Entrevista 3 - Delfim Netto: "Banco público não é para fazer concorrência com banco privado"

18/08/2004 - 11h21

Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Na terceira parte de sua entrevista exclusiva à Agência Brasil, o deputado federal, economista e ex-ministro Delfim Netto fala sobre a importância dos bancos públicos para a implementação das políticas públicas. Também fala sobre os desafios que o país enfrenta para reduzir as taxas de juros cobradas pelos bancos privados. Leia a seguir mais um trecho da entrevista.

ABr - O sr. estava dizendo que é preciso um pouco mais de agressividade dos bancos públicos...

Delfim – O interessante é criar os instrumentos. Não se precisa de banco público para fazer concorrência para banco privado, mesmo porque eles são incapazes de fazer isso. Você precisa de banco público para fazer política pública, não para fazer déficit público. São coisas completamente diferentes.

ABr - O governo atual tem incentivado a abertura de contas populares em bancos públicos, o microcrédito etc. Isso está no caminho correto?

Delfim – Lógico, você está irrigando. Como o sistema bancário é absolutamente concentrado, esses truquezinhos estão aumentando um pouco o crédito do setor privado. O Brasil é um país em que o crédito para o setor privado não chega a 30% do PIB. Já foi, no passado, 70%, 80%. No mundo, é mais de 100% em alguns países.

ABr - O que fez essa relação cair?

Delfim - O sistema de cartel que se introduziu, a grande concentração do sistema bancário e uma legislação prudencial extremamente violenta. Não se entende que a legislação prudencial é datada. Você tem que usar a legislação prudencial dos bancos de 1950, não a de 2004. O Brasil precisa da política econômica dos Estados Unidos de 1950, não da política econômica de 2004. Estou sendo generoso, estava achando que precisava da política de 1850.

ABr - Também houve, nestes dez anos do Real, uma queda considerável da renda média da população. Como reverter isso?

Delfim - O grande problema é o seguinte: como se faz o ajuste? Alguns economistas têm uma teoria interessante: "Quem poupa é o Espírito Santo". O Espírito Santo é um homem muito poupador, ele poupa muito. Aí, você vai e pede emprestado para o Espírito Santo. Se você for bonzinho, o Espírito Santo lhe empresta, então você cresce. Um outro sujeito, um pouco mais "pé no chão", acha que a coisa é diferente. Se você puser os preços relativos na posição incorreta, a pobre da sociedade é obrigada a poupar aquilo que é necessário – foi o que aconteceu com o câmbio.

Quando o câmbio deu essa mudança, os preços relativos se alteraram de tal forma, que cortou o consumo mesmo. Por que eu tenho uma esperança interessante? É uma vez só, daqui para a frente é para subir. O que me espanta é como as pessoas não entendem isso. Até há pouco tempo, os grandes economistas nacionais diziam: sem poupança, não pode haver equilíbrio em contas correntes. E de onde veio a poupança para ter equilíbrio em contas correntes em 2003? Da quebra de consumo e de investimento. Os preços relativos é que determinam isso.

O Brasil foi vítima de uma porção de mitos. O primeiro deles era muito defendido no governo Fernando Henrique inicialmente, o de que há déficits gêmeos: o déficit fiscal e o déficit em contas correntes. Para eliminar um, tem que eliminar o outro. Até que o Bill Clinton (ex-presidente dos EUA) eliminou um, sem eliminar o outro, e eles mudaram de posição tranqüilamente. Disseram: nos Estados Unidos não vale, porque a dívida inclusive é do setor privado. Esqueceram que foi a dívida do setor privado que quebrou a Inglaterra. Quer dizer: a cada teoria que eles inventavam, um pequeno e miserável fato destruía a teoria logo em seguida.

O Brasil está começando a entrar no período da verdade. E a verdade é essa: os preços relativos é que determinam o equilíbrio macro-econômico. O Brasil está se colocando em ordem e vai continuar. O câmbio real tem que estar em equilíbrio, isto é, tem que produzir um déficit em contas correntes sustentável, sem nenhuma dificuldade.

A taxa de juros real tem que ser mais decente. Ninguém pode aceitar a teoria do Banco Central de que o Brasil é um país tão desgraçado que precisa de 10% de juro real para fazer equilíbrio. Isso é um negócio ridículo. Não se sustenta nem teórica, nem praticamente. No século passado inteiro, a taxa de juros real foi negativa. O mundo inteiro tem taxa de juros real de 3 ou 4%, mas o Brasil, idiossincraticamente, com algo construído pelos cientistas, tem que ter dez. Ah, porque nós somos devedores contumazes. Mas me diga o nome de um país que não tenha dado um default...

Todos esses argumentos são falsos. Eles são produtos de uma mitologia e, o que é pior, de uma teoria econômica infectada pela ideologia liberista. Do mesmo jeito que a teoria econômica era infectada pelo marxismo do pé quebrado com o velho PT, esses neoliberais têm uma teoria econômica infectada pelo liberismo, que é muito mais do que o liberalismo.

ABr - Esse é o pessoal que se ampara, por exemplo, na análise do Risco Brasil?

Delfim - Não, é uma coisa objetiva. É, na verdade, o deságio do C-Bond. Tem que prestar atenção a esses fatos. Na Idade Média, todo mundo imaginava que o unicórnio existia. Ninguém encontrou o corno do unicórnio. Ainda deve haver algumas tribos da África que acham que ele existe, não sei. No Brasil, ninguém acredita que existe a constante 056, e ela existe de verdade. Ela é o duto do comportamento do mercado. O mercado crê que ela existe e, enquanto acreditar nisso, não adianta querer brigar com ele.

A medida do spread tem uma correspondência muito grande com alguns indicadores. O indicador mais importante hoje é a crença do mercado se a dívida é sustentável ou não. O mercado acredita no seguinte: dívida abaixo de 56% é sustentável, acima de 56% é insustentável.

Agência Brasil – Que outros fatores são levados em conta nessa determinação das taxas de juros?

Delfim - O segundo indicador é quanto se gasta de amortização mais juros com relação à exportação. O Brasil gastava dois terços, quando a benchmark no mercado é 25%, 30%. E a indicação importante é a dívida externa sobre exportação, em que o número virtuoso é menor do que dois. O Brasil estava em quatro, já está em 2,9.

Todos esses indicadores estão caminhando na direção certa. O sujeito inventa um spread. Pegue o spread dos países, e você vai ver que eles têm uma ligação estreita com relação a esses indicadores e um outro que é o crescimento econômico. Um país que decresce é um país muito mais arriscado do que um que está crescendo. O Brasil decresceu 0,2% no ano passado, por conta do ajuste. Esse é o tipo do sofrimento que você tinha que passar para poder inverter as contas correntes. Para poder crescer um pouco mais velozmente, sem criar de novo um problema, déficit em contas correntes. Isso passou, é um custo de uma vez só: paguei e agora vou em frente.

Leia também os demais trechos da entrevista.