Residências terapêuticas valorizam autonomia de ex-internos de hospitais psiquiátricos

28/06/2010 - 18h24

Luana Lourenço e Lisiane Wandscheer
Enviadas Especiais

Goiânia e Porto Alegre - Em uma rua simples da periferia de Goiânia, uma casa só chama a atenção pela imensa árvore na entrada, que faz sombra até para a vizinhança. Nela moram sete ex-internas de hospitais e clínicas psiquiátricas.

A residência Beija-Flor é uma das 564 unidades dos serviços residenciais terapêuticos, criados a partir de 2001, com a sanção da Lei nº 10.216, que instituiu a reforma psiquiátrica no Brasil.

As casas, que abrigam até oito pessoas, recebem pacientes que viveram muitos anos internados em instituições psiquiátricas e que, com o fechamento dos leitos, ficaram sem ter para onde ir ou a quem recorrer, sem vínculos familiares ou territoriais.

Para Maria de Deus Matos, a Beija-Flor é a primeira casa de seus 54 anos de vida. Na memória, as lembranças ainda são amargas, dos anos vividos em manicômios e clínicas particulares. Quando fala sobre as diferenças entre os hospitais e a vida na casa, Maria lembra um hábito aparentemente simples, um banho de chuveiro.

“Lá era diferente, amarravam a gente, batiam na gente, a gente tomava banho com aquele cano de chuveiro. Com água fria, gelada mesmo, iam dando tapa, amarrando a boca da gente. Agora é com xampu, tem creme, cortam o cabelo se a gente quiser, pintam o cabelo”, compara.

A terapeuta ocupacional e supervisora técnica da residência, Carlene Soares, conta que a mudança de ambiente estimula a reconstrução da convivência, a busca da autonomia e a volta de valores perdidos no anonimato dos hospitais psiquiátricos.

“As pessoas chegam aqui e precisam reconstruir seus laços, não só os afetivos, mas os familiares, os sociais. E também reaprendem a interagir com o ambiente. Muitas pessoas aqui passaram anos sem ver um sabonete. Você entrega um frasco de xampu e ela joga inteira na cabeça”, explica.

Apesar das experiências positivas, os serviços residenciais ainda não têm alcance nacional. Não há uma residência terapêutica em toda a Região Norte, por exemplo. O Ministério da Saúde transfere a responsabilidade para os gestores municipais. “A velocidade do processo de implementação de serviços de base territorial depende muito do comprometimento dos gestores locais”, disse, em entrevista por e-mail, o coordenador de Saúde Mental do ministério, Pedro Gabriel Delgado.

Na lista de dificuldades do serviço residencial terapêutico também estão a falta de capacitação para os cuidadores, que se revezam para acompanhar os pacientes durante 24 horas, e problemas com a locação dos imóveis, responsabilidade das prefeituras.

Em Porto Alegre, 27 casas amarelas formam o residencial terapêutico Morada São Pedro, onde vivem 49 pessoas. Antes, elas moravam no hospital psiquiátrico que ficava no terreno ao lado. As residências ficam perto da Vila do Cachorro Sentado, local marcado pela violência e pelo tráfico.

Segundo a fisioterapeuta Estela Maris, que trabalha há sete anos no residencial terapêutico Morada São Pedro, a convivência dos moradores com as pessoas da vila gerou preconceito dos dois lados. “Lá se encontraram dois polos de exclusão: o do pobre e o do louco”, afirma.

De acordo com Estela, a convivência se tornou mais integrada aos poucos. “Hoje há uma relação de cuidado e cumplicidade entre alguns moradores das casas e da vila.”

Para o casal de moradores João Airton Spíndola e Andréa Beatriz da Silva, ex-pacientes do Hospital São Pedro, entretanto, a vida no local é difícil. “Ninguém nos respeita, as pessoas ficam fumando, bebendo e fazendo bagunça na rua. Nós queríamos conseguir uma casinha para morar sozinhos”, diz Spíndola.

A Morada São Pedro é vinculada diretamente ao hospital. Atualmente, é mantida com recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) destinados ao estado. Profissionais de saúde que trabalham no local defendem que o repasse seja feito diretamente ao município para que haja autonomia orçamentária.

 

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo