Daniel Mello
Repórter da Agência Brasil
São Paulo - Apesar de morar desdeque nasceu na Vila Mangalot, na zona oeste da capital paulista, VeraLúcia Martins, de 57 anos, não sabe dizer se o bairro teve origemem um quilombo. A vila, que é um bairro do distrito de São Domingos, é umadas três possíveis comunidades quilombolas existentes no perímetrourbano da cidade. A possibilidade começou a ser estudada em maio, pormeio de convênio firmado entre a prefeitura da cidade e oInstituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp).
“A equipe técnica está ouvindopessoas do bairro, colhendo depoimentos e também buscando dados emcartórios sobre dominialidade [propriedade, gestão] dessa área, que pode ter abrigado umquilombo”, informou o diretor executivo do Itesp, Gustavo Ungaro. Oinstituto já reconheceu 24 áreas quilombolas no estado, das quaisseis foram tituladas.
As lembranças mais antigas de VeraLúcia sobre o início da Vila Mangalot remetem a sua infância enada dizem sobre escravidão. Ela quase não se recorda das poucashistórias contadas por sua avó, Maria Luiza. Originária dePiracicaba, no interior de São Paulo, Maria Luiza foi a primeira dafamília a se estabelecer na região. Já falecida, ela foi uma dasbeneficiadas pela Lei do Ventre Livre, que declarava livres os filhosde escravos nascidos depois de 28 de setembro de 1871.
Os relatos sobre o possívelquilombo, uma parte importante da investigação, parecem estar setornando mais escassos. Moradores da vila ouvidos pela AgênciaBrasil informaram que a comunidade perdeu, recentemente, váriaspessoas mais idosas, como dona Brasília, dona Teresa e donaConceição, detentoras de parte da memória do bairro.
Para Simone Martins, de 38 anos,filha de Vera Lúcia, a formação de seus bisavós e trisavósdificultou a passagem do conhecimento de uma geração para outra.“Quando eles vieram para trabalhar com as famílias, não se via,não se ouvia e não falava, Trabalhava-se somente", lembrou.“Eles viviam em uma posição em que nem questionavam. A[necessidade de] sobrevivência era maior do que oquestionamento.”
Simone diz que foi sua geração,por ela definidade como a terceira após o fim da escravidão, quecomeçou a questionar tanto a posição social dos negros quanto aspróprias origens.
No caso do quilombo que teria dadoorigem à atual Vila Mangalot, a hipótese mais provável é queescravos em fuga ou recém-libertados de fazendas do oeste paulistatenham migrado para a região em busca de emprego. Segundo ahistoriadora da Universidade de São Paulo(USP) Maria Helena Machado,esses negros se fixavam “nas periferias, já que eram muito poucotolerados pelas autoridades”.
Na área existia, entre outrasfazendas, a propriedade que Domitila de Castro, a marquesa de Santos,herdou do marido, Rafael Tobias Barreto. As terras haviam sidocompradas por Barreto dos descendentes do coronel Anastácio deFreitas Troncoso. De acordo com Maria Helena, existem indícios deque, tanto na fazenda da marquesa quanto em outras propriedades daregião, havia trabalho escravo.
Esses fatos conhecidos são apenas oponto de partida para recuperar os vestígios da possível existênciade um quilombo no lugar. “Esse bairro em que moramos era subdivisãode fazenda. A história mesmo nunca foi esclarecida para nós”,ressaltou Simone Martins.
De acordo com Maria Helena, casofique comprovado que na região da Vila Mangalot ex-escravos fundaramuma colônia de “modo de vida comunitário”, de maneiradiferenciada da “comunidade abrangente”, os moradores da áreapoderão reivindicar a remanescência de quilombo.
No entanto, o diretor executivo doItesp destacou que “a concordância das famílias é fundamental.Se as famílias não tiverem o reconhecimento de que sãodescendentes de escravos, de que são remanescentes de quilombos, nãohá processo de reconhecimento, muito menos de titulação”.
Se, após os estudos, o Itespreconhecer a região como remanescente de quilombo, as famíliasdescendentes dos ex-escravos poderão receber o título depropriedade comunitário da área. O título pode ser expedido pelopróprio Itesp, ou pelo Instituto Nacional de Colonização e ReformaAgrária (Incra), caso haja necessidade de desapropriações.
Gustavo Ungaro explicou que áreaquilombola em área urbana “não é a regra” – normalmenteesses locais estão no meio rural. Mas, em alguns casos, a expansãourbana acaba englobando regiões que antes eram imóveis rurais.