Juliana Andrande
Repórter da Agência Brasil
Brasília - A professora Nilcéa Freire foi a 14ª reitora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), eleita para a gestão 2000/2003. No período de 1996 a 1999, Nilcéa ocupara a vice-reitoria da Universidade.
Nilcéa Freire foi a primeira mulher a assumir a reitoria da UERJ. Hoje, aos 51 anos de idade, seu currículo retrata uma trajetória de profundo envolvimento com a Universidade, onde se graduou na Faculdade de Ciências Médicas em 1978. O curso foi interrompido por um ano de exílio no México, devido à sua participação no movimento estudantil contra a ditadura militar.
Nilcéa foi residente em Parasitologia no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE). Em 1984, realizou estágio de pesquisa no Museu de História Natural de Paris. É mestra em Zoologia pelo Museu Nacional/UFRJ e trabalhou no Laboratório de Esquistossomose da Fundação Oswaldo Cruz, em projetos financiados pela Organização Mundial de Saúde.
A ex-reitora dedica-se à gestão universitária desde 1988, quando assessorou a Sub-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UERJ. Atuou também na Diretoria de Planejamento.
A convite da Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional e da Organização Universitária Interamericana, Nilcéa Freire integrou uma equipe de avaliação de universidades latino-americanas.
Em 2002, com Nilcéa à frente da Reitoria, a UERJ se notabilizou ainda pela adoção pioneira no País de uma política de cotas para negros e estudantes de escolas públicas.
No final do ano passado, ainda durante sua gestão, a UERJ conseguiu fechar uma parceria com a Petrobrás para a criação do Centro de Cidadania Barbosa Lima Sobrinho. O Centro tornará público o valioso acervo do jornalista e advogado falecido em 2000 e prestará serviços de informação jurídica à população. A idéia é constituir um fórum permanente de debate, pesquisa, reflexão e atuação para o pleno exercício da cidadania.
ABr: Essa será a primeira vez que o governo federal realiza uma conferência ampla para discutir temas de interesse das mulheres, que representam mais da metade da população brasileira. Qual a importância dessa conferência e que temas serão debatidos durante os três dias de evento?
Nilcéa Freire: A importância dessa conferência é justamente o fato de ela ter sido convocada pelo governo federal, respaldada pelos governos estaduais e municipais, com a ampla participação da sociedade civil. Ou seja, é um encontro entre governos e sociedade no sentido de estabelecermos diretrizes que vão compor o Plano Nacional de Política para as Mulheres. Isso é inédito no nosso país, como é inédito o reconhecimento de que é preciso definitivamente incorporar a perspectiva de gênero, a perspectiva das mulheres nas políticas nacionais.
ABr: Qual será o resultado prático dessa conferência, em termos de elaboração de políticas públicas para as mulheres?
Nilcéa Freire: Ela vai se dar em muitos âmbitos. Em primeiro lugar, é preciso que nós entendamos o que é uma Política Nacional. Não é um plano de ação para este governo, é uma política que permanece como política de Estado, portanto terá desdobramentos a curto, médio e longo prazos, no âmbito dos governos federal, estaduais e municipais e algum rebatimento no Congresso.
Após o término da conferência, nós reuniremos um conjunto de ministérios, com a participação da sociedade civil, tomaremos essas diretrizes que serão aprovadas na conferência e, em cada área, o que nós iremos fazer. Iremos cotejar aquilo que vem da conferência com aquilo que nós já estamos implementando, porque muitas diretrizes e propostas que foram encaminhadas já estão sendo encaminhadas dentro do nosso governo. Então veremos se há necessidade de aprofundarmos, aperfeiçoá-las, e outras que não estão ainda tendo iniciativa, vamos ver, de acordo com as prioridades de governo e com as atribuições de cada esfera governamental, o desenvolvimento de planos de ação específico para cada uma dessas esferas.
Ao final desse ano, que é o Ano da Mulher no Brasil, a nossa expectativa e o nosso compromisso é que o presidente Lula possa estar divulgando para todo país aquilo que foi a contribuição de mais de 120 mil mulheres que já participaram desse processo, contribuição que não é exclusiva para as mulheres. É uma contribuição à sociedade, porque as mulheres estão discutindo a sua forma de inserção no desenvolvimento do nosso país.
Violência Doméstica
ABr: A violência doméstica continua sendo uma das principais formas de agressão contra as mulheres. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostra que, a cada 15 segundos, uma brasileira é espancada no país. O que é necessário para mudar esse quadro?
Nilcéa Freire: Em primeiro lugar, é fazer aquilo que estamos fazendo aqui hoje. Divulgar, tornar visível esse problema, porque só a partir da consciência de que o problema existe a gente é capaz de elaborar políticas, de se comprometer com a eliminação do problema. Nós da secretaria já estamos atuando em diferentes dimensões com relação ao enfrentamento da violência doméstica contra a mulher.
A primeira é a ampliação dos serviços de atendimento das mulheres vítimas de violência ou que vivem em situação de violência. Então, nosso apoio financeiro à implantação e ao aparelhamento de casas-abrigo para mulheres em situação de risco, com contrapartida de municípios e estados, a instalação de centros de referência para o atendimento à mulheres que vivem em situação de violência, e junto com a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Ministério da Justiça), o reaparelhamento e a requalificação das delegacias especializadas de atendimento à mulher no nosso país. Este ano, por exemplo, nós estamos, junto com a secretaria, com o planejamento, já inclusive com orçamento alocado, de reaparelhamento e requalificação de 50 delegacias especializadas de atendimento à mulher no país, de maneira que tenhamos pelo menos uma delegacia modelo em cada estado da federação. Nós estamos, junto com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, definindo um padrão de atendimento para essas delegacias.
Outra dimensão do nosso trabalho, também junto com a secretaria, é a capacitação de todos os agentes e pessoal que trabalha nas delegacias especializadas. Também fazemos cursos de capacitação e treinamento para todo o pessoal que trabalha nas casas abrigo e centros de referência.
Por fim, a última dimensão do nosso trabalho, complexa, é a revisão da legislação que trata da violência doméstica contra a mulher. Instalamos em abril um grupo interministerial que está trabalhando em cima de um projeto base, construído por um consórcio de oito organizações não-governamentais. Já fizemos uma primeira análise do projeto apresentado por elas e através também de várias audiências com diferentes segmentos da sociedade. E nos dias 1 e 2 de julho fizemos um seminário chamado "Encontro de Perspectivas", onde reunimos representações da sociedade civil organizada e os operadores de direito – defensores públicos, juízes de juizados especiais, representantes do Ministério Público – de forma que nós estamos compondo um projeto para apresentar ao Congresso Nacional que tenha consistência e que possa ser consensuado por esses diferentes segmentos da sociedade e que, portanto, possa ser imediatamente aplicado após a sua aprovação.
ABr: Quais os principais pontos dessa proposta, principalmente para acabar com a sensação de impunidade, já que, em muitos casos de violência doméstica contra a mulher, a penalidade aplicada ao agressor acaba sendo o pagamento de cestas básicas a instituições?
Nilcéa Freire: Essa é uma das principais polêmicas. A questão da penalidade, da punição ao agressor, está sendo discutida. Nós entendemos, e há um consenso, que o agressor tem que ser freado. É preciso impor um freio ao agressor, seja por meio de uma punição, nos casos em que há agressão mais grave, seja por meio de outro tipo de penalidade.
A outra polêmica é qual a instância, no Judiciário, em que esses casos devem ser tratados. Hoje, pela legislação atual, esses casos vão para os juizados especiais criminais e são considerados de menor potencial ofensivo. Então, muitos movimentos feministas entendem que é necessária a criação de uma vara especializada para tratar esses casos. Por outro lado, os juizados especiais defendem a posição de que, como essa é a matéria básica do seu trabalho, 70% do que fazem em algumas capitais são relacionados à violência contra a mulher, o que eles querem é um melhor aparelhamento, melhores condições de atendimentos a esses casos.
Então , esses dois pontos concentram parte da complexidade desse problema, mas creio que essa sistemática de trabalho que estabelecemos, ou seja, de possibilitar esse debate e tentar ter uma resultante positiva, no sentido de termos uma posição mais próxima do consenso, vai permitir que cheguemos ao Congresso com um projeto redondinho, bem acabado, que possa tramitar rapidamente.
ABr: Outro problema, nos casos de violência doméstica, é que muitas vezes o agressor é o próprio companheiro. Como incentivar a vítima a denunciar essa agressor, sendo que amanhã ela terá que acordar novamente ao lado dele?
Nilcéa Freire: Essa questão da violência traduz aquilo que é um dos centros da nossa discussão. Essa relação de poder desequilibrada entre homens e mulheres que existe na sociedade e que transborda para as relações interpessoais. Ela traduz, também, o preconceito e a discriminação. A gente combate essa violência trabalhando a auto-estima das mulheres, a sua confiança, o fato de que elas podem ser senhoras do seu destino, que não precisam se submeter à violência. É claro que isso não é fácil. Ao lado de campanhas de conscientização, de trabalho com as mulheres, é preciso garantir espaços de ampliação da sua autonomia. A violência atinge mulheres de todas faixas sociais, todas as faixas econômicas, mas aquelas mais pobres têm menos possibilidades de romper esse ciclo de submissão, de agressão. Então, é preciso garantir mais emprego, geração de renda, capacitação para essas mulheres, no sentido de aumentar a auto-estima delas também.
E é preciso, junto com o estímulo à denúncia, que as mulheres tenham onde denunciar. Por isso, a nossa preocupação no sentido de ampliar os serviços de apoio às mulheres que vivem em situação de violência. Não basta querer denunciar. É preciso ter aonde ir, ser bem acolhida, é preciso que a sua denúncia possa ser encaminhada, transformada em processo, se for o caso, e que o agressor seja punido.
Raça
ABr: As desigualdades de gênero atingem com maior intensidade a mulher negra. Como reduzir essa discriminação, que faz com as negras tenham menos oportunidades em todos os campos, sobretudo no mercado de trabalho?
Nilcéa Freire: Além dos instrumentos gerais que mencionei, como por exemplo, nós ontem assinamos um convênio com Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e a Associação de Mulheres de Negócios. Vamos trabalhar em oito estados com capacitação para mulheres de baixa renda ou desempregadas que queiram se capacitar para terem seu negócio.
Mas a gente combate a discriminação, e no caso da associação entre ser mulher e ser negra, também com medidas de ação afirmativa, uma delas se expressa através das cotas, como é a discussão das cotas nas universidades e para o mercado de trabalho. Então, nós temos o reconhecimento que existe a desigualdade e que é preciso, num determinado momento, tratar desigualmente os desiguais para garantir a igualdade, então essa concepção está presente nas nossas políticas.
Mulheres índias
ABR: Além das negras, outra particularidade é a mulher indígena. Qual a pauta de reivindicações desse grupo e o que o governo pode fazer para atendê-las?
Nilcéa Freire: É uma pauta substantiva. Na segunda e na terça dessa semana, estiveram reunidas mulheres índias de várias etnias, na 1ª Conferência Nacional de Mulheres Índias. Parte delas ficará para a nossa conferência, que é geral das mulheres, e muitas estão vindo como delegadas de todos os estados. Portanto, há uma pauta que partiu da própria realidade das mulheres índias. É uma realidade em transformação, que demanda o apoio a sua organização como mulheres, o diálogo entre as diferentes etnias, uma pauta que inclui também a questão da violência contra a mulher, a saúde integral da mulher índia, geração de emprego e renda, demarcação de terras. Eu queria dizer, com muita esperança, que nós vemos nessa conferência, que nós vamos ser capazes, a partir do processo desenvolvido nos municípios e nos estados, de captar essa diversidade que é a nossa maior riqueza no Brasil. E vamos incluir no plano nacional políticas que se dirijam a segmentos específicos da nossa população.