938. Dentro de casa, dona Gilda Correia Nunes, 58 anos, mãe de 12 criaturas, transforma a memória de necessidades e secas brabas em fina gastronomia.

Da cabeça-de-frade, aquele cacto redondinho com o cocoruto vermelho, faz um doce de lamber os beiços. Do talo da urtiga, uma salada sob medida para acompanhar o surubim, peixe que já escasseia no velho Chico cansado de guerra. Do facheiro, também nascido na teimosa flora semi-árida, sai uma geléia de primeira. "A gente tem que aprender a tirar desse deserto tudo que é sustança", dá o exemplo. "E isso vem de longe, eu já aprendi com a minha mãe, que
aprendeu com a dela, que aprendeu mais atrás ainda e as minhas filhas já fazem tudo melhor do que eu".

Luíza, novinha cheirando a leite, é uma dessas criaturas. Faca amolada, retira os espinhos dos cactos com a habilidade de um japonês cortando peixe para fazer sushis. Um mar de água, o cacto desmancha-se na bacia. "Muita gente já matou a sede, em tempo ruim de verdade, com essas plantas", conta. Repete a narrativa que ouviu dos mais velhos. "Os bodes tiram os espinhos espezinhando a cabeça-de-frade, depois enchem o bucho d’água, felizes, Deus sabe o que faz".

O doce do cacto é de botar abaixo qualquer regime ou cuidado de mulher com a silhueta. Lembra doce de mamão verde, mas é muito melhor. Embora algumas mais jovens sigam os padrões estéticos importados na parabólica da TV, sertanejo que é sertanejo aprecia mesmo, seja morena ou galega, é uma moça "forte", corada, roliça, cheinha.

Macho considerado também é o que apresenta sinais de fartura para encobrir o esqueleto. Homem fornido, redondo na cintura e nas bochechas, pança que dá o ritmo em qualquer forró. "Hoje em dia, na capital, tem essa moda de graveto, coisa sequinha, só o osso, as moças parecem aquelas vaquinhas da seca, andam tudo desconjuntadas, pernas destrambelhadas, vixe!, que diabo de tempo é esse?", pergunta dona Gilda. "Tem moça que é só o fiapinho de gente. E moça rica, com condição de comer direitinho!".

De certa forma, o pendor pelos mais cheinhos e cheinhas, sinais de bonança, não deixa de ser uma vingança estética contra a memória da fome, sertão dos flagelos. Há busca da fartura até nas carnes de casamentos e pecados, cercas tantas do amor.

Mas, no restaurante familiar de dona Gilda, de nome Angicos, batismo que nem carece de placa, as moças sequinhas das metrópoles escapariam com peixes e saladas da caatinga. "Mas aviso logo: comer pouco aqui é uma desfeita", diz. "Gosto de quem come como se o mundo fosse acabar logo um tempinho depois". Para a sobremesa, além dos doces, redes estendidas debaixo de mangueiras garantem uma sesta de rei.

Xico Sá, enviado especial a Canindé do São Francisco e Poço Redondo (SE)