"Políticas de direitos humanos entraram em recesso", alerta pesquisador

16/03/2007 - 1h40

José Carlos Mattedi
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Será divulgado hoje (16) o 3º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos (CTV), com 581 páginas.O levantamento foi coordenado pelo professor Paulo de Mesquita Neto. Doutor em Ciências Políticas, formado pela Universidade de Columbia (EUA), ele trabalha na USP desde 1995, tendo como área de pesquisa as instituições democráticas e as políticas públicas (direitos humanos, segurança pública e justiça).Paulista, 45 anos, trabalhou no Instituto de São Paulo Contra a Violência, e atualmente desenvolve também projeto de pesquisa sobre políticas de segurança pública e direitos humanos na Organização dos Estados Americanos (OEA). Nessa entrevista à Agência Brasil, Mesquita fala sobre as políticas públicas de direitos humanos e as áreas mais críticas. Sugere uma avaliação constante das ações do governo e defende espaço para a participação da sociedade civil. Agência Brasil: Qual a avaliação sobre os resultados desse relatório?

Paulo Mesquita Neto: O relatório cobre o período de 2002 a 2005. A conclusão que chegamos é que nesse período as políticas de direitos humanos entraram em recesso no país. Foi uma conjunção de fatores, tanto do governo federal como dos governos estaduais, sem exceção, que levou a uma desatenção no setor. Uma série de políticas e programas que estavam iniciando e deveriam se expandir, a partir do final dos anos 90, foram enfraquecidas. Houve redução de investimentos e de apoio aos programas de direitos humanos. Foi, então, um período de recesso na área. Muito dos problemas de agravamento de crimes, de violência e de impunidade decorrem dessa desatenção.ABr: O relatório apresenta dados de vários setores. Se tivesse que apontar uma área, qual delas é a mais crítica no desrespeito aos direitos humanos no Brasil?Mesquita: Existem muitas áreas críticas. Os índices de mortes violentas continuam altíssimos, apesar dos esforços do governo para reduzir os números. Outra área problemática é a tortura de pessoas suspeitas de praticar crimes. Não é uma questão só de direitos humanos, mas para o bom funcionamento do aparelho de segurança e de Justiça. Se há uma polícia e um sistema prisional que pratica a tortura, isso não só demonstra uma série de problemas, mas também gera um sentido de impunidade. A terceira preocupação é o trabalho escravo. Apesar das políticas governamentais para o setor, não se resolve o problema.ABr: A impunidade é também um gerador de violência?Mesquita: Por trás dessa violência há duas questões: a impunidade e a falta de políticas públicas de prevenção. Há falta de vontade política para a garantia de direitos humanos no Brasil, além da falta de recursos. A essa falta de vontade política pode ser creditada as crises de segurança pública, que acontecem a toda hora. Na crise, tende-se a abandonar as prioridades dos direitos humanos e partir para uma linha de repressão mais dura, sem atentar para as conseqüências de longo prazo. E outro empecilho é a questão gerencial-administrativa das políticas de direitos humanos. O governo faz coisas sem saber exatamente os resultados, se são positivos ou negativos.

ABr: Há uma explicação para essa crescente onda de violência que vem aumentando a insegurança da população?Mesquita: As causas são históricas e estruturais. São problemas de desigualdade social, de uma cultura autoritária no estado e na sociedade, de uma falta de organização do poder público. Isso tudo dificulta a solução da violência e da criminalidade. Mas as soluções são de longo prazo. Agora, há ações do governo que contribuem para agravar ou para atenuar os problemas. São políticas de natureza mais repressiva e sem diagnósticos adequados, que têm conseqüências negativas no curto prazo. ABr: Há diferença entre a corrupção e a violência policial no Rio de Janeiro e em São Paulo?

Mesquita: O problema é grave nos dois estados. Os números da violência policial indicam que as mortes de civis por policiais no Rio são bem mais elevadas e preocupantes do que em São Paulo. E, particularmente, esse desdobramento das milícias cariocas com o envolvimento de policiais e ex-policiais, intensifica o problema da violência policial local. Em relação à corrupção, temos problemas nos dois estados.

ABr: O relatório afirma que o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) em São Paulo fortaleceu o Primeiro Comando da Cidade (PCC), mas não diz o porquê. Qual foi a razão?Mesquita: Se o sistema penitenciário não é bem administrado, pessoas que passam pelo regime acabam sendo reconhecidas como presos de uma importância maior. Isso fortalece determinadas lideranças, pois dentro dos presídios permanecem os grupos criminosos que continuam organizados apesar de suas lideranças estarem no RDD. Então, a passagem de presos por esse regime acaba dando a eles um status que outros detentos não tem. É um problema da forma como o RDD é aplicado. É visto pelo sistema como forma de punir, mas é visto pelos encarcerados como uma forma de legitimação da própria autoridade.

ABR: Segundo o relatório, aumentou a violência no Centro-Oeste diante das invasões de terras indígenas e devido a expansão do agronegócio, e o poder público tem se mostrado incapaz de garantir a vigência da lei. Estamos ainda numa época de “terra de ninguém”?Mesquita: Houve, nos últimos anos, um esforço do governo em resolver problemas de conflitos agrários, mas, ao mesmo tempo, houve um esforço muito maior para expansão do agronegócio. Toda política que tem um viés de desenvolvimento econômico sem uma preocupação social e ambiental, produz esse tipo de conseqüência: intensificação dos conflitos e degradação do meio ambiente. A prioridade que se deu a um lado teve reflexos negativos no outro.ABr: Qual o passo imediato que poder público deve tomar para conter essa onda de violência e de desrespeito aos direitos humanos no país?Mesquita: Uma questão fundamental para o governo é ter um sistema de informação e de diagnóstico, de monitoramento e de avaliação das conseqüências de suas políticas públicas em qualquer área. A partir do momento que tiver um sistema adequado, ele vai começar a perceber que determinadas políticas não estão produzindo os resultados esperados. Para montar esse sistema de avaliação, ajudaria muito se o governo abrisse à colaboração da sociedade civil. Esse é um passo que seria importante. Poderíamos, na segurança pública, atingir resultados tão positivos quanto os da redução da inflação. ABr: Com a violência e a impunidade reinantes no país, qual a sua previsão de futuro a partir desse relatório?Mesquita: É difícil fazer previsões. No longo prazo, na medida em que as situações econômicas e sociais do país melhorarem e tivermos um processo de desenvolvimento mais acelerado e distributivo, tende a contribuir para a redução da violência e da criminalidade. No curto prazo, vai depender muito da prioridade que o governo der a políticas que efetivamente incorporarem os direitos humanos como uma questão fundamental e positiva de políticas públicas, e não como um obstáculo a implementação de ações de desenvolvimento econômico e social.