Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Aluna do curso de geografia na Universidade do Chile, Camila Vallejo é uma das principais líderes do movimento estudantil daquele país, onde desde junho ocorrem protestos quase diários em defesa de uma reforma no sistema educacional. Ela deixou por um dia o comando das atividades em Santiago para participar hoje (31) da Marcha dos Estudantes, organizada pela União Nacional dos Estudantes (UNE), em Brasília.
O impasse dos estudantes chilenos com o governo daquele país já dura três meses e conseguiu mobilizar outros setores da sociedade. As últimas paralisações foram consideradas as mais intensas desde a redemocratização do país com o fim do governo do presidente Augusto Pinochet (1973-1990). Em um dos últimos protestos, um estudante de 14 anos morreu após ser atingido por uma bala. A suspeita é que o tiro tenha partido de policiais. A principal reivindicação dos estudantes é a mudança no modelo de ensino, que é em grande parte administrado pelo setor privado.
Na educação básica, o governo é responsável por uma parte menor dos estabelecimentos de ensino e financia a matrícula do restante da população em escolas privadas. Dos 3,4 milhões de matrículas da educação básica, metade está nas escolas subvencionadas – o restante fica nas públicas ou é custeado pelas próprias famílias em instituições particulares. Mesmo nas universidades públicas, os estudante têm que pagar taxas anuais e matrículas. O governo banca apenas parte dos estudantes. Ainda assim, nas avaliações internacionais como o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o Chile sempre ocupa posições de destaque entre os países da América Latina pelos bons resultados alcançados.
Camila retorna para o Chile ainda hoje, mas antes se reúne com parlamentares no Congresso Nacional e com a presidenta Dilma Rousseff. Em entrevista à Agência Brasil, ela avalia o movimento estudantil na América Latina e diz que seu ídolo político é Salvador Allende, ex-presidente chileno fundador do Partido Socialista e deposto pelo golpe militar liderado por Pinochet em 1973.
Agência Brasil: Quais são as principais demandas dos estudantes chilenos que levaram aos protestos intensos nos últimos meses?
Camila Vallejo: O problema é que no Chile se impôs na década de 80 um modelo de educação de mercado que já tem 30 anos de vida, mas que tem sido um sistema perverso, cujo principal objetivo é aprofundar as desigualdades. É um modelo que entende a educação como um bem de consumo e não como um direito universal. O Estado hoje não assume a educação, não a financia. Quem financia a educação chilena são as famílias: entre 80% e 100% dos custos com educação, em especial a superior, recaem sobre a família. E isso aprofundou as desigualdades porque nem todas as famílias têm capacidade de pagar, e o único benefício oferecido pelo Estado é um sistema de financiamento que aprofundou o endividamento exagerado das famílias. O que estamos revindicando é a volta de um modelo central que sustente o modelo educacional de muitos países que entendem a educação como um direito e, portanto, tem que ser devidamente financiada pelo Estado. Um modelo que pense um desenvolvimento harmônico do país e isso passa não somente pela garantia do financiamento de um sistema público, mas também pela construção de um sistema que sirva à democracia, com valores pluralistas em que haja a verdadeira integração social.
ABr: Nas avaliações internacionais o Chile sempre se destaca entre os países da América Latina pelos bons resultados alcançados. Por que há então a necessidade de mudança desse modelo?
Camila: O relatório da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, que aplica o Pisa] aponta que somos o país em que há mais desigualdades nas oportunidades de ingresso e chama a atenção para um modelo educacional que está particularmente focado na lógica de mercado. Essa é uma realidade que se expressa no Chile. Efetivamente, não somos um modelo exemplar. Temos um modelo de 30 anos que fracassou ao perpetuar a desigualdade, a má qualidade do ensino, a falta de oportunidades e a frustração. Dizemos basta e queremos mostrar não apenas à sociedade chilena em em seu conjunto que o modelo é perverso, mas também ao mundo inteiro e particularmente à América Latina, para que não se guiem pela falsa expectativa que se tem em relação a ele.
ABr: Então a ideia que se tem de que a educação no Chile é de qualidade não é verdadeira?
Camila: Em absoluto. No sistema terciário de educação superior a Universidade do Chile não está entre as melhores, não é uma referência mundial entre as instituições públicas. A educação básica e média [equivalente à educação infantil, ao ensino fundamental e médio no Brasil] é uma vergonha. Antes do golpe militar, o nosso sistema tinha qualidade reconhecida e era público, era gratuito. Mas, depois da ditadura, a educação básica e média se municipalizou, isso produziu uma alta segmentação socioeducativa, má qualidade, problemas de financiamento. E na educação superior também, ampliou-se a matrícula no setor privado sem nenhum tipo de regulação e o sistema público ficou subfinanciado. Isso foi deteriorando significativamente a qualidade e a visão institucional da educação como bem público. O Chile na verdade não é um exemplo de modelo educacional. O Estado não foi responsável e o setor privado tampouco conseguiu garantir uma educação de qualidade.
ABr: No Brasil, o movimento estudantil não é capaz de mobilizar a sociedade pela causa com a força dos protestos que ocorrem no Chile. Por que na sua opinião as manifestações no seu país ganharam tanta força?
Camila: Eu creio que no Chile se vive um estágio social que pode ou não ter relação com o que se vive no resto do mundo. Particularmente no Chile, os movimentos sociais não conseguiram avançar nas demandas sociais. Os movimentos foram sendo comprimidos e acumularam uma frustração. De alguma forma, o país vive um descontentamento muito grande dos cidadãos em geral – e não só dos estudantes – que se acumulou por muito tempo. O que acontece é que no Brasil, pelo que sabemos, os movimentos sociais nos últimos anos conseguiram alguns avanços e isso permitiu que de alguma forma não se acumule essa frustração. Ainda que as conquistas tenham sido pequenas, foram alcançadas. No Chile, não.
ABr: Em julho, o então ministro da Educação do Chile, Joaquin Lavín, que caiu depois do início dos protestos, esteve no Brasil para conhecer o modelo do Programa Universidade para Todos (ProUni), que distribui bolsas de estudo em universidades particulares a alunos de baixa renda. Você acha que seria uma alternativa interessante para o sistema de ensino chileno?
Camila: O problema no Chile não é de cobertura. Temos problemas de inequidade e acesso, mas a cobertura é bastante alta. Temos projeção para ampliar o atendimento, mas isso necessariamente tem que passar por critérios de equidade, permitindo aos setores mais vulneráveis que ingressem na educação. Isso se requer um sistema de financiamento que não gere endividamento para as famílias. Mas não é tão simples. No Chile, temos que ampliar a cobertura com critérios de equidade, mas também definir a institucionalidade [do sistema de ensino superior]. Porque muitos dos setores mais vulneráveis ingressam no ensino superior com apoio do Estado em instituições privadas que não têm garantia de qualidade nem de participação em organizações estudantis, não são pluralistas, não fazem pesquisa. Quando saem da universidade, por exemplo, esses estudantes não trabalham na área em que se formaram porque os cursos não têm conexão com o mercado de trabalho. Isso gera a frustração nas famílias. De alguma forma, o Chile precisa definir uma institucionalidade na regulação. O sistema privado não está regulado, é um sistema que lucra com altíssimas mensalidades e que é de má qualidade.
Edição: Juliana Andrade