Aloisio Milani
Enviado especial
Porto Príncipe (Haiti) - No Haiti, durante as manifestações e os conflitos armados do começo do ano, houve diversas violações do direito humanitário, principalmente as invasões dos hospitais que recebiam os feridos. Grupos armados entravam nas instalações médicas para terminar de executar os "alvos politicos".
A crise social e política diminuiu após a queda do presidente Jean-Bertran Aristide, mas está longe de seu fim. Tropas dos Estados Unidos, Canadá, Chile e França ocuparam o país para impor a segurança diante dos vários grupos armados existentes: organizações populares (chimères), guangues, rebeldes, ex-militares (o Exército Nacional foi extinto em 1995 sem nenhum decreto ou benefício) e evadidos das prisões (nos piores momentos da crise, quase todas as prisões foram esvaziadas pelos rebeldes, que viam os detentos como possíveis aliados).
A resolução 1.542 do Conselho de Segurança das Nações Unidas decidiu pela formação da tropa de paz (Minustah) para substituir os militares que estavam no país sob comando dos Estados Unidos. Brasil, Chile, Argentina, Uruguai integraram as novas tropas, agora numa missão classificada como de "manutenção de paz".
Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, o chefe da Delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Haiti, o chileno Felipe Donoso, explica que o país passa por um momento "frágil". "O país objetivamente não tem nenhuma razão para dizer que os problemas acabaram: como possibilidades de enfrentamento, problemas políticos, violência, violação de direitos humanos. Isso levará tempo", diz.
Presente na maioria dos conflitos armados e situações de guerra, o CICV é um defensor do direito humanitário. Essa legislação internacional foi definida pelas convenções de Genebra, ao final da Segunda Guerra, e pretende proteger pessoas que estão fora dos conflitos, como civis, feridos e prisioneiros.
Para Donoso, inclusive, não há possibilidade de previsões sobre o futuro político do Haiti a curto prazo. "Não sabemos para onde esse período de transição vai caminhar: se para a democracia ou para mais instabilidade", afirma. Leia os principais trechos da entrevista:
Abr: Após a crise do início do ano, qual a situação do Haiti?
Felipe Donoso: Em janeiro e fevereiro, era bastante evidente que o país caminhava para um conflito interno. Isso foi o que gerou uma mobilização do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) para preparar as estruturas nacionais a enfrentar, por exemplo, casos de feridos de guerra. Mas o que não sabíamos naquele momento era se a violência era crescente. Se teríamos um grande "incêndio" ou "um fogo de palha". Provavelmente a última opção e iria desaparecer tão rápido quanto surgiu. Mas durante as últimas semanas de fevereiro tivemos uma situação clara de conflito interno.
O país estava dividido em dois e com todas as conseqüências econômicas e sociais sobre isso. Essa situaçao deixou seqüelas, embora mesmo elas não sejam novas. Não podemos dizer que tudo está resolvido também. Estamos numa situação frágil, que oficialmente é classificado de transitória. Tanto pela presença do governo provisório, quanto pela a atuação também temporária da Minustah.
O país agora tem uma oportunidade, mas sua situação é frágil porque todo os elementos que provocaram a crise no começo do ano ainda estão presentes. Não sabemos para onde esse período de transição vai caminhar: se para a democracia ou para mais instabilidade. Durante esse período, um organismo como o CICV precisa estar muito atento. Não só como observador, mas de maneira bem ativa. Tomar todas as medidas preventivas para uma possível deteriorização da situação, mesmo que apenas em regiões específicas do país.
No Haiti, hoje, muitas vezes é difícil definir qual é o limite entre banditismo e o que é violência política. O complicado é a superposição de problemas de caráter político com as questões sociais e delinqüência. Mas também não podemos isolar ou definir determinados fatos como uma ou outra coisa. Há um pouco de cada às vezes. Em nosso trabalho, é difícil saber, por exemplo, se o detento está preso somente por infringir o Código Penal ou se há mais do que isso.
ABr: Hoje, qual o trabalho e os desafios do CICV no Haiti?
Donoso: Uma das funções da nossa presença aqui nesse período instável é acompanhar a situação nas prisões. Num país com tantos problemas, a situação da população carcerária é, em geral, a última prioridade. Também a situação da segurança da população civil frente às diferentes forças armadas, porque aqui há muitas. Não há exército ofical, porque ele foi extinto em 1995, mas existe a Polícia Nacional, a Minustah, os grupos armados, as gangues e organizações populares que foram armadas durante os últimos governos.
E, frente a isso, a população civil tem pouca proteção. Buscamos fazer prevenção junto a todos que carregam armas. Podemos contribuir na medida do possível para divulgar o mínimo de valores que precisam ser respeitados. A situação do Haiti pede que nossa participação seja ativa e, sobretudo, tendo presente que o país objetivamente não tem nenhuma razão para dizer que os problemas acabaram: como possibilidades de enfrentamento, problemas políticos, violência, violação de direitos humanos. Isso levará tempo.
No começo do ano, quando pedimos à comunidade internacional para apoiar o Haiti, a mobilização foi rápida e eficiente. O que se viu no dia 20 de julho, em Washington, foi mais uma demonstração disso. [Nessa data foi anunciado um plano de reconstrução do país que contaria com mais de US$ 1 bilhão]. Mas isso não é só assunto de dinheiro. É necessário vontade para mudar certo costumes. Se não existir essa vontade aplicada ao país, será difícil algum avanço, mesmo com o apoio internacional.
ABr: Existem diversos grupos armados no país por diversos motivos e o próprio chefe das tropas da Minustah afirma que não pensa em desarmamento a curto prazo no país. Como resolver esse problema?
Donoso: Isso é uma decisão política que tem que ser tomada pelo governo e pelas Nações Unidas. Por isso, temos pouco a dizer. Mas o que a experiência do CICV tem mostrado é que nenhum desarmamento é efetivo contra a vontade daqueles que têm armas. Por isso falo que o momento atual é frágil.
O desarmamento não está feito, mas precisa acontecer de uma maneira ou outra. Com a quantidade de armas que existe por todos os níveis da população, será difícil estabelecer uma autoridade da polícia e do governo. Na minha opinião pessoal, a presença tão massiva de armas será um fator que vai travar até o desenvolvimento do país. Isso por razões de segurança. Mas a Cruz Vermelha não tem nenhum trabalho de desarmamento e nunca está envolvida nesse tipo de programa.