Allen Bennett (*)
No último dia 18 de maio, uma sonda construída pela mão humana entrou no "perímetro urbano" do planeta Saturno. A "região metropolitana saturna" é um microcosmo do nosso sistema solar: é grande, bastante variada e rica em curiosidades e maravilhas. Lugar certo, por excelência, para empreender uma intromissão científica a procura de respostas a cerca dos enigmas, dos mistérios e das origens da natureza, a vida e o Universo.
Lançada em 15 de outubro de 1997, a missão em dose dupla, Cassini-Huygens, foi programada para entrar em órbita ao redor de Saturno no dia 1 de julho de 2004 depois de uma viagem de 3,2 bilhões de quilômetros. A sonda sem tripulação está programada para fazer um estudo detalhado sobre o planeta, sua composição, campo magnético e seus anéis misteriosos, além das luas saturnas com atenção especial para com a maior delas, Titan. De fato, Cassini-Huygens é um dois-em-um sideral: há uma nave-mãe, a Cassini, que carrega um filhote, o Huygens, que será ejetado em dezembro para depois descer na Titan no dia 14 de janeiro de 2005. Enquanto isso, a Cassini continuará observando Saturno, seus anéis e suas luas até 2008.
Assim, foi uma surpresa agradável quando começaram a chegar à Terra fotos nítidas de Saturno em fevereiro último. Surpresa maior foi ver algo que a sonda Voyager II, treze anos antes, em agosto de 1981, tinha apenas insinuado: que tempestades gigantes em Saturno podiam se juntar para formar tempestades monstruosas. E faz isto regularmente.
Logo nas primeiras fotos transmitidas pela Cassini-Huygens apareceram duas enormes tempestades na superfície do hemisfério sul de Saturno, cada uma com um diâmetro de mais de mil quilômetros e vento chegando até 1.500 quilômetros por hora. As duas tempestades se movimentaram na mesma direção, quase na mesma linha de latitude. Porém, uma das tempestades, aquela que vinha atrás, avançava duas vezes mais rápida que a outra (11 metros por segundo contra só cinco metros por segundo). Não demorou muito para uma alcançar a outra. Assim, um mês depois das primeiras fotos, exatamente nos dias 19 e 20 de março passado, as duas tempestades entraram numa pequena dança, girando em torno de si mesmas no sentido contrário aos ponteiros do relógio, para, em seguida, se juntarem.
Duas tempestades, cada uma com o dobro do tamanho e vento quase cinco vezes mais forte do que nas maiores tempestades terrestres, juntarem-se na atmosfera de Saturno.
Para colocar as tempestades saturnas em outra perspectiva, basta dizer que o fenômeno Catarina (diâmetro máximo de 300 quilômetros e vento de 180 quilômetros por hora), que afetou parte da costa de Santa Catarina e Rio Grande do Sul apenas uma semana mais tarde, nos dias 27 e 28 de março, causando danos de R$ 1 bilhão, destruindo 1.468 construções (muitas de alvenaria) e danificando outras 40 mil edificações, tinha um diâmetro de apenas um terço do tamanho de uma das tempestades saturnas e vento que soprou com menos de um quinto da força do vento daquele planeta.
À guisa de esclarecimento, existem vários outros lugares no nosso sistema solar, vamos dizer, poucos convidativos, além de Saturno. Por exemplo, há uma tempestade (uma espécie de "mãe das tempestades") nas nuvens de Júpiter, conhecida como "A Grande Mancha Vermelha". Tem o tamanho do planeta Terra e existe há pelo menos um século. Porém, o lugar mais dantesco na nossa vizinhança deve ser a lua de Júpiter, Io, que tem vulcões cuspindo fogo, rios de lava fervendo e enxofre por toda parte.
Uma nave mãe com filhote
As fotos da junção de tempestades saturnas foram um bom começo para um dos projetos espaciais mais ambiciosos de todos os tempos. A missão Cassini-Huygens foi idealizada, construída e está sendo gerenciada por três agências espaciais com a participação de 250 cientistas de 17 países. Ora, não faz muito sentido mandar uma sonda a 3,2 bilhões de quilômetros para tirar só algumas fotos. Por isso, Cassini-Huygens é do tamanho de um ônibus. É redonda, com quatro metros de diâmetro e pesa 5.650 quilos (metade do peso só de combustível). Está equipado com 12 mil quilômetros de fios, 20 mil conexões elétricas e 1.630 circuitos de interligação eletrônica para realizar muitas pesquisas científicas.
Seu sistema de antenas de comunicação, feito pela Agência Espacial Italiana, pode transmitir simultaneamente em quatro freqüências. Cada emissão de dados ou imagens de Saturno até a Terra demora entre 68 e 84 minutos, dependendo da exata localização da nave no momento da transmissão. Durante a vida útil da missão (de 2004 até 2008) devem ser enviadas um total de 300 mil imagens em cores pela Cassini. Outras 1.100 imagens serão mandadas pela sonda Huygens ao descer na maior das luas de Saturno, a enigmática Titan, a única no sistema solar com sua própria atmosfera amarelha-alaranjada.
A nave-mãe, Cassini, desenvolvida pelo Jet Propulsion Laboratory da Nasa, está equipada com 12 instrumentos científicos. A sonda, Huygens, da Agência Espacial Européia, tem outros seis. Ao todo, os 18 instrumentos científicos podem empreender 27 investigações científicas (alguns dos instrumentos são polivalentes).
Segundo porta-vozes do projeto, uma boa idéia para compreender a parte cientifica da missão é imaginar a nave como uma pessoa dotada de sensibilidade muita além da humana. Quer dizer, é como se Cassini-Huygens fosse dotada de supersentidos humanos. Assim, a sonda é capaz de "ver" bem além do espectro visível e enxergar ondas de energia e luz invisíveis ao olho humano. Também pode "sentir" coisas como poeira e vibrações cósmicas despercebidas pela mão do homem.
Dando voltas cósmicas
Mas como será a viagem Cassini-Huygens? A distância média entre a Terra e Saturno é de 1,3 bilhão de quilômetros. Mas, como já dissemos, a sonda percorrerá 3,2 bilhões de quilômetros para chegar a Saturno. E levará quase sete anos. Que passeio demorado! Esta jornada tem muito o que nos ensinar sobre viagens extraterrestres. O maior problema, no estágio em que estamos, é o combustível que usamos, ou melhor dizendo, o peso dele.
Por exemplo, no momento temos condições de levar um homem a Marte mas, devido ao problema de combustível, não há a menor possibilidade de trazê-lo de volta. Não temos como mandar combustível suficiente para o retorno (por isso, nos meios científicos, discute-se seriamente a idéia de mandar alguém só de ida. O principal candidato no momento para ir e ficar é a pessoa que teve a idéia de mandar alguém para Marte em primeiro lugar: o Sr. George W. Bush).
Por causa das condições especiais e distâncias colossais, viagens espaciais são complicadíssimas, mesmo dentro do nosso sistema solar. Para poder entrar em órbita ao redor de Saturno e, depois, conseguir manobrar em volta do planeta durante mais quatro anos, Cassini-Huygens terá que economizar nada menos do que 99% de seus quase três mil quilos de combustível. Como? Com uma mãozinha de três outros planetas e da força centrífuga (numa manobra chamada "assistência gravitacional").
Assim, após levantar vôo em 15 de outubro de 1997, Cassini-Huygens não foi em linha reta para Saturno. Muito (muito!) pelo contrário. Começou sua jornada em sentido oposto, na direção do Sol, passando duas vezes por Vênus, em 27 de abril de 1998 e 24 de janeiro de 1999. Usando a força centrífuga nas passagens, recebeu uma impulsão ou assistência gravitacional. Ganhou velocidade e planou até a Terra aonde chegou em 18 de agosto de 1999 para mais uma assistência gravitacional e ganhar mais velocidade. A última assistência gravitacional foi ao passar por Júpiter, em 30 de dezembro de 2000. No momento, encontra-se planando até Saturno, tendo gastado algo em torno de 1% de seu combustível.
Mesmo assim, a chegada em Saturno será com enorme velocidade. Cassini-Huygens será um ônibus Fórmula 1. É que, apesar de não ter usado o acelerador, somando as quatro assistências gravitacionais, mais sete anos na estrada percorrendo 3,2 bilhões de quilômetros, o resultado só pode ser um tremendo embalo. Tanto embalo que, para se inserir na órbita de Saturno, no dia 1 de julho próximo, será necessário frear bruscamente. Esta freada consiste em uma queima intensa de combustível que durará exatos 97 minutos.
Quatro anos (terrestres) em Saturno
A missão está programada para durar quatro anos: de julho de 2004 até julho de 2008. A primeira grande tarefa da Cassini será entregar um presente de Natal. No dia 25 de dezembro próximo, a Cassini ejetará a sonda Huygens (peso: 318 quilos). Esta vai planar por 22 dias até chegar na maior das luas de Saturno, a Titan. No dia 14 de janeiro de 2005, entra na sua atmosfera com todos os seus instrumentos científicos ligados.
A descida, apoiada em três pára-quedas, deve durar entre duas e quatro horas. Há grande interesse na Titan porque sua atmosfera, rica em metanol, parece com o que os cientistas acreditam que era a atmosfera da Terra no passado. Segundo os mesmos cientistas, se fosse possível uma pessoa acompanhar a descida dentro da Huygens, a viagem iria ter duas etapas distintas. Primeiro, uma vista esplendida de Saturno e seus anéis. Depois, o pesadelo. Passear pela atmosfera da Titan, dizem, deve ser mais ou menos como nadar dentro de uma tubulação de petróleo.
Durante sua estada em Saturno, Cassini deve dar mais de 70 voltas no planeta (que, só um pouco menor do que Júpiter, tem nove vezes o diâmetro da Terra, e é o único planeta que não tem um núcleo sólido; pois é, Saturno é totalmente gasoso – tão leve que podia flutuar em água!). Cassini também passará pelo menos uma vez por todas as suas 31 luas saturnas (e é bem provável que descubra mais alguma).
Enquanto isso, 400 anos antes
Por que chamar a missão Cassini-Huygens? A história da astronomia moderna começa quando Galileu virou seu telescópio primitivo para os céus em 1605. Descobriu algumas luas de Júpiter, que chamamos hoje "satélites de Galileu", e olhou para Saturno onde levou um susto. Pois, Saturno não é para principiantes ou telescópios primitivos. Ao olhar, Galileu pensou que viu três planetas - Saturno no meio, mais dois planetas, que eram na verdade os anéis totalmente inclinados na vertical. Mais tarde, quando Galileu olhou de novo, os planetas ladeando Saturno tinham desaparecido por que ele olhava os anéis na horizontal.
O estudo de Saturno avançou depois de Galileu com Cassini e Huygens que aproveitaram avanços tecnológicos e usaram telescópios melhores. Mas não foram só os instrumentos que mudaram. Uma revolução cientifica estava em curso. Estava nascendo o método científico, caracterizado pela observação precisa e o estudo cuidadoso do mundo e dos céus.
Giovanni Domenico Cassini (1625-1712) nasceu italiano. Ele queria subir na vida, ter um bom emprego, alto salário e mordomias. Tinha talento e foi para França. Em 1667 tornou-se chefe do suntuoso Observatório de Paris. Agradeceu ao rei da França pelo emprego, salário e mordomias mudando seu nome para Jean Dominique em 1673. Entre 1671 e 1684, descobriu quatro luas de Saturno e o fato de que existe um buraco nos anéis. Hoje, chamamos seu buraco respeitosamente de "a divisão Cassini".
Uma curiosidade: o primeiro Cassini foi sucedido como chefe do Observatório de Paris pelo filho, neto e bisneto (Jacques Cassini (1677-1756) - chefe em 1712; César F. Cassini de Thury (1714-84) - chefe em 1771; e, Jacques Dominique Cassini (1748-1845) - chefe em 1784).
Um dos assistentes do primeiro Cassini no Observatório de Paris era Christiaan Huygens (1625-95). Foi ele quem solucionou (por volta de 1655) o problema de Galileu e entendeu que os "planetas" ladeando Saturno eram os anéis. Ao mesmo tempo, Huygens descobriu Titan.
Tem algo mais justo do que chamar esta missão Cassini-Huygens?
(*) Allen Bennett é jornalista.