Entrevista 1 – "O Mercosul é muito mais que geladeiras", afirma Aldo Ferrer

29/11/2005 - 9h51

Spensy Pimentel*
Repórter da Agência Brasil

Brasília – A aliança entre Brasil e Argentina, bem como o processo sul-americano de integração como um todo, não é algo que se vá esvair com eventuais mudanças políticas nos diferentes países da região, nem tampouco se esgotar em disputas nos diferentes setores da economia.

"O Mercosul é muito mais que geladeiras", ironiza o economista argentino Aldo Ferrer, 78, um contemporâneo de Celso Furtado ainda na ativa no governo do país vizinho. Apesar do otimismo, Ferrer lembra que o bloco precisa passar por mudanças, porque a Argentina se encontra em plena fase de recuperação de sua capacidade industrial, após a crise de 2001/2002, e não pode permanecer apenas como exportadora de commodities agrícolas.

Foi inspirado no colega brasileiro que Ferrer, até hoje professor da Universidade de Buenos Aires, escreveu no início dos anos 60 "A Economia Argentina", livro que está para o país vizinho como "Formação Econômica do Brasil" para o nosso.

As semelhanças não param no nível acadêmico. Como Furtado, Ferrer pôs mãos à obra e trabalhou em diversos governos, além de organismos internacionais. Nos anos 70, também elaborou para o governo argentino um plano de desenvolvimento, de forma similar ao que Furtado fizera para João Goulart (1961-64). Atualmente, no governo Kirchner, integra a direção da Empresa Nacional de Energia da Argentina (Enarsa).

Na semana passada, Ferrer esteve em Brasília para participar do seminário "A Atualidade do Pensamento de Celso Furtado sobre o Desenvolvimento", promovido pelo Senado em parceria com o recém-criado Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Na ocasião, concedeu entrevista exclusiva à Agência Brasil. Leia a seguir os principais trechos da conversa.

Agência Brasil: Nesta quarta-feira, em Puerto Iguazu, na tríplice fronteira, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Nestor Kirchner celebram uma série de acordos bilaterais em comemoração aos 20 anos da Declaração de Iguazu, documento tido como marco fundamental no processo de integração regional e de constituição do Mercosul. Qual deve ser o tom desse encontro?

Aldo Ferrer: Por um lado, há o objetivo de fortalecer a aliança estratégica entre os dois países nas posições frente aos fóruns internacionais e frente à estratégia de resolução dos temas pendentes no Mercosul, levando em conta que, uma vez que a Argentina retoma o caminho do desenvolvimento e da industrialização, a dinâmica do comércio bilateral e o intercâmbio se modificam.

O sistema tem que ser suficientemente flexível para comportar essas mudanças e conformar uma dinâmica que seja plenamente boa para todas as partes, que seja compatível com o desenvolvimento da Argentina, do Brasil e dos outros sócios do Mercosul. O principal elemento novo nessa relação bilateral é determinado pela mudança da política econômica argentina, com a recuperação da industria.

Acredito que a empatia política entre os dois governos se manifesta na busca de consensos e acordos. Esperemos que o pragmatismo e a lucidez dos líderes nos permitam absorver essas mudanças contínuas que acontecem nos países, para que possamos realmente ampliar o mercado e construir um Mercosul forte internamente e em relação o resto do mundo.

Há que se mudar o perfil de intercâmbio comercial, com um maior equilíbrio no componente de valor agregado e tecnologia das exportações das duas partes. Esse é um ponto que gera algumas dificuldades pontuais, mas que devem ser resolvidas superando-se as dificuldades e preservando e fortalecendo a aliança estratégica.

ABr: O sr. acredita que, atualmente, com essa necessidade de ajustes, o Mercosul como um todo corra perigo?

Aldo Ferrer: O perigos do Mercosul não são do Mercosul, são problemas que os países têm das fronteiras para dentro. Como cada um dos nossos países tem dificuldades muito sérias em diversos planos e eles têm diferentes tipos de políticas para resolver esses problemas, isso se reflete nas relações bilaterais.

Em primeiro lugar, cada país tem que resolver internamente sua própria agenda pendente, que é a agenda social, a agenda do emprego e das políticas sociais. Depois, criar regras para que possamos resolver essas mudanças e conseguir efetivamente que o espaço regional seja um espaço conveniente para todos os sócios.

O outro componente da agenda se refere ao resto do mundo: fortalecer nossas posições conjuntas, como aconteceu em Mar del Plata, na Cúpula das Américas. Foi um exemplo da importância da união dos países do Mercosul para fixar uma posição de defesa frente à situação internacional.

ABr: Qual o ponto de vista que a Argentina tem atualmente em relação a sua aliança com o Brasil?

Aldo Ferrer: Eu acredito que, para o governo argentino, a vinculação com o Brasil é muito importante para sua política externa. Em Mar del Plata, isso ocorreu muito claramente. Os dois governos trabalharam juntos. A Argentina tem uma postura muito construtiva em relação ao Mercosul. A aliança estratégica foi ratificada.

ABr: Recentemente, no episódio relativo às exportações de eletrodomésticos para a Argentina, chegou-se, na imprensa brasileira, a falar em uma "guerra das geladeiras". Qual é a real dimensão desse tipo de disputa? O que é que esse tipo de visão sobre o Mercosul expressa?

Aldo Ferrer: Expressa interesses setoriais. Por exemplo, nesse caso dos eletrodomésticos e outros bens industriais, como a Argentina retoma o caminho da industrialização, é preciso haver uma mudança na relação. Então, pode ser que alguns exportadores brasileiros não gostem, mas é um dado da realidade.

Esse tema não tem que ser resolvido pelos exportadores, mas no âmbito da política, do encontro de equilíbrio, que harmonize o conflito. Se a política se fizer com base nos interesses setoriais, não há Mercosul. A política tem que ser concessiva e integradora, ter capacidade de administrar os conflitos que surgem. O Mercosul é muito mais que geladeiras.

* colaborou Érica Santana (tradução)