Exportando matérias-primas, países pobres ''doam'' recursos para ricos, ironiza presidente africano

16/06/2004 - 18h37

Marli Moreira
Repórter da Agência Brasil

São Paulo - A mistura de idiomas costurando idéias para abrir caminhos dos países pobres no mercado mundial ganhou força nesse terceiro dia de debates da 11ª Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvovimento (Unctad XI), que prossegue até o próximo dia 18, no Pavilhão de Convenções do Parque Anhembi, na Zona Norte da cidade de São Paulo.

Palestrantes dos continentes africano e latino-americano questionaram a resistência dos países desenvolvidos na manutenção dos subsídios agrícolas, que provocam queda de preços desses produtos no mercado internacional, e representantes estrangeiros sugeriram o fortalecimento do comércio bilateral como meio de quebrar os obstáculos no acesso aos consumidores ricos.

Essa proposta pode ser uma forma de compensar o fracasso da reunião de Cancun, realizada, em setembro do ano passado, no México. Foi o que defendeu o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, durante painel sobre estratégias de garantia de renda aos países em desenvolvimento no mercado internacional . Ele arrancou aplausos e risos em vários momentos de sua exposição. Em sua opinião, para crescer economicamente, é essencial criar acessos aos mercados, agregar valor aos produtos (com o processamento de matérias- primas) e realizar investimentos em infra-estrutura. "Sem isso, não dá para reduzir a pobreza", defendeu.

Para exemplificar as grandes desigualdades, ele citou que, enquanto a África tem 800 milhões de pessoas consumindo US$ 550 bilhões, os Estados Unidos alcançam com cerca de 300 milhões de pessoas algo em torno de US$ 11 trilhões. "Isso não é porque os africanos tenham menos apetite que os americanos. Significa, isto sim, que há diferenças enormes de emprego e renda", referindo-se ao fato de os países industrializados comprarem matérias-primas e, depois de processá-las, negociarem os produtos acabados no mercado global, ganhando lucros e, não raro, deixando esses itens fora do alcance das populações das nações fornecedoras.

O algodão, por exemplo, levou o Brasil a contestar a prática de subsídios dos Estados Unidos junto à Organização Mundial do Comércio (OMC). O produto foi apontado pelo presidente ugandense como um dos exemplos de exportação de commodities que faz a diferença nas relações comerciais. Segundo ele, há 110 anos, a África sofre com a dominação mercantil na venda desssa fibra.

O ganho obtido em cada quilo do produto exportado sai ao preço de US$ 1,25, o que significa que "estão se doando US$ 10 para o comprador, pois todo o processamento é feito no exterior", disse, emendando em tom de brincadeira: "Então, sou um grande doador".

Ele acentuou que, ao invés de continuar vendendo matéria-prima, a África poderia também ter a sua própria tecelagem, confecções e outros empreendimentos, envolvendo a cadeia de manufaturados e aí deixar de ser "um megadoador" com a oferta de mais empregos locais e a elevação do poder de compra de sua gente.

Também alertou que o desenvolvimento intelectual das pessoas tem expressivo peso nas negociações, citando o Japão como exemplo, que é mais rico do que a Arábia Saudita mesmo sem ter igual riqueza natural. Provocando representantes da delegação americana presentes, sugeriu aos demais parceiros que os bombardeassem com questionamentos, visando apressar resultados em torno da luta para acabar com a pobreza até 2015. Isso passa, evidentemente, pela guerra dos subsídios agrícolas e eliminação das barreiras comerciais.

O chefe de Estado africano apresentou ainda dados da Organização Mundial da Saúde OMS), que recomenda a necessidade de se beberem 110 litros de leite por ano para uma vida saudável, enquanto em Uganda esse consumo não ultrapassa 40 litros ao ano. Quanto à carne, são indicados 80 quilos per capita ano, e os ugandenses comem apenas 3,6 quilos. "Se vocês virem um ugandense magrinho não pensem que é dieta, são subnutridos ", complementou.

No mesmo painel, o presidente eleito da República Dominicana, Leonel Fernandez Reyna, além de concordar com a defesa do fortalecimento dos acordos bilaterais, enfatizou que o crescimento econômico das nações pobres depende também de entendendimentos em nível dos blocos regionais como a Área de Livre comércio (Alca) e Mercosul (Mercado do Cone Sul), como uma espécie de trampolim para ganhar competitividade no mercado global. Paralelamente, propôs que cada um dos chefes de governo das nações em desenvolvimento trabalhe em estratégias nacionais para inserir nessa conquista.