Érica Santana
Repórter da Agência Brasil
Brasília – "É uma preocupação legítima". Assim o embaixador José Eduardo Martins Felício, secretário-geral do Itamaraty para a América do Sul, resume sua visão sobre a proposta argentina de criar barreiras a produtos brasileiros que afetem sua indústria. Mas o comércio entre os dois países não será o assunto principal do encontro que os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Nestor Kirchner farão a partir de amanhã (30) na cidade de Puerto Iguazu, ponta argentina da Tríplice Fronteira.
"Não é tema principal", afirma, "senão o comércio se sobrepõe a tudo". Para o secretário responsável pelas articulações políticas do governo brasileiro na América do Sul, o tema do comércio "não se sobrepõe à cultura, ao entendimento político. O esforço de integração é mais importante."
Dentro dessa agenda de integração entre os dois países, Kirchner e Lula devem assinar cerca de 30 acordos, segundo o Palácio do Planalto. Entre eles, o embaixador Martins Felício destaca um na área de política espacial, dois protocolos na área de energia nuclear e um acordo na área de defesa – para produção de um veículo militar leve. Também está em pauta um acordo para ensino das línguas portuguesa e espanhola nos dois países.
Agência Brasil: Os argentinos defendem a criação de barreiras automáticas à entrada de produtos em casos de desvalorização do real. Como está a discussão sobre o assunto entre Kirchner e Lula?
Embaixador José Eduardo Martins Felício: Sempre houve uma preocupação da Argentina com relação a um surto comercial prejudicial a ela. É uma preocupação argentina, é uma preocupação do Brasil. Nós agora estamos preocupados com uma certa invasão de produtos chineses e queremos criar mecanismos para eventualmente compensar algum tipo de surto.
A preocupação, no fim da linha, é que se tenha setores que deixem de ser competitivos e que se possa perder empregos. Se eu produzo têxteis, por exemplo, e amanhã houver uma invasão de têxtil de qualquer origem e eu for obrigado a fechar algumas das minhas fábricas, o que acontece? Meus empregados vão para rua. É uma preocupação legítima.
Nós, há alguns anos, temos trabalhado com os argentinos no que nós chamamos de Comissão de Monitoramento do Comércio. Começamos a trabalhar com um mecanismo de verificação do comércio que pudesse ser um pouco mais profundo do que essa Comissão de Monitoramento. É uma negociação em andamento. Não há conclusão ainda, qualquer declaração agora seria prematura.
Achamos que um mecanismo para operar corretamente deve funcionar tanto para o Brasil como para a Argentina, porque o comércio pode oscilar. Esse é o conceito básico por trás da negociação. Tínhamos interesse de terminá-la até o dia 30 de novembro, mas como não houve acordo, o assunto talvez não seja tratado em Puerto Iguazu.
AB: Quais negociações entre Brasil e Argentina devem culminar em acordo no dia 30 de novembro, na Cúpula de Puerto Iguazu?
Embaixador Martins Felício:: Na área nuclear, há dois protocolos. Há um documento na área de defesa para a produção de um veículo militar leve. Há, na área de educação, o entendimento para o ensino de português e espanhol nas cidades de fronteira. Trabalhamos no sentido de fazer um acordo no Mercosul para residência, cuja ratificação foi atrasada por Uruguai e Paraguai. Nós temos a idéia de transformar isso em um acordo bilateral antes do acordo do Mercosul.
Há também entendimento na área espacial e outros acordos que estão em fase final de elaboração e que nós esperamos possam ser assinados na Cúpula de Puerto Iguazu.
AB:E a declaração do então ministro argentino da Economia, Roberto Lavagna, de que se não houver assinatura da Cláusula de Adaptação Competitiva (CAC), a Cúpula de Iguazu será simplesmente um acordo "cerimonial".
Embaixador Martins Felício:: Se ele disse isso, eu não posso comentar. A questão das salvaguardas está em andamento e, segundo a proposta argentina, levaria a um mecanismo de aplicação automática. Nós achamos que isso não seria conveniente. Até o momento que eu acompanhei, não estive nas últimas duas reuniões, as conversas estavam indo muito bem.
No plano técnico, havia várias dúvidas dos ministérios do Desenvolvimento e da Fazenda. Esse é um outro tema que nós estamos tratando com tranqüilidade. Eu acho que esse não é tema principal, senão o comércio se sobrepõe a tudo.
O comércio é muito importante para o mundo todo. É fonte de riqueza, mas não se sobrepõe à cultura, ao entendimento político. Acho que o esforço de integração é mais importante. Pensar a longo prazo é mais importante do que estar preocupado com surtos de comércio. Essas questões episódicas são resolvidas naturalmente
AB:Quais foram os reflexos de Mar del Plata sobre as relações na América Latina e sobre o papel do Brasil na região?
Embaixador Martins Felício:: O encontro foi muito bem sucedido, ao contrário do que possa ter parecido. O objetivo do encontro em Mar del Plata era tratar a criação de trabalho decente para combater a fome e a pobreza. O aspecto social foi o principal resultado.
Mas o que transpareceu foi o embate entre um grupo de países que queria voltar a negociar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e um grupo, como Mercosul e Venezuela, que argumentou o tempo todo que as condições ainda não estavam dadas para retomar a negociação. Nós reivindicávamos que se esperasse a reunião da Organização Mundial de Comércio (OMC), em dezembro, para fazer uma avaliação.
Talvez a visibilidade política tenha sido maior, porque se tinha o presidente norte-americano George W. Bush de um lado e o presidente venezuelano Hugo Chávez do outro. Isso tem um simbolismo quanto aos dois pólos extremos da negociação. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse, desde o começo, que o que interessava era uma posição de unidade do Mercosul. Foi o que prevaleceu.
Eu acho que, neste momento, o comércio mundial está crescendo. Então as pessoas não são estimuladas a fazer nenhuma negociação comercial. Está todo mundo ganhando dinheiro. Se o momento fosse de recessão no comércio, eu acho que até haveria um estímulo adicional para que se avançasse nas negociações.
Mas essa é uma concepção pessoal, eu posso estar completamente errado. Acho que ninguém está estimulado a baixar tarifa. Parte da razão para isso é o desenvolvimento extraordinário da China. Apesar de otimista no que diz respeito às relações comerciais, nesse momento eu não me sinto muito confiante em dizer que elas vão avançar, porque em termos concretos está tudo muito bem.