Paulo Machado
Ouvidor da Agência Brasil
Brasília - A Agência Brasil publicou dia 17 de outubro duas matérias tratando da privatização das empresas estatais (*).
A forma como essa discussão foi apresentada aos leitores indignou o leitor e advogado Eloá dos Santos Cruz (**) que escreveu: “Refiro-me a matéria 'País tem 120 empresas estatais, 41 foram privatizadas nos últimos 20 anos', editada por essa Agência [...], particularmente no trecho em que diz: 'A privatização da Companhia Vale do Rio Doce, ocorrida em 1997, ainda causa polêmica. O principal argumento usado pelos defensores da reestatização da Vale é que a companhia teria sido vendida por um preço considerado abaixo do de mercado, US$ 3,3 bilhões. Hoje, a empresa tem capitalização de mercado de aproximadamente US$ 140 bilhões, com cerca de 500 mil acionistas em todos os continentes.'
A questão apresentada nesses termos simplificados, põe de lado o aspecto mais relevante a ser considerado. Esse aspecto é o atinente ao verdadeiro Interesse Público, que defendo ardorosamente, pois acredito ser possível praticar um governo voltado para o desenvolvimento, mas também baseado nos cinco pilares sinérgicos da Administração Pública, que são os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, tal como exigido na regra pétrea da Constituição Federal de 1988 (art. 37). Esses 05 princípios têm de ser praticados em conjunto, concomitantemente e é esse o desafio posto aos administradores competentes e probos, em especial no caso da CVRD. Quem estabeleceu o primado herético, segundo o qual a 'lucratividade', como manifestação externa de 'eficiência', pode se sobrepor à legalidade e à moralidade? Por que exaltar tanto os resultados financeiros bilionários de uma Empresa do porte da CVRD e ninguém se preocupar com a legalidade do que se fez com ela? Até a razão social da mineradora foi alterada, em frontal desobediência à letra e ao espírito de item específico do edital regulador da venda. A Lei n° 8.666/1993 impõe estrita obediência e o Edital PND-A-01/97 ainda depende de julgamento pelo Poder Judiciário.
Cabe lembrar as palavras proféticas de FRANCISCO FRANCO DE ASSIS FONSECA, ex-Superintende da DOCEGEO (empresa especializada em pesquisa geológica então coligada no Sistema CVRD), quando disse dois meses ANTES do leilão de ações na terça-feira 06/05/1997: 'A lucratividade da Vale aumentará muito no futuro próximo, devido a dois fatores: liquidação da dívida de Carajás e abertura de grandes e lucrativas minas de ouro. Esse aumento de lucratividade, resultado de décadas de administração competente sob regime estatal será mentirosamente atribuído à privatização. Economistas bisonhos louvarão as virtudes da privatização e apresentarão a Vale como exemplo. A economia deixou de ser uma ciência séria e se transformou em uma numerologia enganadora, a serviço de interesses dominantes.'
Essa declaração foi divulgada, entre outros, pelo jornal Diário do Pará (edição de 23/02/1997, página A-2), reproduzida em editais publicados em Diário Oficial no Rio de Janeiro, por ordem do Juiz da 17ª Vara Federal/Rio, em 18/04/1997, e lembrada no meu Blogue MUÇUNGÃO (http://www.alafin.zip.net), Pêsames de aniversário do 'day after', postado em 06/05/2007.
O silêncio ensurdecedor da mídia em geral e o 'faz-de-conta-que–a-lei-não-existe' conspira contra os opositores da transferência da CVRD ao exclusivo domínio privado. Eu não luto pela 'reestatização', mas sim pelo reconhecimento da nulidade absoluta da venda em 06/05/1997, porque ilegal, promovida com gravíssimas irregularidades na imprescindível avaliação prévia do acervo da sociedade de economia mista federal, cabendo a volta à situação anterior e, se isto for impossível, indenização pecuniária ao Estado Brasileiro, com base no artigo 182 do Código Civil em vigor.”
A Agência Brasil respondeu: “Agradecemos a mensagem do leitor. A Agência Brasil não entrou no mérito da legalidade do processo de privatização da Vale. A matéria procura dar uma visão ao leitor sobre o processo de privatização e as empresas envolvidas na época. Agradecemos as observações feitas pelo leitor sobre o assunto.”
Na matéria em questão encontramos opiniões contra e favor das privatizações, mas apenas do ponto de vista econômico-financeiro. O “Interesse Público”, como lembra o autor da demanda, não aparece. Um exemplo, é a maneira como foi tratada a privatização da Telebras: “A privatização do setor de telecomunicações foi uma das que mais alteraram a vida da população brasileira. O sistema Telebras, que envolvia 27 empresas de telefonia fixa e 26 de telefonia celular, foi privatizado em 1998. Segundo a Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil), desde que as operadoras privadas assumiram a prestação de serviços de telefonia, a oferta cresceu 703% e o número de aparelhos ultrapassou o número de habitantes do país.” Apesar dos números apresentados serem significativos, a qualidade dos serviços e o seu preço, são discutidos superficialmente na matéria da ABr, deixando muito a desejar, haja vista o número de reclamações dos consumidores e as comparações feitas por especialistas entre sistemas de telefonia de diversos países.
Como o leitor pode constatar, entre o oito e o oitenta, privatização ou estatização, existem pelo menos setenta e nove outras versões e aspectos que a imprensa pode abordar para qualificar esse debate e dar ao leitor informações que o libertem da armadilha de ter de decidir entre falsos dualismos – assim não caminha a humanidade.
Até a próxima semana.
(*) Uma amostra do amplo leque das conjunturas históricas nas quais as empresas estatais e mistas emergiram no Brasil, variações na sua razão social e sua composição acionária atuais:
Em ordem cronológica:
Banco do Brasil: Sociedade de economia mista. Fundado em 1808 por Don João VI para fornecer crédito à monarquia para arcar com as despesas correntes do corte e promover as transações mercantis. O capital inicial era de 40 acionistas portugueses.
Composição acionária atual:
Tesouro Nacional: 68,7%
PREVI (BB): 11,4%
Capital Estrangeiro: 6,9%
BNDESpar: 5,0%
Pessoas Físicas e Jurídicas (brasileiros): 3,9%
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN): Empresa privada de capital aberta (sob domínio de grupo familiar). Empresa estatal até 1993, quando foi privatizada. Fundada em 1941 por presidente Getúlio Vargas após um acordo diplomático entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos para construir uma usina siderúrgica para fornecer aço aos Aliados na Segunda Guerra Mundial e ajudar no desenvolvimento do Brasil nos tempos de paz.
Composição acionária atual:
Vicunha Siderurgia S.A.: 46,2%
(Holding dos ativos siderúrgicos do Grupo Vicunha, da família Steinbruch, que atua
também nas áreas têxtil e financeira)
Caixa Beneficente dos Empregados da CSN: 4,7%
BNDESpar: 2,7%
Capital Estrangeiro: 22,8%
Pessoas Físicas e Jurídicas (brasileiros): 20,8%
Petrobrás: Estatal de economia mista. Fundada em 1953, fruto de uma intensa campanha nacionalista no segundo governo do presidente Getúlio Vargas.
Composição acionária atual:
União: 32,1%
BNDESpar: 7,7%
Capital Estrangeiro: 37,5%
FMP-FGTS: 2,0%
Pessoas Físicas e Jurídicas (brasileiros): 20,8%
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD): empresa privada de capital aberto (sob domínio de grupos bancários). Empresa estatal até 1997, quando foi privatizada. Fundada in 1942 pelo mesmo acordo diplomático entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos que resultou na criação da CSN, dessa vez para explorar as reservas de minério de ferro em Itabira (MG) encampadas pelo presidente Getúlio Vargas do empresário norteamericano, Percival Farquhar, que as tinha adquirido em 1911. Na privatização, com financiamento subsidiado disponibilizado aos compradores pelo BNDES, o controle acionário foi adquirido pelo consórcio Brasil, liderado pela CSN do Grupo Steinbruch, que acabou abrindo mão das ações da Vale para aumentar sua participação na CSN.
Composição acionária atual:
Valepar: 33.3%
(A Valepar é uma holding formada pela PREVI, que detém a maioria das ações, a
BRADESpar, a BNDESpar, a Mitsui, que é uma “trading” japonesa, e o Banco
Opportunity)
BNDESpar: 5,5%
Capital Estrangeiro: 37,9%
FMP-FGTS: 2,2%
Pessoas Físicas e Jurídicas (brasileiros): 21,0%
Golden Shares (Ações Preferenciais) da União: 0,1%
(com poder de veto sobre mudanças na razão social, sede e objeto social da empresa)
(**) - O leitor é autor da Ação Popular 199739000108178, suspensa como várias outras por ordem do ministro Gilmar Mendes, na AC 2716, às vésperas do primeiro turno eleitoral. Segundo Eloá, a lei que criou a Vale do Rio Doce determina que a companhia distribua 15% dos dividendos aos acionistas e empregue 10% para formar um Fundo de Desenvolvimento Regional nos 13 estados em que atua. Para o advogado, a companhia não estaria repassando o dinheiro a esse fundo, e o Tribunal de Contas da União (TCU) teria calculado que a empresa deve a ele R$ 26,7 bilhões.