Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Leia a seguir a segunda parte da entrevista com o antropólogo Marcos Otávio Bezerra. Autor de livros como “Corrupção – Um Estudosobre o Poder Público e Relações Pessoais no Brasil”, Bezerra é hoje professorno departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e participantedo Núcleo de Antropologia da Política, que, desde 1997, reúne pesquisadores deseis universidades federais.Nostrechos abaixo, ele alerta: várias empresas, ainda na ativa, atuam deforma semelhante à Planam, investigada por superaturamento na venda deambulâncias, fraude em licitações e suborno de funcionários públicos eparlamentares. Agência Brasil – Se o termo "quadrilha" não é adequado, o que seria melhor para descrever esse esquema das "sanguessugas"?Bezerra – Eu não sei se arriscaria um termo, mas os recursosliberados vão ser mais ou menos partilhados pelas várias pessoas envolvidas noCongresso, no Executivo, nos municípios, nas empresas privadas, em uma rede.São pessoas que estão dentro e fora do Estado, que estão de alguma formaatuando nesse espaço que existe dentro do Estado que o vincula à sociedade.Talvez mais que ‘quadrilha’, que é muito fechada, essa idéia da rede ilustre melhoro que está se passando. Os exemplos mostram exatamente o contrário de que o problema seja um grupo:a todo momento estão aparecendo novas empresas. Essa Planam certamente não é aúnica, deve haver outras. Eu não tenho informação sobre isso, mas provavelmentehá outras que estão atuando em outros ministérios ou mesmo dentro do Ministérioda Saúde e que estão envolvidas nesse processo de liberação de recursos.ABr - Deve haver várias ‘Planams’, então?Bezerra – Com certeza devem existir várias ‘Planams’ atuando nestemomento e que estão lá, talvez, quietinhas um pouco, mas que continuarãofazendo seu trabalho. Vale a pena fazer uma reflexão sobre algumas coisas: deque modo o sistema político está funcionando que faz com que esse tipo deprática se perpetue, quais são as condições atuais que fazem com que esse tipode empresa consiga montar um esquema como esse, por que isso de algum modomobiliza os parlamentares, por que os parlamentes também correm o risco de seenvolver numa história dessas, o que está em jogo quando eles estão envolvidos,além, obviamente, do interesse puramente econômico.ABr – Se as emendas são legítimas, o mesmo não se pode dizer dascomissões pagas aos deputados, por exemplo. Como elas entram nesse quadro?Bezerra – É claro que é completamente irregular fixar um valor, emtermos percentuais, daquilo que é liberado, para os parlamentares seapropriarem. As próprias empresas também são pagas em comissões, as negociaçõesdelas muitas vezes passam por essas comissões após a execução orçamentária, ehá algumas que recebem das prefeituras, até onde eu sei, até mesmo mensalmente.Elas estão contratadas pelas prefeituras para ficar trabalhando no sentido deobter recursos para elas, recebem para esse tipo de trabalho. Agora, de fato, o que é completamente inadmissível (não sei se há algumacoisa admissível nesse processo todo) é que acaba virando uma fonte de recursoseconômicos dos parlamentares. Muitos deles alegam até que essa é uma forma deconseguir recursos para financiamento de campanhas. Sabemos que hoje umdeputado gasta em torno de R$ 1 milhão para fazer sua campanha. Se você somar osalário dele durante quatro anos, é difícil chegar a R$ 1 milhão. Falta, entãoo dinheiro tem que vir de algum lugar.
Esses custos altíssimos que ocorrem em torno dascampanhas eleitorais são sem dúvida um fator importante do ponto de vista demotivar essa corrida atrás de recursos que viabilizem as campanhas eleitorais,e essa sem dúvida está se apresentando como uma fonte possível. É como no casodos Anões do Orçamento: as entidades de assistência social que estavamenvolvidos também eram uma forma de desviar dinheiro e obter recursos que, emparte, iam para as campanhas. Claro que muita coisa também foi convertida empassagens aéreas, carros, em outros tipos de benefícios. ABr – Quer dizer, chegamos novamente às eleições. De alguma forma, oprocesso eleitoral representa um ponto central dentro desse processo?Bezerra – Com certeza. Primeiro, porque em boa parte dessa relaçãodos parlamentares com os municípios está diretamente envolvida a questão dascampanhas eleitorais, seja pela reeleição, seja para outros cargos que estejamem jogo, posteriormente à prefeitura, governos estaduais. Política não existesó no período eleitoral. Durante os quatro anos de exercício dos mandatos, aspessoas estão fazendo investimentos em função de seus projetos eleitorais. Essa relação com as administrações municipais e estaduais muitas vezes épautada por essa preocupação com o apoio eleitoral que os parlamentares podemvir a ter das lideranças municipais, prefeitos, vereadores, governadores,deputados estaduais. Então, a eleição é alguma coisa que não sai da cabeçadessas pessoas. Se há, em certa medida, o interesse econômico em torno desse processo, eletambém não pode ser descolado dos interesses propriamente eleitorais, porque,para um administrador municipal, para uma liderança municipal é importantecontar com uma ambulância para prestar serviço no município. A própriareputação, o capital político de uma liderança municipal está associado àquiloque ela pode proporcionar para a população ou para o grupo com o qual elatrabalha de forma mais próxima. ABr – A adoção de medidas para forçar a diminuição dos custos dascampanhas tem sido apontada como uma das maneiras de combater asirregularidades no processo eleitoral. Esse foi, por exemplo, o objetivodeclarado da lei 11.300, a minirreforma eleitoral. A solução passa por aí?Bezerra – O custo da campanha é sem dúvida um motivador. É umelemento importante porque, atualmente, dificilmente as pessoas fazem campanhassem uma quantidade significativa de recursos. Regras que coloquem o conjuntodos candidatos em condições idênticas de disputar essas funções podem vir acontribuir para a minimização desse tipo de situação. Há de se pensarseriamente sobre os efeitos que os aumentos dos custos eleitorais de fato estãotendo no modo como os parlamentares vão exercer os seus mandatosposteriormente.ABr – As propostas que vêm sendo apresentadas são suficientes, sãoeficientes?Bezerra – Com certeza, não. Os parlamentares não deixaram que asmedidas mais sérias fossem de fato aprovadas, então o que se fez foi mínimo.ABr – O problema do caixa 2 nas campanhas também tem sido apontadocomo estrutural por vários políticos e autoridades do Judiciário. O que issoexpressa com relação à realidade política brasileira?Bezerra – A questão é: isso será coibido de que maneira nas próximaseleições? Que tipo de dispositivo jurídico ou político de fato existe, ou deque modo a sociedade pode exercer um controle maior sobre esse financiamento docaixa 2? Talvez hoje não exista um dispositivo jurídico ou político que impeçaisso, e acho que nós vamos enfrentar essa situação novamente. Quanto mais transparência, quanto mais conhecimento você tiver a respeitodisso, mais a sociedade tende a ganhar, sobretudo do ponto de vista daexplicitação de quem são aqueles que fazem as maiores contribuições, e asimplicações que isso tem do ponto de vista das implementações políticas aposteriori. Quer dizer: as pessoas financiam, você tem o caixa 2, e depois?Como isso se desdobra em termos das políticas que estão sendo implementadaspelos parlamentares ou pelo governo que sai vencedor das eleições? ABr – Que tipo de conseqüência se percebe?Bezerra – Há uma demanda enorme por parte da população por serviçospúblicos. Então, esse processo de compra superfaturada, por exemplo, de umaambulância, em que parte do recurso desaparece no meio do caminho, representauma violência tremenda, no que diz respeito ao atendimento das necessidadesdessa população que depende efetivamente desses recursos. É a população mais necessitada, sobretudo, que está sendo desapropriada deum direito, de um serviço que o estado poderia proporcionar. É de uma crueldadetremenda que se faça política em cima de uma população que está totalmentesujeita à necessidade mais premente da sua vida.(segue...)