Eduardo Castro
Correspondente da EBC para a África
Kigali (Ruanda) - Hutus e tutsis ainda estão aprendendo a conviver sem medo em Ruanda. Alguns passos já foram dados desde o genocídio que matou 800 mil pessoas há 16 anos. Porém, o processo é lento e uma integração plena só virá - se vier – ao longo de muitas gerações. A opinião é do pesquisador suíço Roland Junod, da Escola de Altos Estudos de Assistência Social de Genebra.
"É preciso dar um passo de cada vez", diz Roland. Um dos primeiros, segundo ele, é reconhecer que uma etnia não vai conseguir exterminar a outra. Outro é saber que, se algo do tipo voltar a acontecer, os culpados serão punidos". Mais de 100 mil acusados já passaram pelos tribunais populares, mas inúmeros processos prosseguem.
As etnias Hutu e Tutsi conviveram integrados por séculos em Ruanda. Não há confirmação fatual sobre qual das duas chegou antes ou de onde vieram exatamente. Casavam entre si, tinham as mesmas língua (o kinyarwanda) e religião (adoravam o seu rei como deus).
Os tutsis, na maioria, eram pastores. Os hutus trabalhavam no campo. Fisicamente, os tutsis costumam ser mais altos e longilíneos. Os hutus têm o rosto mais redondo e são mais baixos. Com a miscigenação, resultante dos casamentos entre membros das duas etnias, ficou mais difícil identificar apenas pelos aspectos físicos quem pertence a cada um dos grupos
Com um rei tutsi, a etnia chegou à administração do país, mesmo sendo minoria. O grupo acumulou poder e riqueza. Em meados do século 19, os chamados "estudos raciais" tinham grande repercussão na Europa e as pesquisas do inglês Jonh Hanning Speke defendiam que africanos de pele mais clara e mais altos - descendentes de abissínios e, segundo a Bíblia, da linhagem rei Davi -
tinham mais capacidade intelectual. Em Ruanda, esse estereótipo pertencia aos tutsis.
Quando os europeus chegaram a Ruanda, no final do século 19 (inicialmente alemãs), encontram os tutsi no poder e se aliaram a eles, seguindo a lógica científica da época. Em 1934, os belgas, que receberam a colônia na redivisão ocorrida após a 1ª Guerra Mundial, exigiram que a etnia constasse dos documentos de identidade. O fosso entre hutus e tutsis só aumentou, provocando o ódio que resultou em um genocídio 60 anos depois.
Em 1994, hutus descontentes mataram o presidente Juvenal Habyarimana, embora ele pertence à etnia, por assinar um acordo com os opositores tutsis. O vácuo de poder foi ocupado pelo caos. Em pouco mais de três meses, cerca de 800 mil pessoas, a maioria tutsis - mas também hutus moderados - foram mortos por extremistas hutus e pelo Exército. Em julho, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), liderada pelo hoje presidente Paul Kagame, conseguiu dominar a situação. Os conflitos internos levaram 2 milhões de hutus a exilar em países vizinhos, como o Burundi, a Tanzânia e o Zaire (hoje República Democrática do Congo).
O suíço Roland Junod já esteve dez vezes em Ruanda desde o genocídio. Para ele, o país se convenceu sobre a necessidade de um pacto pela convivência. "Reconciliação é uma decisão política." Mas não se deve esperar, assinala, por um "heroísmo ético" das vítimas, perdoando seus algozes. "Como perdoar quando você perdeu sua família e suas crianças foram violentadas?"
O discurso do governo passou a ser o da "unidade nacional". O que é considerado ameaça é respondido severamente. Nas eleições presidenciais do último dia 9, dois dos possíveis adversários do presidente Paul Kagame não conseguiram registrar suas candidaturas, sob a alegação de "pregarem a ideologia que levou ao genocídio". Isso foi interpretado por grupos de direitos humanos como uma tentativa de calar a oposição.
Janvier Ndahayo, 35 anos, é taxista em Kigali. A mulher dele, Uwicyeza Frola, 32, está no primeiro ano da faculdade de administração. Ambos votaram pela reeleição de Kagame por causa da economia, das oportunidades criadas para as mulheres e da segurança. "O governo diz que não há mais etnias. É coisa do passado. Concordo. Está melhor agora", comenta Janvier. Ao ser pergunta se é da mesma etnia do taxista, Uwicyeza olha para ele, sorri e repete: "Hoje em dia não há mais etnias".
Uwicyeza é filha de uma mulher tutsi e um homem hutu. Na época do genocídio, fugiu para o interior por dois meses. Janvier era militar em 1994. Ambos evitam falar sobre o genocídio. "Não se lembra de nada", diz Janvier. “Só sei que perdi mais de 50 parentes em poucos dias." O assunto genocídio nunca foi tocado nas conversas do casal, que não se conhecia em 1994, ou com os filhos, de 4 e 7 anos. "Não penso nem falo disso. Quando passa na televisão, desligo", afirma Uwicyeza. "As crianças não precisam saber sobre como foram aqueles dias em muita gente morreu."
De acordo com Roland Junod, é comum os ruandeses não quererem falar do passado. "Tenho duas alunas muito amigas, uma hutu, outra tutsi. Até dividem um quarto. Ajudam-se em tudo. Mas nunca, de jeito nenhum, falam sobre o que aconteceu. Isso mostra que já possível a boa e segura convivência, mas não vai além disso.”
Edição: João Carlos Rodrigues