Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Marcos Otávio Bezerra não faz reportagens, faz etnografias,como são chamados os estudos produzidos pelos antropólogos em contato intenso eprolongado com uma dada realidade local, seja uma aldeia indígena, um quilombo,um assentamento rural, um prédio da zona sul carioca, ou o Congresso Nacional. A experiência de Bezerra entre os parlamentaresproduziu retratos reveladores da dinâmica da relação de deputados e senadores com liderançaslocais, em meio a interesses como os do Executivo e dos mais diversos gruposeconômicos. Em entrevista à Agência Brasil, o antropólogo lembrou que a Planam, empresa que é pivô doescândalo das "sanguessugas", tem origem em um desses “escritórios” deintermediação para liberação de verbas para os municípios. Leia a seguir algunstrechos retirados dos estudos de Bezerra sobre essa realidade dos “escritórios”e sua relação com parlamentares e seus assessores, prefeitos e funcionários deministérios.Do livro “Em Nome das Bases – Política, Favor e Dependência Pessoal” (1999)“Mas para que a‘área governamental solte os recursos’, acrescenta, ‘os prefeitos precisam deum lobby estrutural’. É esse trabalho, denominado de ‘lobby estrutural’, queele diz realizar. (...) A seu ver, há duas formas de ‘pressionar’, ‘forçar’ aburocracia. Primeiro, ‘por bem’: ‘presentes, agrados, lembranças, dinheiro’.Segundo, por ‘mal’: ‘passando por cima daquela pessoa’, ou, se possuirarticulações em cargos superiores, ‘removendo-a’ da função”.
(Entrevista com um lobista responsável por ‘escritório’ emBrasília que é contratado por prefeituras para garantir a liberação de verbasfederais, como as emendas ao Orçamento)
“O assessor atuacomo um elo de ligação entre a atividade do escritório e a atuação do parlamentar. Arlindo, assessor de umsenador, refere-se a esta situação ao lembrar que a ‘corrupção’ é algo presente no trabalho de acompanhamentoe liberação de recursos. Sobre como osassessores dos parlamentares são abordados pelos lobistas, diz: ‘Esses lobistas chegam assim: ‘Você trabalhapara qual parlamentar?’ Aí eu falo: ‘Eu trabalho para o fulano de tal’. Ele dizassim: ‘Pois é, olha, nós estamos aí com um negócio bom, uma obra boa, de ummunicípio, você não quer ajudar a gente não? Você passa a idéia para o seuparlamentar para ele se envolver com isso, nós vamos te dar uma comissãoassim’. Então, esses caras, eles tentam te corromper a toda hora’. E acrescentao assessor, é ‘fácil ser corrompido nesse meio’, uma vez que, comparativamenteaos salários pagos, as vantagens oferecidas são grandes.”
“Desse modo, como observa Isaías (lobista entrevistado),é importante as pessoas serem simpáticas, de bom relacionamento e agradáveis.Devem procurar agradar autoridades e funcionários, o que é feito, por exemplo,através da doação de pequenas lembranças. No início, acrescenta, ‘não precisatrabalhar com dinheiro. O dinheiro pode ser depois, futuramente’. Segundo oinformante, somente após o encaminhamento de alguns processos é que o dinheiropode começar a fazer parte da relação. (...) Dito de outro modo, a relaçãoamigável serve como base para as práticas percebidas como corruptas. (...)Referindo-se ao que ocorre quando a relação envolve dinheiro, informa Isaías:‘Você liga e manda. Como você viu hoje. Eu quero isso. Porque a coisa mudou defigura. Não é mais presentinho. É tanto para cá, tanto para lá. A conversa ébem escrachada, escancarada. Quanto é que é meu? Quanto é que é seu? É tanto etanto. Então tá bom!’ Como observa o informante, pude acompanhar parte de umaconversa que ele manteve durante alguns minutos com um funcionário doMinistério da Saúde a quem ele designou, em outro momento, como o ‘meu homem noministério’. A conversa ocorreu em seu escritório, uma sala, sem qualqueridentificação externa, de um prédio localizado na zona comercial de Brasília.(...) Avinculação entre a liberação dos recursos e as relações políticas, maisprecisamente as eleições municipais, surge logo nos primeiros diálogos quandoIsaías pergunta sobre ‘quais eram as chances desse processo sair’. Seuinterlocutor responde que eram grandes e faz menção ao fato de que era ano deeleições (municipais). (...) Ao mencionar os funcionários que recebem dinheiro,observou, como a confirmar o que eu havia acabado de presenciar, que elespassam a trazer informações sobre os programas que vão ser abertos e as áreasque serão beneficiadas. Após a menção a um novo negócio que estava sendoencaminhado por solicitação de uma pessoa de Belo Horizonte – que ‘não sabe ocaminho das pedras’ – de um favor junto ao Incra que lhe havia sido solicitadopor um conhecido, há uma discussão a respeito de pagamento. Isaías paga uma parcela,alega ‘problemas de caixa’ e pede que R$ 100 deixem para ser pagos na semanaseguinte. O funcionário concorda, mas argumenta que estava precisando comprararroz e feijão para casa.”
“Os escritórios instituemduas formas principais de remuneração. Primeiro, a ‘comissão’. Nesse caso, ovalor a ser pago é definido em função da aplicação de um percentual (5%, 10%,15%) ao valor do recurso liberado nos ministérios. É um pagamento realizado,como se diz, ‘em cima do serviço resolvido’. Segundo, um pró-labore mensal.Nesse caso, o cliente acerta com o escritório o pagamento de um valor mensalpela contratação de seus serviços. O pagamento na forma de comissões apresentaalguns inconvenientes para as prefeituras e escritórios. O valor da comissãonão pode ser pago com dinheiro repassado pelo governo federal, uma vez que issocaracteriza, segundo o direito administrativo, ‘intermediação de verbas’. (...)Uma solução, nesses casos, foi mencionada por Isaías: ‘Você tem que acionar osamigos, pegar a prefeitura através do impostos que está sonegando. Você vai daro troco nela. Mas é um desgaste muito grande’.“
“Mas os ganhos dosparlamentares não são, em alguns casos, somente políticos. Uma parcela dosrecursos repassados aos municípios pode retornar para os mesmos em forma decomissão.“
“Um ex-prefeito e atualdeputado (PTB-RS) menciona em certa passagem da entrevista o modo comorepresentantes de escritórios se apresentavam: “Pede uma audiência, comparece ediz: eu tenho um escritório assim... e o sr. tem tanto em verba em tal lugar,nós queremos ver se é possível liberar e o nosso pagamento é 5%.”
Do artigo “O ‘Caminho das Pedras’: representação políticae aceso ao governo federal segundo o ponto de vista de políticos municipais”,na coletânea “Política no Brasil – Visões de Antropólogos” (2006)
“Durante seu mandato(1993-1996), um ex-prefeito de Veríssimo diz ter passado por esta experiência.Logo após assumir a prefeitura, afirma ter recorrido a um deputado federal aoqual havia concedido apoio. Ambos eram filiados ao mesmo partido e na condiçãode deputado estadual o parlamentar tinha assegurado vários benefícios para omunicípio. Exercia, contudo, seu primeiro mandato como deputado federal. Aospoucos, porém, o ex-prefeito constatou que o deputado, pelas dificuldades queapresentava para atender a seus ‘pleitos’, não tinha ‘expressão ‘, em Brasília.Assim, se afastou e recorreu a umdeputado filiado a outro partido, mas tido na região como um deputado ‘forte’.Voltou a se afastar, no entanto, alega o ex-prefeito, devido às cobranças decomissão que lhe foram feitas por assessores ligados ao parlamentar quando daliberação dos recursos.”
“Como mencionado acima,além da ‘compra de apoio’, os acertos de caráter econômico também se fazempresentes nas relações que vinculam os políticos com interesses na obtenção dosrecursos federais. O repasse desses recursos para os municípios e a suaaplicação em obras e programas governamentais têm se apresentado comooportunidades econômicas para que empresas, políticos locais e nacionais,paralelamente às suas atividades propriamente políticas, consigam obter ganhospecuniários; freqüentemente através de procedimentos que infringem osregulamentos oficiais e implicam a desconsideração a princípios éticos própriosao poder público.”
“Os recursos repassadosatravés desses acordos chegam a ser tidos como um problema para as prefeituras,uma vez que cabe às mesmas encontrar, como nos casos de ‘lavagem de dinheiro’,os meios para justificar as despesas que efetivamente não foram efetuadas.(...) A articulação de parlamentares com empresas de construção nos municípiosestudados é destacada pelo ex-secretário de obras ao descrever uma experiênciapela qual passou no gabinete de um parlamentar em Brasília: “Nenhuma empresa deprojetos especializada em arrancar verba de ministério se cria se não tiver portrás dela um parlamentar, não é qualquer um, um parlamentar forte. E algunsgabinetes que eu fui, dentro do próprio gabinete do deputado o cara te dá adica: ‘Olha, tem um cara aí que está arrancando o dinheiro. Ele é um cara bemrelacionado. Eu se fosse você procurava ele. Porque ele vai acompanhar o seuprocesso.”