Reforma política implica mudança cultural, diz especialista

12/08/2005 - 12h19

Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil

Brasília – A cientista política Fátima Anastasia, da Universidade Federal de Minas Gerais, defende uma reforma política que vá além dos avanços institucionais. Ela foi uma das participantes da Conferência Internacional sobre Desafios e Perspectivas do Fortalecimento das Instituições Políticas Brasileiras, evento que terminou ontem, no auditório Nereu Ramos, da Câmara dos Deputados.

Atualmente tramita na Câmara um projeto de reforma política que contempla apenas aspectos institucionais relativos aos partidos e eleições. Leia a seguir os principais trechos de entrevista que ela concedeu à Agência Brasil logo após o encerramento de sua exposição no evento.

Agência Brasil - A sra. pode explicar o que significa dizer que a reforma política tem de ir além das questões institucionais?

Fátima Anastasia - Quando falamos em reforma política, sempre o significado principal que emerge é a reforma institucional. É importante salientar que os resultados políticos a serem afetados pelas instituições são afetados também pelas preferências dos atores, pelas condições do contexto no qual esses atores interagem e pela virtude e pela capacidade desses atores de ação política virtuosa, no sentido de Maquiavel. Essa é a questão que nós devemos levar em conta para termos um pano de fundo um pouco mais complexo para analisarmos essas questões.

ABr - Como a questão cultural afeta a questão institucional na política brasileira?

Fátima Anastasia - Essas duas coisas se afetam mutuamente, elas constituem uma via de mão dupla. No caso do Brasil, há algumas tradições. Por exemplo, nós somos um país presidencialista. Esse é um traço cultural importante, que tem sido reiterado nas diversas oportunidades em que os cidadãos são consultados sobre isso.

Dessa perspectiva, se assim é, o importante é tentarmos ver como organizarmos instituições que respeitem uma tradição, mas que ao mesmo tempo evitem a excessiva concentração de poder nas mãos do presidente, para que o presidente não extrapole a sua função, que do meu ponto de vista deveria ser a de executar o que é legislado pelo poder Legislativo. Este sim deveria exercer plenamente, soberanamente os seus poderes legislativos. O que nós vemos no Brasil é o presidente legislando mais efetivamente do que o próprio Legislativo.

ABr - A possibilidade de edição das medidas provisórias é um exemplo disso, como foi dito no debate?

Fátima Anastasia - Sem dúvida é o maior exemplo, mas não é o único. Além das medidas provisórias, que é um poder extraordinário, de iniciativa legislativa, o presidente tem também poder ordinário em todas as outras matérias, o presidente pode pedir urgência para medidas de sua autoria e isso atropela o caráter deliberativo do poder Legislativo, o seu caráter de um organismo plural, que tem que discutir, que tem que consensuar, que tem que dar oportunidade para a expressão diferenciada dessa nossa sociedade. Agora, as medidas provisórias, de fato, do meu ponto de vista, são instrumentos que concentram excessivamente poderes na mão do presidente e que tem sido usado, do meu ponto de vista, abusivamente pelos nossos presidentes.

ABr - Específica e concretamente dizendo, o que a sra. acha que vai ser possível fazer em relação à reforma política ainda este ano e qual recomendação a sra. daria a esse trâmite legislativo que se dá atualmente em relação ao projeto?

Fátima Anastasia - Nós temos um problema de limitação de tempo que é crucial. Ou nós aprovamos qualquer mudança até 30 de setembro ou não aprovamos mais nada, porque efetivamente esse é o prazo regimental. Eu particularmente não sou muito favorável a mudar as regras durante o jogo, então preferiria manter esse prazo para não parecer que estamos incorrendo em medidas casuísticas. Medidas pontuais, ajustes pontuais, serão possíveis se houver vontade política convergente para isso. Aí só os nossos representantes é que poderão dizer sobre isso, já não me cabe falar.

ABr - A sra. falou em sua exposição sobre a necessidade de se criar um círculo virtuoso entre cultura e instituição, para se fazer uma efetiva reforma política no país.

Fátima Anastasia - O círculo virtuoso é você tentar ir reformando paulatinamente as instituições de tal maneira que os efeitos que essas instituições produzam sobre as condições por sua vez também aperfeiçoem as condições e por outro lado as novas condições vão permitir uma inserção mais sofisticada, mais bem informada do conjunto dos cidadãos no âmbito institucional que resultados sejam tomados, mas coerentes com a preferência da maioria.

ABr - Concretamente, o que se deveria fazer no Brasil para mudar nossa cultura política?

Fátima Anastasia - A situação atual nos mostra claramente a necessidade de que se instituam os mecanismos de fidelidade partidária em primeiro lugar. É importante que haja a instituição de mecanismos de controle público continuado, institucionalizados no âmbito da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Assembléias Legislativas, das Câmaras Municipais, que permitam ao cidadão focalizar suas preferências, monitorar, fiscalizar cotidianamente os seus representantes.

Obviamente, em havendo instituições desse tipo, os vínculos entre representados e representantes se fortalecem. Os representantes inclusive ganham com isso, eles poderão atuar mais bem informados sobre o que são de fato as diferentes preferências e as diferentes hierarquias e intensidades de preferência dos cidadãos.

ABr - Que elementos o desafio de reforma "da" política impõe na atual conjuntura brasileira?

Fátima Anastasia - É muito importante que nós consigamos, às portas das eleições de 2006, organizar uma coalizão política que seja mais programaticamente orientada, uma coalizão menos dispersa ao longo do espectro político ideológico, porque a coalizão que está hoje é uma coalizão difícil efetivamente de se manter unida, tendo em vista as grandes diferenças programáticas e ideológicas que atravessam essa coalizão. Do meu ponto de vista, seria muito importante que o principal compromisso programático dessa coalizão fosse exatamente com o enfrentamento do padrão tão perverso de desigualdades sociais que nós temos.

Ademais disso, me parece que um grande desafio é que nós consigamos organizar essa coalizão no contexto eleitoral e sacramentá-la através do voto, que, do meu ponto de vista é o principal recurso político que deve informar a formação de coalizões, de tal forma que a coalizão governativa seja da melhor forma possível a tradução da coalizão eleitoral, para que outros recursos não tenham que ser utilizados para depois acabar de constituir a maioria governativa.

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