Esquemas do tipo “sanguessugas” estão articulados à dinâmica eleitoral, diz antropólogo

04/08/2006 - 13h15

Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Pesquisador há mais de dez anos dos meandros da relaçãoentre parlamentares federais, prefeituras e lobistas, o antropólogo MarcosOtávio Bezerra alerta: considerar o caso Sanguessugas como o “maior dosescândalos” já registrado no Brasil ajuda a soterrar o debate sobre osproblemas estruturais do sistema político. A Planam, empresa investigada por corromper prefeitos eparlamentares e superfaturamento na venda de ambulâncias, lembra ele, é só maisuma, entre muitas. “Com certeza devem existir várias ‘Planams’ atuando nestemomento e que estão lá, talvez, quietinhas um pouco, mas que continuarãofazendo seu trabalho”, disse, em entrevista exclusiva à Agência Brasil.As articulações políticas que desembocam nas eleições,afirma Bezerra, estão na base dessa problemática. “Se há, em certa medida, ointeresse econômico em torno desse processo, ele também não pode ser descoladodos interesses propriamente eleitorais.”Autor de livros como “Corrupção – Um Estudo sobre o PoderPúblico e Relações Pessoais no Brasil”, Bezerra é hoje professor nodepartamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e participante doNúcleo de Antropologia da Política, que, desde 1997, reúne pesquisadores deseis universidades federais. Leia a seguir os principais trechos da entrevista,concedida por telefone.

Agência Brasil - O que essa situação investigada pela ComissãoParlamentar de Inquérito das Sanguessugas expressa, aos olhos de alguém queconhece de perto o sistema político?

Bezerra - Essa relação entre a atuação dos parlamentares na elaboraçãoorçamentária, a destinação de verbas orçamentárias para os municípios, aocorrência de licitações irregulares nos municípios para destinação de recursospara instituições ou para certas empresas em particular, nada disso é novidade.

Agora, se fala nessas emendas destinadas à compra deambulâncias como se fossem o novo grande escândalo, o maior dos escândalos. Euacho que não é. E me parece que é importante também não ficar a todo momentodiscutindo se esse é maior ou menor do que o que veio anteriormente. Seolharmos os mecanismos institucionais por meio dos quais essas irregularidadesestão sendo praticadas, vemos que há muita semelhança.

ABr – É possível comparar essa situação com outrosescândalos mais antigos que envolviam a elaboração do Orçamento, como a CPI dosAnões?

Bezerra – Eu iria até um pouco mais atrás. Se nósvoltarmos a 1988, durante o governo Sarney, foi montada a CPI da Corrupção,desencadeada em função de uma série de denúncias com respeito à liberação derecursos no Ministério do Planejamento. Os jornais estão cheios de informaçõessobre empresas de intermediação de verbas junto aos ministérios. Naquelemomento, nós tivemos informações sobre a montagem dessas empresas, que seapresentam como empresas de consultoria, com a preocupação de viabilizar aliberação de recursos, sejam emendas parlamentares ou recursos ministeriais,para as prefeituras.

A Planam foi inicialmente uma empresa de consultoria, issoestá nos jornais. Quer dizer, não estamos diante de um fato novo. Há muitasdessas empresas. Durante o período em que eu estive aí em Brasília, trabalhandojunto ao Congresso, fazendo pesquisa, eu visitei várias delas. Elas seapresentam como empresas de consultoria, mas são empresas de viabilização derecursos e se apresentam como escritórios, empresas que já estão de algum modoincorporadas à rotina da atividade política.ABr – Por que esse tipo de situação continua se repetindo?Bezerra – Exatamente pelo fato de estar assentado sobre o modo deexercício da atividade política, a concepção que os parlamentares e boa partedos agentes políticos tem a respeito da representação política. Quando nós estamosfalando de emendas orçamentárias elaboradas para fins de interesses municipais,trata-se de uma coisa extremamente legítima do ponto de vista dos agentespolíticos: o parlamentar destinar uma parte dos recursos lá para as áreas desua atuação.

Se não fizer isso, ele corre até mesmo risco, do ponto devista de suas alianças locais, de ser considerado um parlamentar ineficiente.Então, ele, em grande medida, se envolve nisso porque acredita que, ao fazerisso, de fato ele está atendendo aos interesses daquele que ele representa.

 ABr – Então, há uma questão local que determinaesse comportamento?

 Bezerra – Esse caso mostra muito essa relação entrea atuação do parlamentar no plano nacional e uma atuação que não é descolada emnenhum momento também dos seus interesses nos planos locais, que tem a ver como processo eleitoral. Esse é o lado estrutural do esquema. Não é só no plano nacional: seformos para as assembléias estaduais e as Câmaras Municipais, vemos que issonão é uma exceção. ABr – O que isso demonstra, então? Bezerra – Primeiro, mostra a força desse tipo deprática, uma espécie de quase naturalização. Segundo, se há um controle hojemaior do que ocorre no plano federal a respeito da aplicação de recursospúblicos, o mesmo empenho para que esses recursos sejam aplicados de modoidôneo nos planos estaduais e municipais não tem ocorrido. Pode-se falar numaespécie de descentralização da corrupção. A Planam precisava fazer uma negociação tanto junto aosprefeitos – negociando e apresentando as empresas queseriam as que participariam dessas licitações – como também precisava terpessoas dentro do ministério, e os parlamentares no Congresso. Quando aimprensa, de um modo geral, apresenta tudo isso que está acontecendo por meiode noções como as de “quadrilha” ou “máfia”, dificulta o entendimento do dado mais estrutural. Dá a impressão de que essas pessoastodas constituíram de fato um grupo e que, uma vez que ele sejaestirpado, tudo vai se resolver. Quer dizer, você localiza o problema no grupoe, não, nos elementos estruturais, não no modo como o sistema político estáfuncionando. Desde a CPI dos Anões, houve várias iniciativas bastantesignificativas no sentido de se coibir esse tipo de prática. Agora, o problemaque está acontecendo nesse caso não é na execução, é no momento que aprefeitura aplica os recursos que foram liberados. No princípio, todo oprocesso aparentemente estava lícito, a emenda foi apresentada dentro dasnormas, foi aprovada, depois houve a intervenção no sentido da liberação dessasemendas, e a emenda sai do custo previsto pelo Ministério da Saúde. A questão é lá no momento da licitação. Quer dizer, a emendapassa pelos canais normais, só que ela já está comprometida, digamos assim, temuma empresa que está promovendo essa licitação, essa empresa de algum modopatrocina essa emenda. (segue...)