Nova reforma agrária proposta por movimentos sociais recusa princípios liberais

09/03/2006 - 12h39

Spensy Pimentel
Enviado especial

Porto Alegre – As mudanças defendidas na 2ª Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural dependem fundamentalmente do fortalecimento dos Estados e das Nações Unidas para serem implementadas, de acordo com o documento final do Fórum Terra, Território e Dignidade, evento da sociedade civil internacional paralelo à conferência.

"Reiteramos nosso chamado a nossos governos, à Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e seu mandato fundador, às demais instituições das Nações Unidas, a outros atores que estão presentes na 2ª Conferência, e a nossas sociedades, a comprometerem-se decisivamente com uma Nova Reforma Agrária", afirma o texto.

"O Estado tem que jogar um papel forte nas políticas de reforma agrária e produção de alimentos", segue o documento, que se encontra em fase final de discussões. "Os Estados têm o direito e a obrigação de definir soberanamente e sem condicionamentos externos suas próprias políticas agrárias."

A formulação opõe-se ao modelo difundido nas últimas décadas por instituições internacionais, como o Banco Mundial, de uma "reforma agrária de mercado", a partir de um apoio público limitado ao financiamento da terra. Em outros pontos, o documento também aponta confronto com as idéias liberais: propõe o combate à privatização de toda espécie de recurso natural, como a água, o mar, a terra.

"Junto à privatização da terra e das zonas costeiras avança a privatização da biodiversidade do planeta. A vida não é uma mercadoria", segue o documento. "O uso dos recursos naturais deve estar primeiramente a serviço da produção de alimentos."

A idéia de "soberania alimentar", outro conceito central no documento, também se confronta com princípios liberais como o livre comércio, que norteia as ações internacionais de diversas instituições financeiras como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio. Soberania alimentar é o direito de um povo ou comunidade produzir seu próprio alimento, acima dos acordos internacionais que ele possa fazer para liberar o comércio.

Nos anos 90, como conta o pesquisador inglês Peter Hallward, em artigo disponível na Internet, "Option Zero in Haiti", esse país, hoje ocupado por Tropas de Paz das Nações Unidas chefiadas pelo Brasil, passou a aplicar políticas ditadas pelo FMI nesse campo. As orientações do FMI foram impostas como condição para a aceitação do retorno de Jean Baptiste Aristide ao país (o mesmo presidente deposto em 2004). O pacote incluiu, além de ajustes nas contas públicas, cortes nas tarifas para importação de produtos agrícolas. A tarifa sobre o arroz caiu de 50% para 3%, segundo Hallward.

O resultado foi a falência generalizada dos pequenos agricultores do país, gerando o desaparecimento da produção de arroz do país. Com a entrada no país de arroz norte-americano (que recebe subsídios), o Haiti, antes auto-suficiente no produto, passou a importar 220 mil toneladas por ano do grão, em 2002.

No setor de aves, foram perdidos 10 mil empregos, segundo o artigo. Anos antes, o país tinha uma única usina de açúcar, que foi privatizada. O comprador encerrou a produção e passou a importar açúcar subsidiado dos Estados Unidos. "Como resultado dessas e outras 'reformas' econômicas, a produção agrícola caiu de cerca de 50% do Produto Interno Bruto nos anos 70 para apenas 25% nos anos 90", afirma Hallward.

Segundo o ministro Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, o Brasil já vem defendendo esse direito da soberania alimentar nas negociações da Organização Mundial do Comércio. O texto definitivo do documento final da sociedade civil será divulgado na tarde de hoje (9).