Isabela Vieira
Da Agência Brasil
Brasília - Por conta de crimes como furto, tráfico de drogas e seqüestro-relâmpago, Rafael, 19 anos, e Gustavo, 15, foram parar em um lugar que dizem ser tão violento e sujo que consideram “um pedaço do inferno”: o Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje), a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) de Brasília (DF). Ambos passaram cinco meses lá, não sucumbiram ao desespero de alguns colegas – que, segundo contam, preferiram se suicidar a viver ali – e, por bom comportamento, foram transferidos para um regime de semi-liberdade.Os garotos, aqui apresentados com nomes fictícios, como todos as demais pessoas citadas, receberam a reportagem da Agência Brasil onde estão morando agora, uma casa ligada ao Centro de Desenvolvimento Social de uma cidade satélite de Brasília. Contaram como a mudança fez bem, gerando a perspectiva de uma vida mais digna e promissora. Para os dois, cumprir o restante da pena de três anos em regime de semi-liberdade permite pensar em ter emprego, terminar os estudos e, quem sabe, fazer um curso superior. “O governo deveria pegar o dinheiro que gasta nos Cajes e abrir uma escola boa, uma faculdade, por exemplo”, sugere um deles.A vida que os dois levam hoje está mais de acordo com a proposta do governo federal para o tratamento de adolescentes em conflito com a lei, representada pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Apresentado à sociedade recentemente, terá sua regulamentação debatida nos dias 9 e 10 de agosto, em Brasília.As primeiras referências dos adolescentes sobre os tempos de internação é chamar o local de “pedaço de inferno” e lembrar que alguns não agüentam esperar pelo fim da pena – que é de três anos no máximo.“Tinha gente que ficava tão apavorada que se matava enforcada com o lençol”. Mesmo os internos que eram mais valentes na rua ali ficavam mansinhos, dizem.Para eles, a falta de alimentação decente, a superlotação, os maus tratos e a ociosidade são os principais problemas da instituição. “Não fazíamos nada lá. No máximo uma pelada, um jogo de dominó na cela. De vez em quando íamos para a escola. Uma vez por semana no máximo”.Tais problemas serão detalhadamente expostos, baseados exclusivamente no relato destes personagens. A diretora do Caje e o secretário de Ação Social do Distrito Federal foram procurados pela reportagem, mas não se pronunciaram arespeito.Da violênciaOs socos, pontapés e tiros de borracha recebidos dos monitores ainda estão frescos na memória. “Eles batiam por nada”, dizem os garotos. “Tinha dia que machucava de verdade e a gente ficava sem ir ao médico. Uma vez fiquei três dias com o braço inchado. Quando me levaram ao hospital, descobri que estava quebrado”, lembra Rafael, que conta também a reação dos internos. “Outro dia os caras tocaram fogo lá porque tinha um menino precisando de remédios e os monitores não levaram.”Os insultos por parte dos socioeducadores, segundo eles, eram constantes. Mesmo assim, os adolescentes só se importavam mesmo quando o ultraje era contra alguém da família, o que “dava muita briga lá dentro.”Eles acreditam que muitas mortes fora do Caje são decorrentes do tipo de tratamento que os internos recebem. “Tem menino que sai para rua, encontra o monitor e passa fogo. Mas lá dentro o cara quebrava o moleque. Sei de um monte de história como essa”, conta Rafael, o mais falante.A cela dos castigos, “cubículo” onde ficam os adolescentes com mau comportamento, também é fonte de raiva dos garotos. “Quando a gente ia para lá ficava muitas vezes sem colchão, sem lençol e sem banho”. Na hora de sair, dizem, a claridade incomodava após tantos dias sem ver o sol. “Tinha gente que ficava tão branca que até desmaiava”.Da sujeiraGustavo, o mais novo, lembra que se incomodava muito com a falta de higiene. “A diretora dizia que dava papel higiênico, sabonete, sabão em pó, mas quem levava essas coisas para mim era a minha mãe. O boi [banheiro] às vezes entupia, ficava todo sujo, mas nem adiantava chamar os monitores”. Ele conta que os internos se organizavam para limpar a cela quase toda semana.Pior ainda eram os bichos, como baratas e ratazanas, que vinham parar no alojamento junto com a água imunda da rua em dia de enchente. Restava usar a criatividade. “A gente enchia garrafas de refrigerante de dois litros com água e arremessava até matar os bichos. Eram muito nojentos”, ressalta Rafael. Os dois contam também que muitos meninos pegavam doenças.Com essas e outras histórias, que incluem alimentação - sempre ruim - e acomodação – sete, onze pessoas onde em tese só cabem quatro -, eles não entendem como alguém pode sair melhor da instituição. “Você vai para melhorar, mas sai é pior. Revoltado”, afirma Gustavo.Da vida que parece um luxo após tudo issoA unidade de semi-liberdade é uma casa comum, com quartos, camas, banheiros e refeitório. “É um hotel sete estrelas perto do Caje”, ironiza Rafael. Gustavo completa: “Está quase melhor que lá em casa”. Os dois estão no Centro de Desenvolvimento Social há cerca de cinco meses.Os rapazes fazem oficinas pela manhã e à tarde. À noite, vão a escola. Rafael está na oitava série do ensino fundamental e Gustavo, na sexta. Estudam em um colégio público comum no bairro onde estão. Em breve, vão freqüentar aulas de informática.Sobre os monitores, falam com carinho de dona Conceição, uma senhora de 62 anos. “Quando no Caje iríamos ter uma senhora para cuidar da gente? Ela até nos chama de filhos”, afirma Gustavo. Seu Antônio, o diretor da casa, também é lembrado com carinho. “Quando precisamos de alguma coisa, mesmo que simples como dinheiro para cortar o cabelo, ele tira da carteira e nos dá. Já vi dando dinheiro para o menino ir comprar cesta básica e levar para casa”, conta Rafael, que teve dor de garganta recentemente e foi logo atendido por Antônio. “Ele pediu para a ambulância que fica lá na semi o dia todo me levar para o médico”.A semi-liberdade é uma alternativa de pena. Normalmente, é um estágio entre a internação e a liberdade total. O juiz, de acordo com o perfil de cada adolescente e da infração cometida, decide se o jovem pode cumprir a medida. Alguns jovens têm o direito de ir para casa durante os finais de semana. Mas se não voltam, podem ser mandados para o “inferno”.