General das tropas de paz no Haiti não crê em rápido desarmamento da população

16/08/2004 - 7h57

Aloisio Milani
Enviado especial

Porto Príncipe (Haiti) - O comandante da força militar da ONU no Haiti (Minustah), general brasileiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira, não acredita na possibilidade de desarmar a população a curto prazo. Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, o general afirma que é "impossível" reverter em poucos meses um processo de armamento que levou mais de 20 anos. "O desarmamento será conseqüência direta de uma nova perspectiva de vida para o povo do Haiti. Não acredito em desarmamento se o país se mantiver na situação que está hoje: com sua infra-estrutura completamente comprometida", diz.

Desde o dia 1º de junho, a Minustah substituiu a força interina multinacional dos EUA, Canadá, Chile e França que chegou ao país após a queda do presidente Jean Bastide Aristide. Foi criada com a resolução 1542 do Conselho de Segurança da ONU e foi nomeada de "Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti". Está autorizada a usar força letal caso seja atacada ou alguma crise coloque em risco a atuação dos "capacetes azuis".

O general ainda cobrou o início da ajuda humanitária da ONU. Até hoje não há programas de distribuição de água ou alimentos para a população. A maior parte do país não tem água tratada e sistema de esgoto. "Essa é uma cobrança que a gente tem feito, porque o desgaste da tropa na rua, patrulhando, é evidente. A população gosta de ver os soldados, mas começa a cobrar a necessidade de sentir o trabalho da força de paz", afirma. Leia os principais trechos da entrevista:

Agência Brasil: Qual o balanço, até agora, do comando da força militar de paz no Haiti?

General Augusto Heleno: Muita gente esquece que nós completamos apenas dois meses de missão. Estamos ainda na fase de receber os contingentes dos diversos países. Estamos com o contingente brasileiro completo. Também Argentina, Uruguai e Chile. Mas ainda estamos aguardando o batalhão do Nepal, a tropa do Sri Lanka, uma companhia da Guatemala e outra do Peru. E temos ainda a possibilidade da vinda de tropas espanholas, que devem trazer uma fração de soldados marroquinos. Mas ainda não tenho informação de quando isso deve acontecer. Estamos nessa fase de distribuir as tropas pelo país.

A esperança nossa é que a Minustah possa aprender com as missões anteriores no Haiti. Temos a perspectiva de eleições em 2005. É um dos pontos de honra da resolução da ONU que instaurou a missão. Não é um aspecto exclusivo das tropas, mas as eleições têm que ser seguras, transparentes, participativas e democráticas. E isso será um trabalho enorme, porque no Haiti hoje não tem lista de eleitores, nem título eleitoral. E poucos têm sequer carteira de identidade. Os desafios são muito grandes, mas não é tão difícil de ser feito. É relativamente pequeno, com uma população de quase oito milhões, mas uma atuação firme e segura pode mudar a situação desse país. Bem melhor que a de hoje. A mudança pode não ser "excelente", mas podemos fazer o "muito bom".

ABr: Qual a classificação internacional do conflito aqui no Haiti? Crise política, tensão social, conflito armado? Porque isso tudo influencia no tipo de uso da força militar...

General: Não gostaria de estereotipar a coisa. Existe uma tensão social, porque há uma espécie de síndrome de insegurança no povo do Haiti. Que já vem se arrastando, mas se agravou entre a queda do presidente e a chegada da força multinacional. E hoje há um sentido doentio na população de acreditar que continuam vivendo um clima de insegurança, o que não é verdade. Há crime, há seqüestros, mas a cidade vem retomando sua vida normal.

ABr: As tropas e o governo provisório vão iniciar o desarmamento da população?

General: Esta é uma coisa que vem sendo cobrada da força militar, apesar de não ser uma missão exclusiva nossa e, sim, de toda a missão de paz. Há uma comissão composta por civis e militares que trabalha o tema. O desarmamento é uma tarefa extremamente difícil, porque o armamento levou 20 anos e forte tendência a armar determinados grupos, e, de repente, querem que em dois meses a gente desarme todo mundo. Não é assim. É uma tarefa demorada.

O desarmamento será conseqüência direta de uma nova perspectiva de vida para o povo do Haiti. Eu não acredito em desarmamento se o país se mantiver na situação que está hoje: com sua infra-estrutura completamente comprometida. Nós precisamos dar condições à população de ter eletricidade, água potável, estradas recuperadas, mínimo de saneamento. Diante dessa perspectiva de melhora, a população vai se convencer de que há esperança no futuro e não há necessidade de andar armado para se defender. Porque começará a ter emprego, produção e recursos.

ABr: Só teríamos desarmamento a médio prazo?

General: A médio e longo prazo. Médio para aqueles que estão no crime por razões de sobrevivência. Talvez um prazo maior para aqueles que escondem alguma tendência política no seu armamento. Nós temos conseguido alguns êxitos eventuais e pontuais em ações com a Polícia Nacional do Haiti, mas sabemos que isso representa muito pouco diante do que se espera em termos de armamento.

ABr: Qual a porcentagem da população que anda armada?

General: Esse dado também não é muito importante, porque o direito de ter uma arma em casa é até garantido pela Constituição do país. O problema é desarmar aquele que porta uma arma ilegalmente e, além de tudo, usa esta arma para um fim ilícito. O objetivo agora é desarmar aqueles que usam ilegalmente sua arma. E nesse contexto estão grupos que participaram dos últimos acontecimentos políticos [conflitos armados que resultaram na morte de centenas de pessoas e na queda do presidente Aristide] e também gangues armadas que fazem seqüestros e roubos.

As gangues, inclusive, não existem só no Haiti. Há em quase todos os países do mundo. Na minha opinião, considero baixo o nível de criminalidade do país diante da situação das ruas. Pelo que vejo, poderia se esperar até coisa pior. Mas o ideal é que o índice seja zero. E isso também deve ser feito pela polícia do Haiti

ABr: Qual a situação da polícia do Haiti? Ela está estruturada?

General: Essa é outra tarefa que também não é específica da força militar. Ajudar no recrutamento, formação e a distribuição da polícia do Haiti em todo o país. Porque ao longo do tempo ela ficou comprometida em seu efetivo e sua credibilidade diante da população. Isso é grave, porque todo o sistema de prevenção ou repressão fica prejudicado. A polícia tem necessidade de equipamento e viaturas. A quem é que compete isso? A Minustah tem um braço chamado "CiviPol", que recebe policiais do mundo inteiro para trabalhar nessa formação. O papel das forças armadas nesse caso é apoiar a polícia nas operações, principalmente fora de Porto Príncipe.

ABr: A polícia é violenta? Ela sabe usar graduações de força e respeitar os direitos humanos?

General: A formação precisa ser feita nesse sentido. Ela é violenta. Muitas vezes, por falta de formação, a polícia acaba infringindo as prerrogativas dos direitos humanos. Tudo está no contexto da formação que tem que ser feita por esse braço da polícia civil da Minustah.

ABr: Até agora não existe ajuda humanitária da ONU no Haiti...

General: Esse talvez seja o trabalho que pode dar resultado a curto prazo. A ONU já tem prevista a execução de projetos de curto impacto e rápida execução. E essa é uma cobrança que a gente tem feito, porque o desgaste da tropa na rua patrulhando é evidente. A população gosta de ver os ‘capacetes azuis’, mas começa a cobrar a necessidade de sentir o trabalho da força de paz. E ela só vai sentir quando as coisas forem feitas em proveito dela.
Tenho colocado muito essa idéia aos demais membros da Minustah. Eles devem aproveitar a presença dos diferentes contingentes do país para que a gente trabalhe em ações humanitárias. Seja com as agências da ONU ou com as organizações não-governamentais. Mas que aproveitem o fato de a tropa estar todo dia nas ruas. Inclusive, muitas dessas tropas estão acostumadas a fazer esse trabalho em seus países.

ABr: Porque elas ainda não começaram?

General: Isso é problema de dinheiro, verbas que custam a chegar. Sabemos que a gerência de recursos, até para controlar e evitar desvios, passa por um processo burocrático que às vezes é lento. Estamos com apenas dois meses completos de missão e os quadros da Minustah ainda estão desfalcados. Faltam cerca de 80% do efetivo civil previsto de funcionários da ONU. O recrutamento local vai começar agora no dia 23. E isso também é lento, porque os funcionários têm que ser voluntários e precisam falar francês. Tudo isso contribui para que a gente acabe ficando um pouco impaciente. A gente começa a cobrar, porque não temos tempo para perder.